Ao contrário do ostracismo, seus amigos e
admiradores reservam-lhe carinhosamente o lugar que é seu e que se espera volte
a ocupar novamente a curto prazo. Enquanto isso não acontece, a Tarca foi ouvi-lo no apartamento em que
está morando em Porto Alegre, “meio embretado”, como ele próprio define.
Cenair falou sobre muitas coisas, abordando
desde as alterações na vida política nacional até as recordações de sua infância,
na mistura da vivência brasileira-correntina. Em todos os momentos transpareceu
sua singela sinceridade, que também caracteriza os versos que canta, com
inspiração e competência, desde os dez anos de idade.
TARCA: Gostaria de tua
opinião sobre a Califórnia e o Musicanto, porque hoje há uma discussão em torno
de um e outro, comparativamente...
CENAIR: No último Musicanto não
estive. Na última Califórnia também não fui. Mas os comentários que ouvi foram
negativos. Parece que eles não foram muito felizes na seleção que fizeram. Até
os caras das gravadoras comentaram que não gostaram muito do repertório. Pelo
que ouvi, nem comercialmente agradou. Mas acho que os dois festivais têm uma
estrutura grande. Santa Rosa tem um festival novo, onde resolveram investir,
botar dinheiro e fazer um negócio grande. Penso que o que falta realmente é uma
conscientização do tipo de coisa que eles querem fazer. Eu imaginava que Santa
Rosa pegaria uma seleção de músicas da América toda. Na realidade, parece que o
Musicanto teve uma infiltração do pessoal lá de cima, desses caras que estão
fracassados nas músicas urbanas, vieram e se apagaram... Eu não quero dizer com
isso que o Nelson Coelho de Castro seja um fracassado. O trabalho dele está
todo aí. Mas eu senti que houve um avanço dos caras para pagar toda aquela
organização de forma oportunista e não se proporcionou essa abertura em termos
de América, de ritmo. Se analisarmos a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, vemos
que eles são riquíssimos em ritmo, são mais ricos que nós, porque a cultura
deles é mais avançada que a nossa. Enquanto o império da Espanha, na época, se
preocupava em trazer cultura para o povo deles, aqui, o império de Portugal se
preocupava em conquistar mais terras. Então nós tivemos um atraso tremendo
culturalmente em relação à Espanha, principalmente na nossa região. Hoje, se
olharmos o folclore da Argentina veremos que ele é muito mais rico que o nosso.
O próprio governo deu condições para isso. Tem maestros lá com 80 anos que
desde jovem são músicos, compositores, músicos de terra. Se pegarmos Montiel,
Cocomarola, Isaco e tantos outros, veremos que são gente que tem mais de 50
anos dedicados à música folclórica. Nós não temos isso. Se analisarmos nossos
músicos, veremos que tudo é gente nova. Os antigos não tinham cultura, não
tinham trabalho... Pedro Raymundo, o primeiro a divulgar a música gaúcha, era
um catarinense; não tinha vivência campeira. Teixeirinha é outro que
popularizou o gaúcho no Brasil inteiro com uma imagem errada.
TARCA: E o conjunto
Farroupilha?
CENAIR: O Conjunto Farroupilha
foi um conjunto bom, que não era tão folclórico, não era gaúcho. Tinha músico
bom mas não era gaúcho.
CULTURA E INFLUÊNCIAS
TARCA: Então é um problema
de colonização?
CENAIR: É um problema de
colonização. Para citar um exemplo, em mil oitocentos e pouco, aqui no Brasil
existia uma só universidade, enquanto na Argentina já havia mais de oitenta.
TARCA: E a ideia da
Universidade das Missões?
CENAIR: Acho uma beleza essa
ideia. Já faz mais de dez anos que ela surgiu. Inclusive naquela época eu
estava nas Ruínas (de S. Miguel) e cheguei até a fazer alguns trabalhos junto
com os professores que estavam lá, interessados em fazer uma campanha.
Considerei uma beleza, mas até agora ficou só na conversa; não houve nada
sério.
TARCA: Ela facilitaria o
trabalho de vocês músicos, artistas?...
CENAIR: Sem dúvida. Quando surgiu
o movimento nativista, nós começamos esse movimento. Quando o Jayme Caetano
Braun iniciou esse movimento, aqui em Porto Alegre (a falar em nativismo), nós,
lá nas Missões já falávamos em nativismo. Então surgiram mais de 500 centros de
tradições gaúchas. Mas todo mundo se preocupava em fazer bailes, em construir
galpões. Aí, surgiu, lá nas Missões, a ideia de se fazer um centro nativista. O
Jayme deu cobertura aqui, e nós fizemos lá em São Miguel um centro. Nesse
centro, uma dessas propostas era esta: desenvolver a história das Missões nos
colégios primários, assessorados pelo centro de nativismo, e outras ideias que
viessem ao encontro da nossa história, porque lá se chegarmos à um guri, ele
não sabe nada da história das Missões, não saberá dizer nada sobre as ruínas,
porque os colégios não ensinaram: só agora começaram a ensinar. Então a nossa
ideia era essa. Mas depois o movimento tradicionalista entrou numa de só querer
fazer bailanta, cancha de bocha... É difícil de formar uma cultura. Isso aí
teria que ter assistência do governo, das instituições.
TARCA: Mas tu achas que essa
universidade teria repercussão local e que o pessoal deveria aderir a esse
movimento cultural?
CENAIR: Mas acho que está todo
mundo na ânsia, lá nas Missões, principalmente. Eles estão numa campanha há
muito tempo por uma universidade nas Missões; depois surgiu esta de fazer uma
internacional e o pessoal tá na ânsia. O que falta lá é liderança, ou melhor,
os líderes de lá são todos ligados ao governo e geralmente não fazem nada.
Sempre enfrentamos esse problema.
TARCA: E esse Festival das
Missões. Como é que tu vês?
CENAIR: Isso aí nós também
tivemos a ideia, já faz tempo, e não encontramos ressonância justamente entre
nossos líderes políticos; não encontramos força. Agora pode ser que saia. É
preciso divulgar. Aquele Simpósio de Santa Rosa também foi um negócio que
repercutiu bem inicialmente, depois parou um pouco. Mas eu acho que ainda está
em pé o Simpósio de Estudos Missioneiros. Tinha uns trabalhos culturais muito
bons. Acho que a salvação do nosso povo, da nossa juventude, está aí. Quando
tirarmos essa gente dessa alienação bárbara, desse americanismo, do Rock in
Rio, a salvação dessa gente é por aí; uma universidade que conscientize sobre
nossos valores. Do contrário não temos porque estar estudando. Estudar aí para
veicular rock (...) talvez essa juventude esteja recebendo uma formação errada.
Sempre fui músico desde guri, mas preocupado em cantar aquilo que recebi em
minha formação, que herdei de minhas raízes.
CTG E MOVIMENTO
TARCA: Poderias fazer uma
análise do surgimento dos CTG’s, sua atuação até os dias atuais, a contribuição
que eles têm dado, ou que deixam de dar?
CENAIR: Olha, não vou dizer que o
CTG, que o MTG em si, o movimento não salvasse muita coisa bonita do passado.
Quando surgiu o movimento tradicionalista gaúcho, em trinta e pouco, quarenta e
pouco, eu nem existia, mas vejo assim: converso com o Jayme Caetano Braun, com
esses caras mais antigos e noto que quando surgiu esse movimento, a intenção
deles era preservar a cultura. Então não vou dizer que eles não preservaram
muita coisa, mas chegou uma época em que se perderam no tempo, viraram bailanta
ou centro recreativo, se marginalizando. Depois surgiu esse outro movimento
cultural do qual fomos pioneiros, que é o nativismo. Nós partimos para o
nativismo com Sepé Tiarajú. Na verdade o nativismo nasceu com Sepé Tiarajú nas
Missões. Foi o primeiro nativista registrado na história. Um cara que se ergueu
e morreu pela terra dele, pelas coisas dele, isso é a base do nativismo. Então
surgiu esse movimento aí e hoje tem força, e o MTG, e o CTG estão se
recuperando através dele. Os centros de tradições podem fazer um trabalho muito
bom ainda, eles têm estrutura, acho que tem mais de mil centros de tradições,
com associados, com direção, com verba. Se o pessoal conseguisse usar essa estrutura
para fazer um trabalho cultural...
TARCA: Como encarar as
comemorações atuais da semana farroupilha?
CENAIR: Acho que para se fazer
uma homenagem aos heróis da Revolução Farroupilha, terá que ser um negócio mais
religioso, mais silencioso até do que se reunir em praça, beber cachaça, tocar
gaita e fazer folia. Isso não tem nada a ver, pois a batalha dos Farroupilhas
foi um troço sangrento, foi triste, onde muita gente morreu e que deveria ser
lembrado com respeito maior e não com atividades festivas. Não há motivo para o
pessoal andar comendo tanto churrasco. Caiu nas mãos do oficialismo e virou
festa. Então a Semana Farroupilha é festa em tudo que é cidade, uma beberrança
de cachaça.
TARCA: Há quem diga que é o
carnaval dos gaúchos...
CENAIR: Uma vez, ainda guri, o
primeiro choque que levei foi assim: tinha uma velhinha, mãe de um amigo meu.
Aí nós desfilamos à cavalo e deixamos os cavalos atados na frente do rancho, e
dê-le festa e dança. Fomos na casa dele para mudar de roupa e deixamos os
cavalos atados no sol e dissemos: Mas tá linda essa semana Farroupilha! Que
gauchada! E a velhinha disse: “Mas eu passei agora ali, quando fui no açougue,
e não vi gaúcho nenhum. Vi foi os bandidos deixarem os cavalos passarem sede
lá. Gaúcho não deixa cavalo passando sede no sol”. Aquilo me chocou. E outro
troço que me chocou também, num desfile desses foi na hora do churrasco, num
capão. Quando nós nos preparávamos para comer aquele churrasco, olhamos para a
cerca e estava cheio de crianças com fome, ali, olhando. Aquilo me estragou a
inspiração de ser um gaúcho, essa farra, essa festa. Então acho que o primeiro
passo do movimento tradicionalista seria salvar esse lado aí, equilibrar o
problema social do gaúcho para depois fazer festa.
TARCA: Cenair, vamos falar
sobre o período em que estivestes em São Paulo, numa época em que havia
recrudescido a censura. Chegaste a participar de um espetáculo com outro músico
gaúcho?
CENAIR: Nós tivemos uma época de
ouro, foi a época em que fui para São Paulo com o Noel Guarany. Ele já tava lá.
Eu fui ver um cartaz. O primeiro nome do cartaz era o dele, depois Chico
Buarque de Holanda, Milton Nascimento, Elis Regina. A censura pegou aquele
espetáculo e foi o azar do pobre do Noel.
Os caras deram força para ele, ele teve na pauta, ia comandar aquele troço, praticamente. Um ano depois eu fui para lá com o Noel e nós tivemos o apoio daqueles caras. Eles reuniram, na época, os jornalistas para fazer uma cobertura boa para o nosso trabalho. Mas o Noel, com aquela maneira de ser dele, louco de briguento, brigou com todos os jornalistas, se agarrou com os homens, tive que entrar também não ia deixar meu companheiro mal. No fim ele atrapalhou nosso trabalho. Tivemos que voltar. Foi uma pena, porque se naquela época o Noel tivesse mais amadurecido, eu tivesse mais condições...
FAMÍLIA
TARCA: De onde tu és?
CENAIR: Nasci no município de
Tucunduva na costa uruguaia. Quando tinha uns dois anos, meu pai foi morar na
Argentina, tirar madeira lá no sertão. Então nos criamos ali naquela região;
moramos oito anos do lado argentino. Era divertido o acampamento do velho. Sempre
vinha aquela peonada de paraguaio, argentino, brasileiro embrenhada no mato...
TARCA: Como era o nome do
teu pai?
CENAIR: Armando, mas todo o mundo
o conhecia por Mandico. Falei nele naquela música do Sapucai, “o Mandico se
alegrava”. Deu na televisão. Meu pai é que fazia o Baile do Sapucai. Meu pai
sempre foi arteiro lá na costa. Ele era o chefe dos chibeiros. O negócio dele,
além de madeira, era cruzar farinha, azeite, sabão, graxa... contrabandeavam
graxa. Quando pesava a barra, e a gendarmeria andava patrulhando a região, os
chibeiros, que eram amigos, saíam a cavalo a avisar. Nós morávamos do lado de
lá, mas o baile ele fazia do lado de cá. Tu vê que o velho usava a cabeça. Até
as armas de gendarmeria ele pegava e deixava lá em casa e trazia os caras pro
baile. Ele gostava de cachaça brasileira. Ele fazia o baile e entretinha os
gendarmos. Tinha até os pares certos. Para aturar as negras cheirando a picumã
ele levava brilhantina e passava nas mãos e, brincando, passava no cabelo das
negras.
TARCA: Quantos irmãos?
CENAIR: Somos oito irmãos. Aliás,
somos nove irmãos homens e uma mulher, mas um é falecido.
TARCA: Vocês todos se
mantiveram naquela região ali?
CENAIR: Um deles veio estudar em
Santa Rosa, o Russo. O resto ficou lá. Depois, quando começamos a cantar vim
para a cidade. Nessa época eu tinha uns 10 anos. Nós viemos para Santa Rosa, já
viemos para cantar. Sugeriram pro pai que nos trouxesse para a cidade para
cantar. Nós chegamos e fomos na Rádio Sulina de Santa Rosa. Aí surgiram as
duplas: o Russo e o Darci formaram uma dupla, eu e o Adelmo formávamos outra
dupla. E depois o Manoel fez outra dupla, já em Santo Ângelo.
TARCA: Cenair, e quanto ao
fato de já existir um número expressivo de artistas cantando naquela parte do
Estado, aquele estilo de vida: você pode dizer que dentro do contexto da nossa
música já existe um estilo missioneiro de cantar, com influência e espaço
garantidos na nossa música?
CENAIR: Bom, na verdade é que a
música missioneira sempre existiu, no Paraguai, na Argentina, no Uruguai. No
Brasil é que não existia. Então, a partir da década de 70, sessenta e pouco, nós
fizemos os primeiros registros dessa música com o Noel. Ele e eu gravamos um
compacto nas Missões e iniciamos uma campanha para afirmar nossa música que
aqui não era reconhecida. Vínhamos aqui em Porto Alegre e nos diziam: Ah, essa
música acastelhanada, e tal. Então iniciamos uma campanha com uma música mais
no estilo cultural, porque na época o músico tinha que tocar era música de
baile, como os Bertussi, ou música sertaneja paulista, senão não era música a
que o povo estivesse acostumado. Havia uma predominância da música sertaneja e
dessa serrana dos Bertussi.
Então iniciamos cantando essa música das Missões e tivemos dificuldades, é claro. Depois iniciamos no meio estudantil – Santa Maria é que deu força para a nossa música. Aí surgiu o festival de Uruguaiana, e então o negócio foi melhorando, pegando força, surgindo novos valores.
TARCA: Mas vocês apenas
usaram o que já estava disponível em termos de ritmo, de motivação, ou
trabalharam em cima disso e criaram um estilo novo, uma nova forma de cantar?
CENAIR: Praticamente criamos o
estilo. Eu, por exemplo, como iniciei a cantar – é claro que a gente tinha
influência da Argentina, de toda a parte, de São Paulo, dos Bertussi – mas procurei
fazer assim da maneira que eu sentia, que eu gostava, numa mescla que deu
certo. Ela se diferencia de todas as outras. O meu estilo, o do Noel, o do
Pedro Ortaça, somos todos de uma mesma região, mas cada um com seu trabalho e
com a sua característica.
TARCA: E qual é o próximo
passo de vocês?
CENAIR: Acho que a música é uma
constante renovação. Tenho certeza disso na prática. Música não pode parar, não
pode ficar num lugar só. Música pra pegar a estrada, como nós dizemos, tem que
andar hoje aqui, amanhã noutra região, pra ir pegando novo sabor, pra ter
inspiração. Se o músico ficar só num lugar, morre a inspiração dele. Cai no dia
a dia. Cai na rotina.
TARCA: Principalmente aqui
em Porto Alegre, não é?
CENAIR: Porto Alegre é um
cemitério de músicos. Músico precisa de ambiente novo sempre. Tomara que eu
nunca tenha que tocar na noite, num bar pra poder ganhar o pão de cada dia.
Parece que o músico morre. Ele é obrigado a estar trabalhando ali para ganhar
alguns trocos, para comer, beber, pra se manter. Isso mata o músico, a
inspiração.
DISCOS E GRAVADORAS
TARCA: Quando lançaste teu
primeiro LP?
CENAIR: Em 78 lancei o primeiro
LP e em 70 gravei um compacto. Então, quando vim pra cá, cheguei numa rádio, a
divulgadora da gravadora estava comigo. Um velhinho, em Canoas, tinha um
programa de “20 anos de Rádio”, como ele dizia. Daí ele falou pra mulher que
tinha uma dupla sertaneja pra gravar e não deu muita atenção pro meu disco.
Fiquei meio intrigado e disse pra ele: “Eu quero lhe fazer uma pergunta: já que
o senhor diz que tem 20 anos de rádio, por que é que nós aqui do Rio Grande do
Sul, que somos músicos da terra – eu gravei um LP agora – temos tanta
dificuldade de chegar numa rádio e tocar a nossa música?”
“Vocês só querem tocar a música de São Paulo. Por que isso?” Daí ele me respondeu: “Sabe por que moço? Porque os paulistas gravam disco, botam embaixo do braço e saem a divulgar em tudo que é rádio do Brasil inteiro a trabalhar e vocês ficam aí tomando chimarrão, comendo carne embaixo da sombra e querem que o trabalho de vocês apareça”. Daí eu disse: “Mas eu estou aqui com o meu trabalho, já estou batalhando há anos e nada.” Ele falou: “Então eu vou dar atenção pro seu trabalho”. E de fato o velhinho sempre toca as minhas músicas aí no programa dele, em Canoas.
TARCA: Como é que tu vês os
festivais?
CENAIR: Embora os muitos
oportunistas que estão tirando proveito por aí, vejo com bons olhos esses
festivais. Agora mesmo quando a gente liga a televisão, de repente vê uma
música nossa. O rádio também toca as nossas músicas.
ASPECTOS SOCIAIS
TARCA: Algumas das letras
das tuas músicas demonstram uma preocupação com o aspecto social,
principalmente em relação ao homem, o campo, as relações de trabalho. Isso é
uma coisa marcadamente característica ou foi uma fase do teu trabalho?
CENAIR: Acho que isso já vem de
berço. Somos de uma família humilde, nos criamos trabalhando. Uma das músicas
que me marcou e que felizmente consegui compor na hora certa foi a do homem
rural. Para essa música me inspirei num vizinho que trouxe das Missões de
carona, pra deixar na Santa Casa. Vi todo o drama que o velhinho enfrentou.
Foram três dias para internar o homem. Aí me inspirei e surgiu o Homem Rural.
TARCA: Acho que foste o
primeiro a cantar esse tipo de música.
CENAIR: Sempre tive essa
preocupação. Acho que o músico, além de cantar as coisas bonitas, a alegria,
tem que ser um porta-voz do povo. Se o nosso povo tá sofrendo, tá passando
fome, tá com problemas, não adianta ficarmos cantando que o gaúcho vive numa
riqueza tremenda. Acho que isso, inclusive é uma imagem distorcida que outros
cantores mais antigos fizeram do gaúcho. É o caso do Pedro Raimundo, do
Teixeirinha – são cantores que distorceram a imagem do gaúcho. Teixeirinha
talvez não fizesse por maldade, porque ele não era homem campeiro e viveu fora
da realidade. Distorceu que o gaúcho é fanfarrão, que mata cinquenta, que dá
tiro, que é agressivo. Dos gaúchos que conheci nenhum era assim. Ele é
respeitoso, não é um cara grosso. Acho que o gaúcho é um cara que tem cultura,
é esclarecido. Com essa imagem que foi pintada, as gravadoras se aproveitaram
para vender disco. Isso aconteceu também na Argentina.
TARCA: O fato de tu seres de
uma região tipicamente colonizada por europeus – não é uma região de gaúchos no
sentido clássico que se dá na campanha – isso não te provocou uma certa
contradição?
CENAIR: É, a região de Tucunduva
é uma região de italianos. Se tu analisares a minha música vai ver que não
estou muito preocupado em cantar só aquele gaúcho que existiu no passado. Estou
preocupado com o gaúcho do presente, nessa mescla. Com a herança que ficou, que
herdei do meu pai, que tem as origens no homem do campo mesmo, essa herança
cultural é que me preocupa. O próprio italiano quando chegou aqui se apegou às
nossas tradições, tanto que ele cultua até hoje. Aderindo ao chimarrão, à
bombacha, ao cavalo, ao campo e eu sou herdeiro dessa cultura. Isso é o que me
interessa divulgar e preservar.
TARCA: Com relação ao
trabalho esse, enfocando os problemas sociais, tu enfrentas alguma dificuldade
para divulgá-lo? Não há uma certa restrição quanto à aceitação?
CENAIR: O problema político? É
isso aí a maior preocupação. Inclusive eu estou pra gravar um LP. Aí o cara
levou as minhas letras pra censura. Os caras já começam a barrar. Acho que a
censura precisa acabar. Não adianta nada isso. Fomos pra São Paulo pra fazer o
lançamento do meu novo disco o “Canto dos Livres” e nos barraram lá. Eu já
tinha gravado o disco lá no Som Brasil mas o resto da programação foi tudo
trancado. Trancaram o disco, dois meses censurado.
TARCA: Mas quem fez isto?
CENAIR: A Censura Federal. Então
me barrou a carreira. Fiquei dois meses com o disco parado. O meu trabalho
parou, tive que vir embora. Então eu acho que isso aí só atrapalha a gente.
TARCA: E é uma coisa
presente ainda hoje?
CENAIR: Claro. O cara vai gravar
um disco e tem que estar preocupado com as letras, temperando. Eu acho ridículo
isso aí. Não vejo a hora de acabarem com a censura, principalmente sobre essa
coisa que o nosso povo sente e pensa. Não tem porque estar censurando. O que é
que tem para censurar no Canto dos Livres? Não estou agredindo ninguém, estou
apenas dizendo o que sinto.
FESTIVAIS E NOVOS
ESPAÇOS
TARCA: Num certo momento, os
festivais de música nativa abriram espaços e contribuíram para a aceitação de
nossa música. Mas já há quem diga que hoje o excesso de festivais prejudica
qualitativamente o trabalho dos nossos artistas. Qual é a tua opinião a
respeito?
CENAIR: Bom, a minha opinião é a
seguinte: eu até não participo de festival, não concordo – tenho é feito música
para irmãos concorrer, pra amigos, desinteressadamente. Acho que essa
concorrência no meio artístico é prejudicial. Ela não deveria existir.
TARCA: Com a mudança, no
quadro político nacional continuarão abordando o aspecto social no teu
trabalho?
CENAIR: Na realidade, muda um
pouco, já não se faz um “ataque” de oposição como se estava fazendo. Agora
perde um pouco o sentido. É preciso esperar para ver o que os homens vão fazer.
Se eles continuarem negando o que o nosso povo tem direito e o que precisa, acho
que é um dever do artista sensibilizar as pessoas para os problemas do povo.
Acho que além de cantarmos somente as alegrias e tristezas de nosso povo,
devemos também cantar suas necessidades. Creio que não devemos nos preocupar
com isso agora, vamos aguardar para ver.
TRANSPLANTE EM MARÇO
TARCA: Vamos satisfazer uma
curiosidade de todo o teu público: Como está tua saúde?
CENAIR: Estou com insuficiência
renal. Estou mais ou menos seis meses sem trabalhar. Faço alguns shows
esporadicamente. Não faço um trabalho continuado porque não há condições
físicas. Estou dependendo de uma máquina que está substituindo meu rim. Faço
hemodiálise duas vezes por semana. Uma ou duas vezes por mês, faço uma
apresentação. A gente está aguardando o transplante que está previsto para o
mês de março. Fiz alguns exames com meus irmãos, e três deles têm rim idêntico
comigo. Quer dizer a formação genética. Então, desses três, um vai me doar um
rim. Depois do transplante, vou ter um pouco de cuidado para me recuperar bem.
Vou ficar bem normal. Aí vai dar para continuar o trabalho.
TARCA: Qual o tempo de
recuperação, após o transplante?
CENAIR: Trinta, no hospital.
Depois, mais uns sessenta dias em casa. Daí já vai dar para trabalhar firme.
TARCA: Onde vais fazer o
transplante?
CENAIR: Com a equipe do Dr.
Busatto, no Hospital Conceição, que são os pioneiros em transplantes no Rio
Grande do Sul. Fazem transplantes há mais de quinze anos. Já fizeram mais de
noventa, e isto dá uma segurança maior, acho que estou em boas mãos.
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Um comentário:
Que relíquia amigo.
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