terça-feira, 17 de abril de 2018

Jogando sem Cartas (Bagre Fagundes)



A expressão “jogar sem cartas”, significa a capacidade que alguém tem de jogar bem, mesmo sem contar com cartas boas ou pontos altos. Evidentemente, é fácil para qualquer jogador realizar uma boa partida estando “cheio” de cartas e pontos.
           
            Entretanto, nesta história que vou contar e que envolve uma figura muito conhecida nos meios do truco em nosso Estado, o Dr. Nei Fagundes Machado, que o Nico Fagundes considera o melhor jogador de truco do Rio Grande, a expressão JOGAR SEM CARTA tem um significado bem diferente: é jogar sem cartas, mesmo, sem ter as cartas na mão!

            Foi assim que aconteceu essa inusitada parada.

            Era um truco de seis, que se jogava lá no Clube Pitoco do Caminho do Meio. Entre os seis, naturalmente estava o Dr. Nei, que jogava de testa com o Willy Ramos. A parceria era esta: o Willy, o Miguel Fernandes e o Ari Mulato contra o Nei, o Aristeu Penalvo e o Dr. Francisco Duarte, alcunhado “Repolho”.

No jogo de seis (ou mais) parceiros, quando se trata de jogo de testa, é absolutamente proibido qualquer palpite. Para ficar mais claro: não é permitida qualquer interferência dos demais parceiros nas jogadas de testa. Assim pode ocorrer a maior barbaridade no jogo que, se o adversário direto não se der conta, vale a jogada, dentro da lei. Por exemplo: se alguém pega uma carta que já foi jogada nas outras mãos de testa e o adversário não se dá conta, vale tudo o que vier pela frente, mesmo que um outro adversário tenha se dado conta da trapaça. Cantar pontos errados, cantar flor sem ter, não mostrar flor ou pontos, enfim, todo o tipo de jogada errada pode ser realizada, se o adversário direto da testa assim o permitir.

            Pois, era uma jogada de testa, justamente essa que envolveu o Dr. Nei. As cartas foram dadas pelo próprio Nei. Durante as testas dos demais, o vizinho da esquerda do Nei, o Dr. Repolho, por boca aberta, recolheu as cartas que já haviam participado do jogo juntamente com as do Dr. Nei! Desta forma, o Nei, simplesmente, FICOU SEM NENHUMA CARTA NA MÃO!

            Passou a primeira testa, a segunda e, quando chegou a vez do Nei jogar, ele não tinha cartas. Mas, como índio da fronteira, não se apertou e lascou em cima do Willy que já tinha jogado quieto uma cartinha pequena:

            - “Envido”!

            O Nei tinha as mãos colocadas sobre a mesa de jogo, assim como quem está agarrando as cartas.

            O seu adversário, o Willy, que não tinha nada para o primeiro, não desconfiou de nada e deu seqüência à jogada:

            - “Não quero, não senhor”!

            Aí, o Nei se encheu de razão e “prendeu-lhe” o outro por cima:

            - “E é a lo farruco: envido e truco”!

            O pobre infeliz do Willy que, na verdade, não tinha nada pra nada, disparou, também, do rabão e o Nei Machado ganhou dois pontos sem nenhuma carta na mão, naturalmente, em meio à maior gozação da parceria.

            Até hoje, é o único caso que se tem notícia de alguém que tenha ganho o envido e o truco sem nenhuma carta na mão!

Fonte: Bagre Fagundes. A regra do truco cego. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 2009.


Trucolência (Paulo Motta)

Toda a vez em que mergulho no meu baú de reminiscências, volto à tona trazendo alguma coisa divertida nas mãos!

Pois hoje é uma passagem acontecida no bolicho do Doca, logo na curva da estrada, à direita passando Conde de Porto Alegre, alegre distrito de São Borja.

O Doca, velhote sacudido nos seus sessenta e poucos anos, tinha o que se precisasse no pequeno armazém.

Mantas de charque, tulhas* com milho, feijão, erva-mate e quirera*, cortes de sarja, cambraia, vigela e brim, para as bombachas da peonada e os vestidos das prendinhas. Querosene pros candeeiros e até Liquinho a gás, que alumeia muito melhor de que os candeeiros, só vendo. Para a patroa lavar roupas, sabão La Perdiz, argentino, e azeite Cocinero pra fazer a bóia. Vendia uma canha de Santo Antonio da Patrulha que emborrachava só pelo cheiro, chegava a ser azulada! E gasosa do Sperandio* pra piazada. Dia desses ele botou pra vender um Fogãozinho Jacaré, que o Balbino, capataz da Fazenda Santa Rita, comprou. 

Mas num fim de semana diferente, houve um torneio de truco, no galpão dos fundos.

Truco é tipo um pôquer bagual, jogado com baralho espanhol, característico pela mentira e o blefe. Me ensinaram a jogar truco, numa feita. O De Tarso – olha só, Elena Fagundes – o João Telmo e o Sarico perderam horas me ensinando o carteado, todos borrachos, é claro. No outro dia acordei sóbrio e sem sombra de conhecimento de truco. Meus professores ficaram furiosos! Eu deveria ter continuado bêbado, uma pena!

Reuniram-se as duplas e se atracaram no carteado. O Caruncho e o Quibebe – não é o-que-bebe; é quibebe, refogado de moranga com charque – o Juca Perez e o Balbino e mais duas duplas. Começaram na sexta-feira antes do almoço e sábado de noite a bugrada lidava com as cartas, de vereda, o gritedo da jogatina se ouvia de longe:

– Truco, seu bosta!

– Retruco, bagacera!

– Quero e vale quatro, não me achico, sou do Iguariaçá, coxa pelada!

Até as lindas filhas do Doca vinham espiar, de longe, a peleia. Uma mais linda que a outra. Todas com olhos verdes que nem cuspida de mate, origem italiana; cortejadas pelos gaudérios, que se botavam nas pilchas domingueiras, depois de um banho de sanga, pra não ficar com cheiro de baralho velho.

Seu Boaventura assava um chibo no buraco feito na terra, ao lado do galpão, perto dos espinilhos, golpeando, despacito, um liso de pura.

De já hoje, o Pisca, peão da Fazenda Palermo, metido a gaiteiro, sentou e se atracou na oito baixos*, tirando um chamamé* comprido que nem ralhada de gago. Mas não durou muito, a canha foi mais ligeira que ele e o artista dormiu sobre a gaitinha chorona.

Mas pra lhes encurtar o relato, na tardinha de domingo os jogadores faziam o rescaldo e o menos borracho contava os pontos e tentava se entender e convencer os outros do resultado final. Era de sentar pra rir:

– Como que não ganhemo, alarife? Tu te cagou com trinta e três de espada e perdeu de mão, abostado!

– Abostado é tu, paisano fiadaputa, que já te abro outra boca bem nessa barriga cheia de merda!

– Antes na barriga do que na cabeça, que nem tu, serrano desgraçado!

E quando levantaram pra pelear com arma branca, cada um caiu prum lado, de tão bêbados!

Não sei se ainda é assim na minha querida fronteira, na beira do Rio Uruguai, oceano que o Patrão Velho lá de cima nos deu. Talvez seja. Importante que essas coisas não caiam no esquecimento, que não deixemos nosso passado ser soterrado por tecnologia ou ornamentos. Lembremos das pataquadas antigas pra essa meninada de agora, meus amigos e amigas. Eles vão adorar, tenham certeza!

Depois eu volto para azucriná-los, um beijo carinhoso no fígado de todos!

*Quirera: milho moído pras galinhas
Tulha: caixas de madeira para estocar arrroz, farinha, etc.
Sperandio: antiga fábrica de refrigerantes de São Borja
Chamamé: ritmo musical argentino
Oito baixos: pequena gaita de botões



Fonte: http://decoalmeida.com.br/trucolencia/ Acesso 17/04/2018.

sábado, 14 de abril de 2018

Show Laura Guarany - Festival Nativista Canto de Luz - 5ª Edição - 17/11/2016

O PROFESSOR PAIXÃO CÔRTES - Causos do Nêgo Véio (Neto Fagundes)


Um tradicionalista que ensinou o maior violonista do país a tocar o instrumento.

Todos sabem da admiração que tenho pelo senhor João Carlos D’Ávila – o “Paixão Côrtes”, o Laçador. Eu o conheço pela estreita relação que sempre teve e tem com toda a minha família, desde os meus avós, seguidos pelos meus tios e pelo meu pai – outro grande admirador dele.

Uma das primeiras histórias que ouvi a respeito do Paixão Côrtes foi de uma gravação em São Paulo, em um dos maiores estúdios do país, de um LP com vários convidados. Logo cedo começaram a gravar os violões do disco, quando a delegação gaúcha devidamente pilchada chegou. O Nêgo Véio detesta que fiquem em dúvida se ele é gaúcho ou não, por isso carrega o mate até pra motel. Vá que dê vontade de matear!

Do lado de fora do estúdio, o Paixão observava pelo vidro do aquário o violonista gravando um xote. E o Paixão (que não tocava um ovo de violão, só arranhava uns dois acordes!) interrompe o cara, invade o estúdio, toma o violão da mão do músico e mostra pra ele:

- É assim que se toca o nosso xote!

O violonista olhou bem para o cara de xiripá e chapéu de pança de burro na cabeça, e concordou. Foi então que o técnico abriu a porta e falou:

- Baden, faz como o gaúcho tá pedindo.

- Baaaden! – exclamou o Paixão com cara de susto.

- Sim! – disse o operador. – Esse é o Baden Powell, trabalha conosco aqui no estúdio.

O Paixão estava ensinando só o maior violonista do país a tocar! Paixão Côrtes foi saindo bem “na manha”, como se diz na fronteira.

Bom, uma coisa é certa, não é qualquer Nêgo Véio que pode colocar no seu currículo: “eu ensinei o Baden Powell a tocar violão”.


Fonte: Causos do Nêgo Véio. Neto Fagundes, 1 ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2016.

O PASTEL DE SÃO BORJA - Causos do Nêgo Véio (Neto Fagundes)


Era uma madrugada fria de inverno quando desembarquei na rodoviária de São Borja, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Me dirigi ao balcão onde estava atendendo um Nêgo Véio de quase dois metros de altura.

Chamei a atenção dele e perguntei, meio sonolento, olhando o balcão:

- O pastel é novinho?

Sem perder tempo, ele me respondeu:

- Não, não foi feito no vinho. Foi feito na banha de porco mesmo!

Isso que é Nêgo Véio!

Fonte: Causos do Nêgo Véio. Neto Fagundes, 1 ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2016.

O PAPAGAIO - Causos do Nêgo Véio (Neto Fagundes)


Assim se chama no interior aquele empréstimo que se faz ao banco quando a peladura pega: “papagaio”. 

Não sei a origem do nome, mas parece que antes disso se chamava “pendurar no bico”. Daí talvez tenha originado o apelido de papagaio.

O negócio é que o Nêgo Véio andava fugindo do gerente que nem diabo da cruz, pois já tinha mordido o banco diversas vezes e não pagava. Estava mais pelado que sovaco de estátua, totalmente liso. Só que no sábado estava acontecendo um grande baile na cidade. O Nêgo Véio foi e o gerente também. Se encontraram logo na chegada e o gerente não perdeu tempo.

- Nêgo Véio, tenho uma notícia para te dar: o teu papagaio venceu!

E o Nêgo Véio, na maior cara de pau, pergunta:

- E o seu, ficou em que lugar?


Fonte: Causos do Nêgo Véio. Neto Fagundes, 1 ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2016.

KAKO E PORCA NO BOLICHO DA ESTRADA - Causos do Nêgo Véio (Neto Fagundes)


Quem convivia conosco no início dos anos 1980 aqui pela capital, frequentando bailes do Piquete Tropilha Teatina e as Pulperias da vida, lembra de uma parceria quase que familiar entre Elio da Rosa Xavier, o Porca Véia, e Cláudio Damásio Pacheco, o Kako Pacheco – o cara da Festa do Ridículo de Belém Novo.

O causo de hoje reúne os meus dois personagens, o Kako e o Porca, em uma viagem por uma estrada de chão batido – e bota batido nisso. Acho que a Ivete Sangalo passou por ali antes de gravar “Poeiraaaa”.

Já tinham rodado mais de duas horas e bateu a sede. Avistaram lá no horizonte um bolicho caindo os pedaços. Pediram para o motorista parar o carro e desceram. O dia estava quente como frigideira sem cabo e a sede estava pelo corpo inteiro, como diria meu compadre Paulo Cardoso. Quando entraram, avistaram sobre o balcão uma vela acesa e um Nêgo Véio atendendo, com um palheiro na boca e lendo um jornal local. Nêgo Véio adora um jornal da cidade, para fazer as palavras cruzadas. Os dois olharam em cima do balcão. Duas garrafas de cerveja, quase fervendo – mas sem luz o que é que vai se fazer?

Pediram para o cara:
- Abre uma dessas para nós, meu amigo.

O cara destampou aquela cerveja e, mesmo quente, os “loco” se atracaram, tomaram aquela e pediram a segunda, pois quem toma uma quente toma duas, e meteram aquele troço espumando goela abaixo. Olharam para o bolicheiro, que continuava lendo o jornal e mascando aquele palheiro, e falaram:
- Cerveja não temos mais, parceiro?

O Nêgo Véio levantou a cabeça, cuspiu no chão e lascou:
- Tem sim. Mas é que as outras estão geladas lá nos fundos, na geladeira a bateria!

Os dois caíram na gargalhada, tomaram mais duas e foram embora. São personagens de uma vida real e amigos para sempre, o Kako e o Porca!
Fonte: Causos do Nêgo Véio. Neto Fagundes, 1 ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2016.

FALTA DE GRANA - Causos do Nêgo Véio (Neto Fagundes)



Um dos temas mais abordados pelo Nêgo Véio é a grana, mais precisamente a falta dela. Certo dia, um de seus amigos lhe perguntou:

- Nêgo Véio, tu diz que tá sempre sem grana, mas e o dinheiro que ganhou no jogo do bicho? Deu quase um milhão na cabeça!

- É verdade, meu amigo. Mas quinhentos eu gastei com bebida, cavalos e jogo de carta – respondeu.

E a outra metade?

- O resto eu gastei com bobagens.
Fonte: Causos do Nêgo Véio. Neto Fagundes, 1 ed. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2016.

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...