quinta-feira, 30 de março de 2017

Um Gaiteiro Com Ritmo de Fronteira (Por Danilo Ucha)


O gaiteiro Nelson Cardoso, um dos artistas mais autênticos da fronteira oeste do Estado, cujas músicas têm o ritmo e a poesia xucra dos campos fronteiriços, acaba de gravar um disco que em breve começará a ser vendido pela PolyGram.

            É um trabalho que mostra o poeta popular e o instrumentista talentoso que nasceram depois de um longo convívio de Nelson Cardoso com os usos e costumes de sua terra em carreiras de cavalo, marcações de gado, fandangos e manifestações culturais rio-grandenses. A produção foi feita por Ayrton dos Anjos, um dos principais responsáveis pela maior parte dos discos de músicos gaúchos aparecidos nos últimos anos.

            Não é, no entanto, o primeiro disco de Nelson Cardoso. Aos 42 anos, ele já possui uma vasta bagagem musical, iniciada quando, ainda jovem, aprendeu a tocar gaita com os músicos que animavam carreiras, pelo interior de Sant’Ana do Livramento, ou faziam a alegria dos peões e das chinocas nos bailes de fim-de-semana, em grandes fazendas ou nos ranchos de pau-a-pique espalhados pelos corredores ou esquinas de campos.

            Há dois anos, gravou seu primeiro elepê “solito”, “Meu Jeito”, numa iniciativa independente, mas, antes, já participara de outros dois elepês com o conjunto “Os Vaqueanos”, que fundou, em 1967, junto com Heber Artigas, conhecido como “Gaúcho da Fronteira”, e Adair de Freitas.

            O trabalho da segunda metade dos anos 60 foi pioneiro, pois o nativismo não estava em alta cotação, como atualmente, e eles conseguiram viajar por todo o País, levando a música do Rio Grande do Sul aos demais brasileiros. “Os Vaqueanos” conquistaram fama e foram até chamados ao Rio para apresentar-se na TV Globo. Em 1972, os membros do grupo resolveram seguir carreiras independentes, desfazendo-se o conjunto.

            Nelson Cardoso resolveu voltar para as terras da família, nas “Pitangueiras”, em Livramento, e dedicar-se às lides do campo. Não abandou, porém, a velha gaita, companheira dos longos entardeceres do pampa e de algumas esporádicas excursões pelos bailes das redondezas ou de algum festival de música nativista. Paralelamente, fundou o piquete “Negrinho do Pastoreio”, que todo o mês de setembro monta animado “fogão” lá pelas bandas da “Pecuária” e coloca nas ruas da cidade mais de 600 homens a cavalo desfilando em homenagem ao “Decênio Heroico”. As “festas farroupilhas” do “Negrinho do Pastoreio”, onde nunca falta carne, são as mais famosas do nativismo popular santanense. Há sempre chimarrão e trago de canha buena. E em roda de músico, não falta nunca a boa música.

            Neste novo disco, onde conta com a participação de Albino Manique (gaita) e Luiz Cardoso (violão), entre outros músicos, Nelson Cardoso gravou composições próprias, de Adair de Freitas e de Lauro Simões, além de duas músicas recolhidas junto a velhos gaiteiros da região da Campanha. Uma delas tocada pelos músicos do batalhão “Pé no Chão”, corpo guerreiro das antigas revoluções rio-grandenses, a outra, intitulada “Marcha do Cati”, que levantava os ânimos dos soldados do coronel João Francisco nos tempos do acampamento famoso.

            São músicas alegres, agitadas, ágeis, que movimentam o disco de Nelson Cardoso, que ele mesmo considera um trabalho “parelho e bem elaborado”.

            Uma das músicas novas, que certamente fará sucesso, é “Cordeona, Ponteio e Canto”. Há, também, “Para um pouco e vem de novo”, que nasceu da necessidade que ele tinha de explicar às pessoas porque estava demorando a fazer um novo disco. Na milonga “Parceiro”, Nelson Cardoso fala de amor e romance, duas coisas sempre presentes em suas músicas; e, na valsa “Sentimental”, mostra um estilo antigo, bem galponeiro, simples e tocante. “É só largar esta valsa, de manhãzita, num final de baile, que os índios veios, mesmo com um baita facão atravessado na cintura, começam a lacrimejar”, diz o poeta.

            Por tudo isso, vale a pena esperar pelo novo disco de Nelson Cardoso. Ayrton dos Anjos promete coloca-lo no mercado o mais breve possível.

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO I – Nº 4

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sábado, 25 de março de 2017

O Canto Missioneiro de Cenair Maicá (Entrevista)

  

  Temporariamente afastado da atividade artística, por causa da saúde abalada, nem por isso o cantor missioneiro Cenair Maicá perdeu seu espaço na música regional gaúcha, conquistado através de uma carreira marcada pelo vigor com que canta não apenas as coisas e a gente de sua região, mas igualmente as agruras e as esperanças do gaúcho de todas as etnias e latitudes.

Ao contrário do ostracismo, seus amigos e admiradores reservam-lhe carinhosamente o lugar que é seu e que se espera volte a ocupar novamente a curto prazo. Enquanto isso não acontece, a Tarca foi ouvi-lo no apartamento em que está morando em Porto Alegre, “meio embretado”, como ele próprio define.

Cenair falou sobre muitas coisas, abordando desde as alterações na vida política nacional até as recordações de sua infância, na mistura da vivência brasileira-correntina. Em todos os momentos transpareceu sua singela sinceridade, que também caracteriza os versos que canta, com inspiração e competência, desde os dez anos de idade.

TARCA: Gostaria de tua opinião sobre a Califórnia e o Musicanto, porque hoje há uma discussão em torno de um e outro, comparativamente...

CENAIR: No último Musicanto não estive. Na última Califórnia também não fui. Mas os comentários que ouvi foram negativos. Parece que eles não foram muito felizes na seleção que fizeram. Até os caras das gravadoras comentaram que não gostaram muito do repertório. Pelo que ouvi, nem comercialmente agradou. Mas acho que os dois festivais têm uma estrutura grande. Santa Rosa tem um festival novo, onde resolveram investir, botar dinheiro e fazer um negócio grande. Penso que o que falta realmente é uma conscientização do tipo de coisa que eles querem fazer. Eu imaginava que Santa Rosa pegaria uma seleção de músicas da América toda. Na realidade, parece que o Musicanto teve uma infiltração do pessoal lá de cima, desses caras que estão fracassados nas músicas urbanas, vieram e se apagaram... Eu não quero dizer com isso que o Nelson Coelho de Castro seja um fracassado. O trabalho dele está todo aí. Mas eu senti que houve um avanço dos caras para pagar toda aquela organização de forma oportunista e não se proporcionou essa abertura em termos de América, de ritmo. Se analisarmos a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, vemos que eles são riquíssimos em ritmo, são mais ricos que nós, porque a cultura deles é mais avançada que a nossa. Enquanto o império da Espanha, na época, se preocupava em trazer cultura para o povo deles, aqui, o império de Portugal se preocupava em conquistar mais terras. Então nós tivemos um atraso tremendo culturalmente em relação à Espanha, principalmente na nossa região. Hoje, se olharmos o folclore da Argentina veremos que ele é muito mais rico que o nosso. O próprio governo deu condições para isso. Tem maestros lá com 80 anos que desde jovem são músicos, compositores, músicos de terra. Se pegarmos Montiel, Cocomarola, Isaco e tantos outros, veremos que são gente que tem mais de 50 anos dedicados à música folclórica. Nós não temos isso. Se analisarmos nossos músicos, veremos que tudo é gente nova. Os antigos não tinham cultura, não tinham trabalho... Pedro Raymundo, o primeiro a divulgar a música gaúcha, era um catarinense; não tinha vivência campeira. Teixeirinha é outro que popularizou o gaúcho no Brasil inteiro com uma imagem errada.

TARCA: E o conjunto Farroupilha?

CENAIR: O Conjunto Farroupilha foi um conjunto bom, que não era tão folclórico, não era gaúcho. Tinha músico bom mas não era gaúcho.

CULTURA E INFLUÊNCIAS

TARCA: Então é um problema de colonização?

CENAIR: É um problema de colonização. Para citar um exemplo, em mil oitocentos e pouco, aqui no Brasil existia uma só universidade, enquanto na Argentina já havia mais de oitenta.

TARCA: E a ideia da Universidade das Missões?

CENAIR: Acho uma beleza essa ideia. Já faz mais de dez anos que ela surgiu. Inclusive naquela época eu estava nas Ruínas (de S. Miguel) e cheguei até a fazer alguns trabalhos junto com os professores que estavam lá, interessados em fazer uma campanha. Considerei uma beleza, mas até agora ficou só na conversa; não houve nada sério.

TARCA: Ela facilitaria o trabalho de vocês músicos, artistas?...

CENAIR: Sem dúvida. Quando surgiu o movimento nativista, nós começamos esse movimento. Quando o Jayme Caetano Braun iniciou esse movimento, aqui em Porto Alegre (a falar em nativismo), nós, lá nas Missões já falávamos em nativismo. Então surgiram mais de 500 centros de tradições gaúchas. Mas todo mundo se preocupava em fazer bailes, em construir galpões. Aí, surgiu, lá nas Missões, a ideia de se fazer um centro nativista. O Jayme deu cobertura aqui, e nós fizemos lá em São Miguel um centro. Nesse centro, uma dessas propostas era esta: desenvolver a história das Missões nos colégios primários, assessorados pelo centro de nativismo, e outras ideias que viessem ao encontro da nossa história, porque lá se chegarmos à um guri, ele não sabe nada da história das Missões, não saberá dizer nada sobre as ruínas, porque os colégios não ensinaram: só agora começaram a ensinar. Então a nossa ideia era essa. Mas depois o movimento tradicionalista entrou numa de só querer fazer bailanta, cancha de bocha... É difícil de formar uma cultura. Isso aí teria que ter assistência do governo, das instituições.

TARCA: Mas tu achas que essa universidade teria repercussão local e que o pessoal deveria aderir a esse movimento cultural?

CENAIR: Mas acho que está todo mundo na ânsia, lá nas Missões, principalmente. Eles estão numa campanha há muito tempo por uma universidade nas Missões; depois surgiu esta de fazer uma internacional e o pessoal tá na ânsia. O que falta lá é liderança, ou melhor, os líderes de lá são todos ligados ao governo e geralmente não fazem nada. Sempre enfrentamos esse problema.

TARCA: E esse Festival das Missões. Como é que tu vês?

CENAIR: Isso aí nós também tivemos a ideia, já faz tempo, e não encontramos ressonância justamente entre nossos líderes políticos; não encontramos força. Agora pode ser que saia. É preciso divulgar. Aquele Simpósio de Santa Rosa também foi um negócio que repercutiu bem inicialmente, depois parou um pouco. Mas eu acho que ainda está em pé o Simpósio de Estudos Missioneiros. Tinha uns trabalhos culturais muito bons. Acho que a salvação do nosso povo, da nossa juventude, está aí. Quando tirarmos essa gente dessa alienação bárbara, desse americanismo, do Rock in Rio, a salvação dessa gente é por aí; uma universidade que conscientize sobre nossos valores. Do contrário não temos porque estar estudando. Estudar aí para veicular rock (...) talvez essa juventude esteja recebendo uma formação errada. Sempre fui músico desde guri, mas preocupado em cantar aquilo que recebi em minha formação, que herdei de minhas raízes.

CTG E MOVIMENTO

TARCA: Poderias fazer uma análise do surgimento dos CTG’s, sua atuação até os dias atuais, a contribuição que eles têm dado, ou que deixam de dar?

CENAIR: Olha, não vou dizer que o CTG, que o MTG em si, o movimento não salvasse muita coisa bonita do passado. Quando surgiu o movimento tradicionalista gaúcho, em trinta e pouco, quarenta e pouco, eu nem existia, mas vejo assim: converso com o Jayme Caetano Braun, com esses caras mais antigos e noto que quando surgiu esse movimento, a intenção deles era preservar a cultura. Então não vou dizer que eles não preservaram muita coisa, mas chegou uma época em que se perderam no tempo, viraram bailanta ou centro recreativo, se marginalizando. Depois surgiu esse outro movimento cultural do qual fomos pioneiros, que é o nativismo. Nós partimos para o nativismo com Sepé Tiarajú. Na verdade o nativismo nasceu com Sepé Tiarajú nas Missões. Foi o primeiro nativista registrado na história. Um cara que se ergueu e morreu pela terra dele, pelas coisas dele, isso é a base do nativismo. Então surgiu esse movimento aí e hoje tem força, e o MTG, e o CTG estão se recuperando através dele. Os centros de tradições podem fazer um trabalho muito bom ainda, eles têm estrutura, acho que tem mais de mil centros de tradições, com associados, com direção, com verba. Se o pessoal conseguisse usar essa estrutura para fazer um trabalho cultural...

TARCA: Como encarar as comemorações atuais da semana farroupilha?

CENAIR: Acho que para se fazer uma homenagem aos heróis da Revolução Farroupilha, terá que ser um negócio mais religioso, mais silencioso até do que se reunir em praça, beber cachaça, tocar gaita e fazer folia. Isso não tem nada a ver, pois a batalha dos Farroupilhas foi um troço sangrento, foi triste, onde muita gente morreu e que deveria ser lembrado com respeito maior e não com atividades festivas. Não há motivo para o pessoal andar comendo tanto churrasco. Caiu nas mãos do oficialismo e virou festa. Então a Semana Farroupilha é festa em tudo que é cidade, uma beberrança de cachaça.

TARCA: Há quem diga que é o carnaval dos gaúchos...

CENAIR: Uma vez, ainda guri, o primeiro choque que levei foi assim: tinha uma velhinha, mãe de um amigo meu. Aí nós desfilamos à cavalo e deixamos os cavalos atados na frente do rancho, e dê-le festa e dança. Fomos na casa dele para mudar de roupa e deixamos os cavalos atados no sol e dissemos: Mas tá linda essa semana Farroupilha! Que gauchada! E a velhinha disse: “Mas eu passei agora ali, quando fui no açougue, e não vi gaúcho nenhum. Vi foi os bandidos deixarem os cavalos passarem sede lá. Gaúcho não deixa cavalo passando sede no sol”. Aquilo me chocou. E outro troço que me chocou também, num desfile desses foi na hora do churrasco, num capão. Quando nós nos preparávamos para comer aquele churrasco, olhamos para a cerca e estava cheio de crianças com fome, ali, olhando. Aquilo me estragou a inspiração de ser um gaúcho, essa farra, essa festa. Então acho que o primeiro passo do movimento tradicionalista seria salvar esse lado aí, equilibrar o problema social do gaúcho para depois fazer festa.

TARCA: Cenair, vamos falar sobre o período em que estivestes em São Paulo, numa época em que havia recrudescido a censura. Chegaste a participar de um espetáculo com outro músico gaúcho?

CENAIR: Nós tivemos uma época de ouro, foi a época em que fui para São Paulo com o Noel Guarany. Ele já tava lá. Eu fui ver um cartaz. O primeiro nome do cartaz era o dele, depois Chico Buarque de Holanda, Milton Nascimento, Elis Regina. A censura pegou aquele espetáculo e foi o azar do pobre do Noel.
            
Os caras deram força para ele, ele teve na pauta, ia comandar aquele troço, praticamente. Um ano depois eu fui para lá com o Noel e nós tivemos o apoio daqueles caras. Eles reuniram, na época, os jornalistas para fazer uma cobertura boa para o nosso trabalho. Mas o Noel, com aquela maneira de ser dele, louco de briguento, brigou com todos os jornalistas, se agarrou com os homens, tive que entrar também não ia deixar meu companheiro mal. No fim ele atrapalhou nosso trabalho. Tivemos que voltar. Foi uma pena, porque se naquela época o Noel tivesse mais amadurecido, eu tivesse mais condições...


FAMÍLIA

TARCA: De onde tu és?

CENAIR: Nasci no município de Tucunduva na costa uruguaia. Quando tinha uns dois anos, meu pai foi morar na Argentina, tirar madeira lá no sertão. Então nos criamos ali naquela região; moramos oito anos do lado argentino. Era divertido o acampamento do velho. Sempre vinha aquela peonada de paraguaio, argentino, brasileiro embrenhada no mato...

TARCA: Como era o nome do teu pai?

CENAIR: Armando, mas todo o mundo o conhecia por Mandico. Falei nele naquela música do Sapucai, “o Mandico se alegrava”. Deu na televisão. Meu pai é que fazia o Baile do Sapucai. Meu pai sempre foi arteiro lá na costa. Ele era o chefe dos chibeiros. O negócio dele, além de madeira, era cruzar farinha, azeite, sabão, graxa... contrabandeavam graxa. Quando pesava a barra, e a gendarmeria andava patrulhando a região, os chibeiros, que eram amigos, saíam a cavalo a avisar. Nós morávamos do lado de lá, mas o baile ele fazia do lado de cá. Tu vê que o velho usava a cabeça. Até as armas de gendarmeria ele pegava e deixava lá em casa e trazia os caras pro baile. Ele gostava de cachaça brasileira. Ele fazia o baile e entretinha os gendarmos. Tinha até os pares certos. Para aturar as negras cheirando a picumã ele levava brilhantina e passava nas mãos e, brincando, passava no cabelo das negras.

TARCA: Quantos irmãos?

CENAIR: Somos oito irmãos. Aliás, somos nove irmãos homens e uma mulher, mas um é falecido.

TARCA: Vocês todos se mantiveram naquela região ali?

CENAIR: Um deles veio estudar em Santa Rosa, o Russo. O resto ficou lá. Depois, quando começamos a cantar vim para a cidade. Nessa época eu tinha uns 10 anos. Nós viemos para Santa Rosa, já viemos para cantar. Sugeriram pro pai que nos trouxesse para a cidade para cantar. Nós chegamos e fomos na Rádio Sulina de Santa Rosa. Aí surgiram as duplas: o Russo e o Darci formaram uma dupla, eu e o Adelmo formávamos outra dupla. E depois o Manoel fez outra dupla, já em Santo Ângelo.

TARCA: Cenair, e quanto ao fato de já existir um número expressivo de artistas cantando naquela parte do Estado, aquele estilo de vida: você pode dizer que dentro do contexto da nossa música já existe um estilo missioneiro de cantar, com influência e espaço garantidos na nossa música?

CENAIR: Bom, na verdade é que a música missioneira sempre existiu, no Paraguai, na Argentina, no Uruguai. No Brasil é que não existia. Então, a partir da década de 70, sessenta e pouco, nós fizemos os primeiros registros dessa música com o Noel. Ele e eu gravamos um compacto nas Missões e iniciamos uma campanha para afirmar nossa música que aqui não era reconhecida. Vínhamos aqui em Porto Alegre e nos diziam: Ah, essa música acastelhanada, e tal. Então iniciamos uma campanha com uma música mais no estilo cultural, porque na época o músico tinha que tocar era música de baile, como os Bertussi, ou música sertaneja paulista, senão não era música a que o povo estivesse acostumado. Havia uma predominância da música sertaneja e dessa serrana dos Bertussi.
            
Então iniciamos cantando essa música das Missões e tivemos dificuldades, é claro. Depois iniciamos no meio estudantil – Santa Maria é que deu força para a nossa música. Aí surgiu o festival de Uruguaiana, e então o negócio foi melhorando, pegando força, surgindo novos valores.

TARCA: Mas vocês apenas usaram o que já estava disponível em termos de ritmo, de motivação, ou trabalharam em cima disso e criaram um estilo novo, uma nova forma de cantar?

CENAIR: Praticamente criamos o estilo. Eu, por exemplo, como iniciei a cantar – é claro que a gente tinha influência da Argentina, de toda a parte, de São Paulo, dos Bertussi – mas procurei fazer assim da maneira que eu sentia, que eu gostava, numa mescla que deu certo. Ela se diferencia de todas as outras. O meu estilo, o do Noel, o do Pedro Ortaça, somos todos de uma mesma região, mas cada um com seu trabalho e com a sua característica.

TARCA: E qual é o próximo passo de vocês?

CENAIR: Acho que a música é uma constante renovação. Tenho certeza disso na prática. Música não pode parar, não pode ficar num lugar só. Música pra pegar a estrada, como nós dizemos, tem que andar hoje aqui, amanhã noutra região, pra ir pegando novo sabor, pra ter inspiração. Se o músico ficar só num lugar, morre a inspiração dele. Cai no dia a dia. Cai na rotina.

TARCA: Principalmente aqui em Porto Alegre, não é?

CENAIR: Porto Alegre é um cemitério de músicos. Músico precisa de ambiente novo sempre. Tomara que eu nunca tenha que tocar na noite, num bar pra poder ganhar o pão de cada dia. Parece que o músico morre. Ele é obrigado a estar trabalhando ali para ganhar alguns trocos, para comer, beber, pra se manter. Isso mata o músico, a inspiração.

DISCOS E GRAVADORAS

TARCA: Quando lançaste teu primeiro LP?

CENAIR: Em 78 lancei o primeiro LP e em 70 gravei um compacto. Então, quando vim pra cá, cheguei numa rádio, a divulgadora da gravadora estava comigo. Um velhinho, em Canoas, tinha um programa de “20 anos de Rádio”, como ele dizia. Daí ele falou pra mulher que tinha uma dupla sertaneja pra gravar e não deu muita atenção pro meu disco. Fiquei meio intrigado e disse pra ele: “Eu quero lhe fazer uma pergunta: já que o senhor diz que tem 20 anos de rádio, por que é que nós aqui do Rio Grande do Sul, que somos músicos da terra – eu gravei um LP agora – temos tanta dificuldade de chegar numa rádio e tocar a nossa música?”
           
 “Vocês só querem tocar a música de São Paulo. Por que isso?” Daí ele me respondeu: “Sabe por que moço? Porque os paulistas gravam disco, botam embaixo do braço e saem a divulgar em tudo que é rádio do Brasil inteiro a trabalhar e vocês ficam aí tomando chimarrão, comendo carne embaixo da sombra e querem que o trabalho de vocês apareça”. Daí eu disse: “Mas eu estou aqui com o meu trabalho, já estou batalhando há anos e nada.” Ele falou: “Então eu vou dar atenção pro seu trabalho”. E de fato o velhinho sempre toca as minhas músicas aí no programa dele, em Canoas.

TARCA: Como é que tu vês os festivais?

CENAIR: Embora os muitos oportunistas que estão tirando proveito por aí, vejo com bons olhos esses festivais. Agora mesmo quando a gente liga a televisão, de repente vê uma música nossa. O rádio também toca as nossas músicas.

ASPECTOS SOCIAIS

TARCA: Algumas das letras das tuas músicas demonstram uma preocupação com o aspecto social, principalmente em relação ao homem, o campo, as relações de trabalho. Isso é uma coisa marcadamente característica ou foi uma fase do teu trabalho?

CENAIR: Acho que isso já vem de berço. Somos de uma família humilde, nos criamos trabalhando. Uma das músicas que me marcou e que felizmente consegui compor na hora certa foi a do homem rural. Para essa música me inspirei num vizinho que trouxe das Missões de carona, pra deixar na Santa Casa. Vi todo o drama que o velhinho enfrentou. Foram três dias para internar o homem. Aí me inspirei e surgiu o Homem Rural.

TARCA: Acho que foste o primeiro a cantar esse tipo de música.

CENAIR: Sempre tive essa preocupação. Acho que o músico, além de cantar as coisas bonitas, a alegria, tem que ser um porta-voz do povo. Se o nosso povo tá sofrendo, tá passando fome, tá com problemas, não adianta ficarmos cantando que o gaúcho vive numa riqueza tremenda. Acho que isso, inclusive é uma imagem distorcida que outros cantores mais antigos fizeram do gaúcho. É o caso do Pedro Raimundo, do Teixeirinha – são cantores que distorceram a imagem do gaúcho. Teixeirinha talvez não fizesse por maldade, porque ele não era homem campeiro e viveu fora da realidade. Distorceu que o gaúcho é fanfarrão, que mata cinquenta, que dá tiro, que é agressivo. Dos gaúchos que conheci nenhum era assim. Ele é respeitoso, não é um cara grosso. Acho que o gaúcho é um cara que tem cultura, é esclarecido. Com essa imagem que foi pintada, as gravadoras se aproveitaram para vender disco. Isso aconteceu também na Argentina.

TARCA: O fato de tu seres de uma região tipicamente colonizada por europeus – não é uma região de gaúchos no sentido clássico que se dá na campanha – isso não te provocou uma certa contradição?

CENAIR: É, a região de Tucunduva é uma região de italianos. Se tu analisares a minha música vai ver que não estou muito preocupado em cantar só aquele gaúcho que existiu no passado. Estou preocupado com o gaúcho do presente, nessa mescla. Com a herança que ficou, que herdei do meu pai, que tem as origens no homem do campo mesmo, essa herança cultural é que me preocupa. O próprio italiano quando chegou aqui se apegou às nossas tradições, tanto que ele cultua até hoje. Aderindo ao chimarrão, à bombacha, ao cavalo, ao campo e eu sou herdeiro dessa cultura. Isso é o que me interessa divulgar e preservar.

TARCA: Com relação ao trabalho esse, enfocando os problemas sociais, tu enfrentas alguma dificuldade para divulgá-lo? Não há uma certa restrição quanto à aceitação?

CENAIR: O problema político? É isso aí a maior preocupação. Inclusive eu estou pra gravar um LP. Aí o cara levou as minhas letras pra censura. Os caras já começam a barrar. Acho que a censura precisa acabar. Não adianta nada isso. Fomos pra São Paulo pra fazer o lançamento do meu novo disco o “Canto dos Livres” e nos barraram lá. Eu já tinha gravado o disco lá no Som Brasil mas o resto da programação foi tudo trancado. Trancaram o disco, dois meses censurado.

TARCA: Mas quem fez isto?

CENAIR: A Censura Federal. Então me barrou a carreira. Fiquei dois meses com o disco parado. O meu trabalho parou, tive que vir embora. Então eu acho que isso aí só atrapalha a gente.

TARCA: E é uma coisa presente ainda hoje?

CENAIR: Claro. O cara vai gravar um disco e tem que estar preocupado com as letras, temperando. Eu acho ridículo isso aí. Não vejo a hora de acabarem com a censura, principalmente sobre essa coisa que o nosso povo sente e pensa. Não tem porque estar censurando. O que é que tem para censurar no Canto dos Livres? Não estou agredindo ninguém, estou apenas dizendo o que sinto.

FESTIVAIS E NOVOS ESPAÇOS

TARCA: Num certo momento, os festivais de música nativa abriram espaços e contribuíram para a aceitação de nossa música. Mas já há quem diga que hoje o excesso de festivais prejudica qualitativamente o trabalho dos nossos artistas. Qual é a tua opinião a respeito?

CENAIR: Bom, a minha opinião é a seguinte: eu até não participo de festival, não concordo – tenho é feito música para irmãos concorrer, pra amigos, desinteressadamente. Acho que essa concorrência no meio artístico é prejudicial. Ela não deveria existir.

TARCA: Com a mudança, no quadro político nacional continuarão abordando o aspecto social no teu trabalho?

CENAIR: Na realidade, muda um pouco, já não se faz um “ataque” de oposição como se estava fazendo. Agora perde um pouco o sentido. É preciso esperar para ver o que os homens vão fazer. Se eles continuarem negando o que o nosso povo tem direito e o que precisa, acho que é um dever do artista sensibilizar as pessoas para os problemas do povo. Acho que além de cantarmos somente as alegrias e tristezas de nosso povo, devemos também cantar suas necessidades. Creio que não devemos nos preocupar com isso agora, vamos aguardar para ver.

TRANSPLANTE EM MARÇO

TARCA: Vamos satisfazer uma curiosidade de todo o teu público: Como está tua saúde?

CENAIR: Estou com insuficiência renal. Estou mais ou menos seis meses sem trabalhar. Faço alguns shows esporadicamente. Não faço um trabalho continuado porque não há condições físicas. Estou dependendo de uma máquina que está substituindo meu rim. Faço hemodiálise duas vezes por semana. Uma ou duas vezes por mês, faço uma apresentação. A gente está aguardando o transplante que está previsto para o mês de março. Fiz alguns exames com meus irmãos, e três deles têm rim idêntico comigo. Quer dizer a formação genética. Então, desses três, um vai me doar um rim. Depois do transplante, vou ter um pouco de cuidado para me recuperar bem. Vou ficar bem normal. Aí vai dar para continuar o trabalho.

TARCA: Qual o tempo de recuperação, após o transplante?

CENAIR: Trinta, no hospital. Depois, mais uns sessenta dias em casa. Daí já vai dar para trabalhar firme.

TARCA: Onde vais fazer o transplante?

CENAIR: Com a equipe do Dr. Busatto, no Hospital Conceição, que são os pioneiros em transplantes no Rio Grande do Sul. Fazem transplantes há mais de quinze anos. Já fizeram mais de noventa, e isto dá uma segurança maior, acho que estou em boas mãos.

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO I Nº 05 – Set/1984

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...