terça-feira, 27 de junho de 2023

Sou isso, enfim… (Álvaro de Campos)

 


Começo a conhecer-me. Não existo.

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,

Ou metade desse intervalo, porque também há vida…

Sou isso, enfim…

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.

É um universo barato.



Capa: Almada Negreiros (1954)

Fonte: Pessoa, Fernando, 1888-1935. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. Coleção a obra-prima de cada autor. Série Ouro; 47, p. 370

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segunda-feira, 19 de junho de 2023

Prefiro rosas (Ricardo Reis)

 


Prefiro rosas, meu amor, à pátria

E antes magnólias amo

Que a glória e a virtude.


Logo que a vida me não canse, deixo

Que a vida por mim passe

Logo que eu fique o mesmo.


Que importa àquele a quem já nada importa

Que um perca e outro vença,

Se a aurora raia sempre,


Se cada ano com a primavera

Aparecem as folhas

E com o outono cessam?


E o resto, as outras coisas que os humanos

Acrescentam à vida,

Que me aumentam na alma?


Nada, salvo o desejo de indiferença

E a confiança mole

Na hora fugitiva.

1-6-1916


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 72/73.

Iludida mente (Ricardo Reis)

 


Frutos, dão-os as árvores que vivem,

Não a iludida mente, que só se orna

Das flores lívidas

Do íntimo abismo.

Quantos reinos nas mentes e nas coisas

Te não talhaste imaginário! Tantos

Sem ter perdeste,

Sonhos cidades!

Ah, não consegues contra o adverso muito

Criar mais que propósitos frustrados!

Abdica e sê

Rei de ti mesmo.

6-12-1926


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 102.

Nada somos (Ricardo Reis)

 


Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pese

Da húmida terra imposta,

Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, státuas altas, odes findas -

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

Poente, por que não elas?

Somos contos contando contos, nada.

28-9-1932


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 128/129.

Firme contigo (Ricardo Reis)

 


Ninguém a outro ama, senão que ama

O que de si há nele, ou é suposto.

Nada te pese que não te amem. Sentem-te

Quem és, e és estrangeiro.

Cura de ser quem és, amem-te ou nunca.

Firme contigo, sofrerás avaro

De penas.

10-8-1932


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 127.

Querer (Ricardo Reis)

 


Quer pouco: terás tudo.

Quer nada: serás livre.

O mesmo amor que tenham

Por nós, quer-nos, oprime-nos.

1-11-1930


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 120/121.

Inglória é a vida (Ricardo Reis)

 


Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.

Quantos, se pensam, não se reconhecem

Os que se conheceram!

A cada hora se muda não só a hora

Mas o que se crê nela, e a vida passa

Entre viver e ser.

26-4-1928


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 112/113.

Segue o teu destino (Ricardo Reis)

 


Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.


A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.


Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixa a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.


Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos deuses.


Mas serenamente

Imita o Olimpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

1-7-1916


Capa: Marcellin Talbot

Fonte: Pessoa, Fernando. Poesia de Ricardo Reis. Coleção a obra-prima de cada autor (250). São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 74/75.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Adultos (Camila Fremder)

 

Adultos acham que precisam ser fortes e seguros de si para serem adultos, mas essa é a parte mais infantil de ser adulto. Você tem que ser muito corajoso para dizer que está triste, decepcionado, com vergonha, sem graça, sem jeito. Mais ainda para pedir ajuda, um abraço ou desculpas. Não acho que adultos sejam bons nisso. E é no mínimo curioso que algo tão natural como ficar chateado de vez em quando seja visto como sinal de fraqueza. Na minha opinião, a parte mais corajosa da gente é a que mostra a verdade.

(…) a gente mente o tempo todo. Mentimos idade, inventamos uma vida inteira nas redes sociais, criamos nomes de profissões supercomplicados para “agregar” mais importância por pura vaidade. E a gente adora criticar tudo e todos só para ter uma opinião. Porque adultos sentem necessidade de opinar sobre todos os assuntos.

Você cresce quando aprende algo novo, quando aceita o que não esperava, quando entende outro ponto de vista, quando enfrenta um medo, quando reconhece um erro e pede desculpas… Envelhecer faz parte do jogo, crescer e se aprimorar com as experiências que vive.



Capa: Ale Kalko

Ilustração: Veridiana Scarpelli

Fonte: Fremder, Camila. Adulta sim, madura nem sempre: fraldas, boletos e pouco colágeno. 1ª ed. São Paulo: Paralela, 2018, p. 13/22.

Lídio (Camila Fremder)

 Eu tive uma paixão platônica tão grande por um chefe que, sem querer, chamei-o de lindo no meio de uma reunião. Ele olhou assustado para mim:

- Oi?

- Lídio, eu disse lídio, você lembra muito o meu amigo Lídio.



Capa: Ale Kalko

Ilustração: Veridiana Scarpelli

Fonte: Fremder, Camila. Adulta sim, madura nem sempre: fraldas, boletos e pouco colágeno. 1ª ed. São Paulo: Paralela, 2018, p. 67.

domingo, 4 de junho de 2023

Última página (A cama na varanda, Regina Navarro Lins)

 

Quando nascemos, somos colocados no mundo com padrões de comportamentos fixos e determinados. Com a educação e o convívio, vamos absorvendo os valores da nossa cultura. E isso é feito de tal forma que na vida adulta torna-se difícil saber o que realmente desejamos e o que aprendemos a desejar. Observa-se que a insatisfação é geral – nunca se venderam tantos ansiolíticos e antidepressivos como agora -, mas modificar a maneira de viver e de pensar gera ansiedade. O novo, o desconhecido, assusta. Entretanto, repetir o que é aprendido como verdade absoluta gera sofrimento.

Há cerca de 30 anos, assisti à peça No natal a gente vem te buscar, de Naum Alves de Souza, que ilustra de forma dramática a submissão aos valores sociais. Tentarei reproduzir a parte da história que registrei e o diálogo que nunca me saiu da memória.

Duas irmãs e um irmão. Uma delas não saía, ficava em casa com os pais, totalmente submetida aos conceitos de certo/errado, bom/mau, que tinha absorvido. Sua vida se resumia a ser guardiã da moral e dos bons costumes. Recriminava a tudo e a todos por suas atitudes e comportamentos. Os irmãos, por sua vez, buscavam viver suas vidas. O tempo passa, os pais morrem e ela torna-se cada vez mais amarga. Num determinado momento, os irmãos são chamados para acudi-la, pois está enlouquecendo de tanto sofrimento. Ao vê-la naquele estado deplorável, o irmão, perplexo, comenta com a irmã:

Eu não entendo. Ela ouviu de nossos pais as mesmas coisas que nós ouvimos.”

A irmã, então, lhe diz:

É… só que ela acreditou.”

O fim do patriarcado traz nova reflexão sobre o relacionamento entre homens e mulheres, o amor, o casamento e a sexualidade. Nossas convicções íntimas mais arraigadas são abaladas, projetando-nos num vazio. Os modelos do passado não respondem mais aos nossos anseios e nos deparamos com uma realidade ameaçadora, por não encontrarmos modelos em que nos apoiar, em tempo algum, em nenhum lugar.

Essa pode ser a grande saída para o ser humano. Percebendo as próprias singularidades e não tendo mais que se adaptar a modelos impostos de fora, abre-se um espaço em que novas formas de viver, assim como novas sensações, podem ser experimentadas.



Capa: Folio Design

Fonte: Lins, Regina Navarro. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. 14ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2020. p. 458.

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...