sábado, 25 de março de 2023

O diário de Cecília (Rachel de Queiroz, Última Hora, 14/11/1983)


QUERIA hoje tomar um alívio de Nordeste, secas e aflições correlatas para falar de um livro que me deu para ler o querido Mem de Sá, livro que provavelmente causará impacto semelhante ao do “Meu Livro de Menina”, de Helena Morley. Este novo jornal que, como o de Morley, não tem nada de literário, nasceu das notas cotidianas tomadas por uma jovem entre os seus 16 e 29 anos de idade. É ele o “Diário de Cecília de Assis Brasil, período 1916-1928”.

A figura mais importante dessas duzentas páginas é na verdade o pai da moça, J. F. De Assis Brasil, sim, Assis Brasil em pessoa, o famoso líder liberal gaúcho. O senhor do Castelo de Pedras Altas, espécie de principado independente erguido entre Bagé e Pelotas, com suas torres góticas e seu estilo de vida europeu. Um europeu feudal, diga-se, curiosamente anacrônico, absolutamente patriarcal; aquele liberal intransigente em política era, na vida doméstica e dentro do seu enclave solarengo, um patriarca a governar com mão de ferro a tribo composta pela família e os agregados.

PELO menos é essa a impressão que fica no leitor, ao acompanhar as confidências de Cecília. Contudo, tão variada, contrastante e por vezes enigmática é a personalidade de Assis Brasil que, em algumas notas rápidas suscitadas pelo diário da filha, a gente só pode multiplicar os pontos de interrogação a respeito do homem. É imperioso que se faça um estudo biográfico que vá fundo na vida e na pessoa de Assis Brasil, dados a importância que ele teve na história da república, e o papel de protagonista que assumiu durante as lutas civis brasileiras da década de vinte, lutas cujo fulcro seria o Rio Grande do Sul.

Mistura de rusticidade e refino, a família Assis Brasil seria, claro, uma família atípica no panorama rural gaúcho. As moças tiravam leite como peões tradicionais – aliás agiam em tudo o que se referisse a gado e planta não como sinhazinhas brincando na queijaria e no jardim, mas se envolvendo completamente no manejo da granja e da fazenda, como donas efetivas e movidas por um interesse tão real que chega a ser apaixonado. E ao mesmo tempo liam Kippling e Longfellow, assinavam vinte e sete revistas inglesas, francesas e americanas, das mais diversas especialidades, indo da pecuária à horticultura, passando pela política e pela literatura. E isto, claro, não seria a regra, não poderia ser a regra em qualquer unidade rural do lugar e do tempo. Os barões paulistas do café e as suas famílias quatrocentonas seriam também fidalgos rurais, mas à moda inglesa e francesa, cada uma no seu casarão ricaço, entre móveis e cristais importados, com todo o conforto conhecido no tempo, e legiões de mucamas para servir sinhô e sinhá. Já no castelo de Pedras Altas, as Castelãs cozinhavam, batiam manteiga, trabalhavam na terra, cuidavam do gado e das ovelhas, saíam à caça – muitas vezes para prover a mesa. E assim, quando tiveram que enfrentar as agruras do exílio – e foram agruras mesmo, duríssimas, em rústicas estâncias uruguaias, a família adaptou-se sem fazer tragédia, levando as dificuldades, o desconforto, as condições de vida penosas, com uma bravura e um espírito esportivo absolutamente admiráveis.

DIFICILMENTE um compêndio de história ou um estudo sociológico nos diriam tanto e tão bem daquela época turbulenta do primeiro quartel do século vinte no Brasil e no Rio Grande do Sul, quanto o mostra ou deixa entrever o singelo diário da moça Cecília. Tratando-se de uma família atípica, como foi dito, essa mesma atipicidade é reveladora do que seriam os ideais e padrões da elite daquele tempo: ideais que a família Assis Brasil tentava realizar com maior ou menor êxito, para encanto e admiração dos conterrâneos e contemporâneos.

A mistura de um europeizismo intransigente – todos os valores culturais deviam ser europeus, naquela casa: basta contar que, obrigatoriamente, à mesa, em Pedras Altas, falava-se só em francês durante o almoço e só em inglês ao jantar, e é inegável que havia uma porcentagem alta de esnobismo nessa aparente intenção didática. Mas o mesmo diplomata feito fidalgo camponês, que reinava naquele Mônaco tropical com o seu castelo de cenário ópera, ensinava a filha moça a parar rodeio, a carnear uma rês abatida, a vacinar o rebanho contra aftosa, e manter minucioso registro genealógico, quero dizer o pedigree do rebanho Devon, raça de gado inglês em que Assis Brasil punha uma paixão intolerante. E é na face rural e rústica da vida de família, que a moça Cecília se revela com maior espontaneidade e encanto. Muito característico é que, falando por exemplo, em presentes de aniversário cobiçados e ganhos por ela ou pela irmã, não se trata de joia ou perfume francês ou roupa fina: o que elas pedem e recebem é uma faca de prata, especial para carregar à cinta, ou uma fina arma de caça. Tratam pessoalmente dos seus arreios, mandam curtir pelegos da pele de ovinos abatidos; Cecília tem o seu tear próprio onde tece coberturas com lã que ela própria carda; lã tirada, é claro, dos carneiros que ela cria.

O Diário de Cecília é incompleto; perderam-se muitos cadernos entre 1916 e 1928. E de 1928 a 1934, quando Cecília morreu tragicamente, aos trinta e quatro anos de idade, atingida por um raio durante um passeio a cavalo, não consta nenhum registro. Claro que, não destinando a autora à publicação os seus cadernos, não houve preocupação dela e da família em preservá-los especialmente. E desconfio também que deve ter havido alguma pontinha de censura, algum corte de confidências nesta parte do jornal entregue a Carlos Reverbel – o responsável pela edição – para o seu excelente trabalho de coordenação e anotação. Digo isso porque é inimaginável que, nas anotações pessoais e íntimas de uma rapariga, desde os seus dezesseis até quase os seus trinta anos, não reponte nunca um sinal de romance, um namoro, uma veleidade amorosa sequer. Muito entusiasmo cívico, até mesmo hero-worship pelos valentes guerreiros seus correligionários. Mas no meio de tantos jovens políticos e tantos tenentes galantes de que a moça vivia cercada, nem uma pontinha de romance? Não dá para acreditar.

ESTÃO vendo, até por estas reclamações de leitora, quanto o livrinho é atraente. Documento vivo, com cheiro de sol e chuva, gosto de fruta, liberdade de corpo, doação generosa de trabalho e dedicação, amor à terra e às suas criaturas, por ele essa Cecília de Assis Brasil*, de vida e morte tão singular, torna-se de repente uma das figuras mais fascinantes de mulher da literatura nacional. Sem nunca ter feito literatura. Ou por isso mesmo.

* n. Washington DC, 26/05/1899; f. Pedras Altas, 11/03/1934


Fonte: Laitano, Cláudia. TUMULTUÁRIO: CADERNOS DE MEMÓRIAS DE CARLOS REVERBEL. [Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos de Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, Sociedade e História da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Luís Augusto Fischer]. Porto Alegre: 2022, p. 88.

Queiroz, Rachel. O diário de Cecília. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 14/11/1983

Acervo da família Reverbel

Resenha do livro “Diário de Cecília de Assis Brasil”

https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/242236/001145263.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Crédito Fotos: Joaquina e Lídia de Assis Brasil, 1983. Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília de Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L & PM, 1983. 

Crédito Imagem:CP Memória, Correio do Povo, 16/12/2022. Há um século no CP.

https://www.correiodopovo.com.br/blogs/h%C3%A1-um-s%C3%A9culo-no-cp/jornal-carioca-noticia-a-chegada-de-assis-brasil-ao-rio-e-critica-reelei%C3%A7%C3%A3o-de-borges-de-medeiros-1.937302

Acesso 25/03/2022

Foto Família Assis Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=Sodro81VgnI 

Acesso 26/03/2023


sexta-feira, 17 de março de 2023

"Patriarca" Borges de Medeiros, por Carlos Reverbel

Futuroso e outros adjetivos

Já funcionou em Porto Alegre uma bolsa política, cujas cotações eram apregoadas por intermédio de adjetivos, através das colunas do jornal “A Federação”, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense. O Dr. Borges, então presidente do Estado e chefe unipessoal do partido dominante, era quem punha e dispunha no singular pregão.

O adjetivo futuroso era reservado a jovens paladinos que se lançavam na carreira política. No início era empregado com fartura, alcançando a muitos competidores, indóceis no partidor quais fogosos corcéis, à imagem e semelhança dos que se apresentavam no hipódromo dos Moinhos de Vento. Com o tempo, começava a diminuir o emprego do adjetivo, até ficar limitado a uns dois ou três o páreo dos futurosos. Ficava-se então sabendo que pelo menos um entre eles seria incluído na próxima chapa republicana para a Assembleia dos Representantes, primeiro degrau da escalada parlamentar.

Como todo jornal, “A Federação” tinha um diretor, mas quem a dirigia era o Dr. Borges. Todo santo dia, ali pelas dez horas (o influente órgão era vespertino), um rapazote ia ao Palácio levar as provas do editorial e da matéria política, a fim de submetê-las ao crivo presidencial. O poderoso morubixaba as examinava, introduzindo-lhes modificações de próprio punho, se fosse o caso. E costumava fiscalizar, com especial rigorismo, o emprego dos adjetivos, para evitar repercussões equivocadas na bolsa política.

O saudoso companheiro Tircio Teles de Miranda Ferrari começou na imprensa local, ainda rapazola, exercendo as funções de estafeta entre “A Federação” e o Palácio do Governo. Durante alguns anos foi portador das provas tipográficas que deviam ser submetidas ao dono do poder, tarefa para a qual a pessoa era escolhida a dedo. O jovem estafeta terminou ficando amigo do Dr. Borges e um dos seus homens de confiança dentro de “A Federação”. E quando o velho cacique caiu, o Tircio Ferrari caiu junto, “morrendo” abraçado com o chefe, por pura lealdade, procedimento que poucos tiveram na ocasião, como sempre acontece em tais circunstâncias.

Já despido de todo o mando, um dia o Dr. Borges subiu as escadas do “Correio do Povo” e pediu ao Dr. Breno um lugar na redação para o Ferrari. O pedido foi atendido na hora e o Tircio Ferrari assumiu na redação do velho róseo o que então se denominava “página no interior”. E assim o tivemos na velha casa, como exemplar companheiro, até seu prematuro falecimento, tendo ele programado a própria morte, como nos tempos do romantismo. Uns poucos sobreviventes continuam a zelar pela sua memória. E toda vez que me lembro dele penso na palavra lealdade. Foi a lição que deixou aos amigos e a herança que legou aos parentes.

Admirável palestrador, o Ferrari conhecia de cor e salteado os adjetivos empregados e sua cotação na bolsa política de “A Federação”, recordando com muita verve episódios relacionados com a curiosa instituição, talvez a única, no gênero, que tenha existido no mundo partidário. Júlio de Castilhos, um ser substantivo por excelência, era colocado acima de toda adjetivação, recebendo, invariavelmente, o grau e o título de “patriarca”. Alguns republicanos históricos admitiam a superioridade do Arquiteto do Universo e de Augusto Comte. Outros, nem esta.

A escala das cotações, que começava modestamente, com o adjetivo futuroso, ia tomando vulto e ganhando proporções até chegar ao adjetivo preclaro, privilégio de muitos poucos, com a minguada nominata sendo encabeçada por Pinheiro Machado. Desde o momento em que assumiu a sua cadeira cativa no Senado, até o dia em que foi assassinado, pelas costas, conforme previra, as notícias de “A Federação” sobre o grande líder começavam sempre assim: “O nosso preclaro correligionário, senador Pinheiro Machado”, etc, etc. Antes de chegar ao Senado, nenhum prócer do Partido Republicano recebia o tratamento de preclaro.

Naquela época, havia uma miniatura do Dr. Borges, em termos de poder, na maioria dos municípios rio-grandenses, tendo-se o cuidado de que, sempre que possível, nas comunidades, de origem alemã e italiana, o cacique local fosse da mesma origem. O velho Muratore marcou época em Caxias, ainda quando as casas eram quase todas de madeira. Alcancei os restos dessa época, ocasião em que conheci o Italo Balen menino, mas já antecipando, pela inteligência e pelo coração, o homem que viria a ser, para os amigos, a família e a comunidade.

Assim como o Presidente não largava as rédeas do governo, reelegendo-se com absoluta regularidade, era de seu agrado dispor de prepostos que pudessem fazer o mesmo, nos municípios, dando preferência ao tipo do coronel à moda rio-grandense, bem diferente dos que atuaram e ainda atuam em outros pontos do país, com invejável sucesso em teimosas regiões nordestinas. Como o chefe, alguns desses coronéis chegaram a permanecer mais de 20 anos dando as cartas e jogando de mão.

Por incrível que possa parecer, eram eles quase sempre boas pessoas, no sentido paternalista. Não raro financiavam as atividades partidárias locais. E as suas posses frequentemente iam diminuindo, diminuindo, até deixá-los na clássica postura da pobreza com dignidade, com uma mão adiante e a outra no traseiro. A política municipal, com suas tricas e futricas, deixou muita gente de tanga, no tempo dos coronéis, com as exceções de praxe, naturalmente. Os coronéis eram aquinhoados pela “A Federação” com o adjetivo prestigioso, mesmo depois de prontos.

Conta-se que um desses militares da Guarda Nacional, ao ser recebido pelo Dr. Borges, teve a infeliz ideia de começar conjugando o verbo pensar. Interrompido de imediato pelo Presidente, que em tais circunstâncias costumava levantar o dedo em riste, não foi além da primeira pessoa do presente do indicativo: “Eu penso”. Então o Dr. Borges, cuja dignidade o elevara à casta dos intocáveis, tomou a palavra e proferiu uma frase que ficou célebre: “O senhor pensa que pensa, mas quem pensa sou eu”. Mais tarde ficou esclarecido que o sentido da frase fora distorcido, por obra do que então se chamava de intriga da oposição, campo onde atuavam eméritos fofoqueiros, tanto nas áreas municipais e estaduais, como naturalmente, também nas federais.

O que houve foi o seguinte: tendo o desastrado coronel cometido uma heresia partidária, o Dr. Borges, sempre rígido e ortodoxo, o advertiu na hora, com certa severidade, dada sua condição de chefe unipessoal do Partido. E, assim, quando disse “quem pensa sou eu”, não estava se referindo a si próprio, mas à entidade dona do Partido, que ele encarnava. O que, de resto, era absolutamente correto, pois o Partido, afinal de contas lhe pertencia, de fato e de direito, tendo sido recebido de mão beijada, em parte por herança e em parte por usucapião.

E tanto tudo isto era a pura expressão da verdade histórica que o Dr. Borges deixou a chefia num dia e logo no outro, de madrugadita, o então todo poderoso Partido Republicano Rio-Grandense começou a morrer, de tuberculose galopante, cabendo ao Dr. Getúlio botar a vela na mão do moribundo e segurar na alça do caixão do defunto.

(Março, 1979)



Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 33/35

Cartas e bilhetes (Carlos Reverbel)

 

O meu saudoso amigo Dario de Bitencourt, que foi uma figura de destaque como advogado, professor universitário e homem de letras, conservava uma preciosidade: o arquivo de Aurélio Veríssimo de Bitencourt, seu avô, que fôra secretário particular e grande amigo de Júlio de Castilhos.


Ao tempo em que governava o Rio Grande do Sul, Castilhos recolhia-se, com frequência, a uma chácara de sua propriedade – a Chácara da Figueira – comunicando-se com o secretário, que permanecia no Palácio do governo, através de cartas e bilhetes, levados a cavalo por soldados da guarda presidencial.


Quando Dario de Bitencourt, homem extremamente gentil e dotado de imensas reservas de boa vontade, colocou em minhas mãos o valioso arquivo de seu avô, permitindo-me copiar as cartas e bilhetes de Júlio de Castilhos a Aurélio Veríssimo de Bitencourt, esta documentação era conservada em seis pastas, abrangendo, em ordem cronológica, um período de dez anos, entre 1894 e 1903, sendo de notar que o derradeiro recado trazia precisamente a data de 11 de outubro de 1903, escrito, portanto, três dias antes da morte do estadista.


A continuidade da correspondência explica-se pela circunstância de que, mesmo depois de deixar o governo do Estado, em 25 de janeiro de 1898, substituído pelo seu discípulo dileto, Borges de Medeiros, o ex-presidente conservou o cargo de chefe unipessoal do Partido Republicano Rio-Grandense, mantendo Aurélio Veríssimo de Bitencourt como secretário particular, função que este passou a acumular com a de secretário do novo presidente, atuando, então, na dupla função de secretário de Júlio de Castilhos e e Borges de Medeiros.


Era uma eminência duplamente parda…”


Nesta alusão bem humorada, feita durante uma das muitas entrevistas que concedeu, Dario de Bitencourt quis significar que, além da cor parda, seu ancestral exercia certa influência política junto ao chefe do Partido, Júlio de Castilhos, e certa influência administrativa junto ao chefe do governo, Borges de Medeiros, o que não escapou à aguda inteligência de Ramiro Barcelos, no “Antônio Chimango”.


No famoso “poemeto campestre”, o Coronel Prates (Júlio de Castilhos) entrega o jovem Antônio Chimango (Borges de Medeiros) aos cuidados de Aureliano (Aurélio Veríssimo de Bitencourt), atribuindo-lhe o seguinte encargo:


Tu, que és um conhecedor

De tudo como se faz

Ensina-me este rapaz

As manhas de governar

Que ele vai desempenhar

O cargo de capataz.


Leva-o lá para o teu rancho

Vai-lhe ensinando os segredos

Que ele só conta nos dedos

E não tem nenhuma prática.

Ensina-lhe a tua gramática

Pra desmanchar os enredos.”


Como vimos, Júlio de Castilhos recolhia-se seguidamente, à Chácara da Figueira, situada junto ao morro da Cascata, hoje arrabalde da Glória e cuja área terminou sendo atravessada pela atual avenida Oscar Pereira. Naquela época, a zona da Glória não era sequer subúrbio, ficando em plena área rural do município de Porto Alegre. Daí referências como estas, aliás, frequentes nas cartas e bilhetes de Júlio de Castilhos ao secretário:


Aurélio, resolvi não ir hoje à cidade. O terreno está muito encharcado, há muita lama pelas estradas”.


Mas, sempre cioso de seus deveres, acrescenta:


Isto não seria obstáculo para mim se houvesse urgente necessidade de minha presença aí.”



Sempre que era possível, Júlio de Castilhos percorria a chácara, onde possuía cavalos de montaria, parelhas de tiro, vacas leiteiras, bois mansos e ovelhas para consumo, cercando-se, assim, de um ambiente campesino, que de algum modo lembrava o das estâncias paternas. Também costumava recolher-se à sua chácara nos momentos em que necessitava de tranquilidade para executar trabalhos de maior responsabilidade, como as mensagens à Assembleia dos Representantes, que eram de sua elaboração pessoal, na redação, na revisão das provas e até mesmo na feição tipográfica.


Não tardou, porém, a reconhecer que nem a distância, nem o mau tempo, nem tampouco a lama das estradas serviriam de barreiras aos que não lhe davam tréguas no peditório ou na bajulação.


Nunca supus – queixa-se num dos bilhetes ao secretário, datado de 6-10-1896 – que na distância em que me acho da cidade fosse tão perturbado no meu serviço! Aí em Palácio, já a mensagem estaria concluída, há dias.”


Queixas como essa se repetem seguidamente:


Ainda não tenho certeza – adianta ao secretário – de ir aí amanhã. A resolução depende do avanço que tiver o meu trabalho, o que é incerto devido à constante ameaça dos cacetes, que constituem agora o meu maior tormento.”


Noutro bilhete, nova queixa, nestes termos:


Já sofri hoje dois algozes aqui: o Juvêncio e um tipo de Gravataí. Tratei-os bem, mas adverti que não me procurassem mais.”


Em diversas cartas ao secretário, repete esta recomendação:


Mais uma vez, peço-te que me livres dos cacetes que me atormentam aqui! Agora mesmo chegou, de carro, o Ângelo, que veio interromper o meu trabalho, isto é, a leitura dos anexos. Que teimosia irritante.”


Havia, porém, na Chácara da Figueira, horas de pleno lazer e satisfação pessoal, quando ele recebia os amigos a que era realmente afeiçoado.


Aqui estiveram ontem, informa Castilhos ao secretário – o Medeiros e o Simch, que me fizeram muito agradável companhia.”


Referia-se ele, evidentemente, a Antônio Augusto Borges de Medeiros e Francisco Rodolfo Simch.


Com frequência, aos domingos, formavam-se rodas de palestras, com o comparecimento de maior número de amigos e correligionários, ocasiões em que ocorria a então chamada “branquinha”. Júlio de Castilhos tomava providências pessoais para que não faltasse a bebida de preferência geral. Ainda não se havia propagado o costume do “whisky”.


Amanhã quando vieres – recomendava – deves trazer no carro duas garrafas de caninha especial (Lágrimas de Santo Antônio), visto haverem sido ontem esgotadas, em abundante palestra dos amigos, as duas que eu trouxe sexta-feira.”


E noutro bilhete, ainda dirigido ao secretário:


Incluo 25$000 que entregarás ao Cássio (seu ajudante-de-ordens, Cássio Brum Pereira). É a importância da dúzia de “Lágrimas”, que ele comprou há dias. Dize-lhe que encomende outra dúzia.”


Moral da história: ainda não havia sido institucionalizado o regime das mordomias risonhas e francas.


Entre os 717 documentos ligados a Júlio de Castilhos que tive em mãos, ao consultar o arquivo de Aurélio Veríssimo de Bitencourt, um dos mais importantes, diz respeito a uma invasão do Estado de Santa Catarina, por tropa rio-grandense, autorizada pelo então presidente e comandada pelo coronel Bento Porto, um veterano de 1893 que fez parte da Divisão do Norte e, ao que tudo indica, foi quem deu a ordem de fogo de que resultou a morte de Gumercindo Saraiva.


Quando narrei a história dessa invasão, há coisa de uns dez anos, aqui mesmo no “Correio do Povo”, fiquei na expectativa de enorme repercussão, pois o episódio se conservava inédito, pelo menos na sua feição verdadeira, e fora contado, na ocasião, à luz de documentos até então sem qualquer divulgação. Não houve, entretanto, o menor sinal de que o fato tivesse qualquer repercussão.


Vejo, agora, que o “scholar” norte-americano Joseph L. Love, na obra que escreveu sobre “o regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 30”, reportou-se ao episódio, narrando-o do seguinte modo e indicando a fonte onde o encontrara:


Enquanto os habitantes de Canudos eram exterminados, um evento semelhante ocorria nas fímbrias do Rio Grande do Sul. Neste caso, porém, envolveu um massacre, e não uma luta prolongada. No município de Lages, bem em cima dos limites do Rio Grande com Santa Catarina, estava desenvolvendo-se uma comunidade milenarista. Em agosto de 1897, um jornal de Lages, assumindo a dimensão sebastianista-restauradora, sugeria que o povoado de Entre Rios, de 300 habitantes, tinha ligações não só com Antônio Conselheiro, mas também com os federalistas gaúchos. Para castilhos, esta “evidência” era suficiente. Imediatamente planejou com o governador de Santa Catarina um ataque combinado das duas forças policiais estaduais sobre o vilarejo, mas apenas os gaúchos parecem ter participado. Dirigiu a operação o subchefe de polícia do 1º Distrito. Desencadeando um ataque de surpresa a Entre Rios, suas tropas mataram todos os homens da comunidade e queimaram suas cabanas, deixando as mulheres e as crianças vivas, porém, desabrigadas. Ao receber o relatório da operação, em fins de agosto, Castilhos observava satisfeito que o subchefe “conduziu-se como eu esperava”, merecendo “todos os louvores e aplausos”.


Apenas um reparo à narrativa do “brazilianist” Joseph L. Love: embora Júlio de Castilhos tenha convidado o presidente de Santa Catarina, Hercílio Luz, para participar da operação, na hora de autorizá-la nada comunicou ao chefe do governo barriga-verde, deixando para fazê-lo depois do fato consumado, com a invasão do Estado vizinho e extermínio dos fanáticos de Entre Rios.


Talvez o presidente catarinense viesse com panos quentes, no momento de ser executada a operação contra os fanáticos, cujo aldeamento representava, aos olhos de Júlio de Castilhos, uma nova ameaça à consolidação da República, coisa que ele jamais admitiria, levando até as últimas consequências, como sempre o fez, a sua reação aos inimigos (reais ou supostos) do regime republicano.


(Maio, 1979)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 73/76.

Meninórias porto-alegrenses (Carlos Reverbel)

 

Mudança para Bruxelas


Não tenho pejo de confessar que sou um cidadão acomodado e omisso e, como tal, completamente destituído de espírito público. Isto não impede, entretanto, que seja de parecer que indivíduos deste jaez deveriam ser fuzilados, a começar por mim, naturalmente.


Relendo as palavras alinhadas acima, não posso deixar de acrescentar que, apesar de me falecerem os sentimentos cívicos, sou bem aquinhoado de outras virtudes, modéstia à parte. Duvido, por exemplo, que o pessoal aqui da redação (a partir do “copy-desk”) seja capaz de amparar as palavras em desuso, como eu as amparo, empregando-as com frequência, naturalidade e, sobretudo, com abundância de coração.


Isto posto, sinto-me perfeitamente à vontade para declarar que, no dia de hoje, minha afeição está voltada para as palavras pejo e jaez, empregadas logo no início destas poucas e mal traçadas linhas, por motivos humanitários, pois acho uma crueldade como começam a ser relegadas pelas pessoas de bom gosto e fino trato.


Peço ao “copy-desk” que as respeite, embora sabendo-o de ordinário desalmado. É que, estando quase em desuso, elas se encontram quase moribundas, merecendo, assim, mais respeito e comiseração do que se já estivessem exalado o último suspiro.


Por causa do meu desmedido, quando não desvairado amor pelas palavras que estão em capítulo de morte, ultimamente tenho frequentado os clássicos, com bastante assiduidade e proveito. Ainda outro dia, lendo “A família e a festa na roça”, do nosso querido Martins Pena, deparei com esta fala do personagem Juca: “Na cidade, isso se fia mais fino. Há meninórias finas como lã de cágado”.


Entre parêntese: proponho a inclusão desta passagem da famosa comédia na prova de português dos próximos exames vestibulares. Os candidatos, em geral meninórios, ficariam muito bem servidos para darem largas aos seus vastos conhecimentos de vernáculo e humanidades.


Talvez tenha sido Martins Pena o último autor a levar ao palco o substantivo meninória, mas a palavra ainda não foi retirada do “Aurelião”, sendo este um dos motivos por que serei eternamente grato ao grande dicionarista, de alta estirpe alagoana, não paulistana, diga-se “en passant”.


Tenho usado com relativo êxito o sinônimo moçoila, mas pretendo, na primeira oportunidade, colocá-lo na geladeira, substituindo-o pelo termo meninória, bem mais arcaico e, como tal, bem mais chegado ao meu velho coração cansado.


Se as meninórias, segundo Martins Pena, eram “finas como lã de cágado”, afinal de contas, o que vem a ser a aludida lã e o respectivo cágado?

Depois de ter consultado meus alfarrábios, vendo pelo que comprei esta pequena elucidação: aplicava-se a expressão, em priscas eras, às mulheres dotadas de malícia e esperteza. Quer me parecer, no entanto, que Martins Pena avançou um pouco o sinal, ao estendê-la às meninórias, pois estas, naqueles recuados tempos, eram em geral pulcras, pudicas e pundonorosas, senão bonocas, no sentido lato da palavra.


Por falar em meninórias, defendo a teoria segundo a qual os apreciadores do material, se moradores de Porto Alegre, não deveriam procurá-las em outros lugares. Além de existirem em profusão, eu vos asseguro, do alto da minha senilidade, que as meninórias mais bonitas do globo terráqueo fixaram residência em Porto Alegre, muito antes da obra de humanização da cidade levada a efeito pelo nosso excelente prefeito.


Outra coisa: elas estão muito bem representadas tanto na classe A, como na B e até mesmo na C, podendo ser encontradas, nestas condições, tanto nos Moinhos de Vento, como na Rua da Varzinha e até mesmo no Campo da Tuca.


Meninórias que em Paris serviriam para modelo dos grandes costureiros e que interromperiam o trânsito nos Champs Elysées (pela primeira vez na história da França), aqui podem ser encontradas até mesmo entre estouvadas balconistas e trêfegas bancárias.


Neste festival de belas meninórias, nada mais comovente do que ser moça feia em Porto Alegre, mesmo pendendo para o tipo engraçadinho. Em tais casos, aliás, pouco frequentes, costumo aconselhar mudança de domicílio, se possível para Bruxelas, onde qualquer porto-alegrense seria apontada como tipo de rara beleza.


(Fevereiro, 1979)



Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 14/15.

Rua Coronel Bordini (Carlos Reverbel)


Caso estranho 


Trata-se do seguinte: o comportamento do automóvel na Rua Coronel Bordini. Embora estranho, o fenômeno pode ser constatado ao vivo por qualquer observador, bastando 20 por cento de olhos de lince e outros tantos de ouvidos de mercador, índices ao alcance do homem comum.


Carros absolutamente normais, à medida em que vão se aproximando da referida via pública começam a entrar em parafuso, ficando completamente transtornados ao atingi-la. O estranho fenômeno se agrava, de forma galopante, na chamada calada da noite. Aliás, esta expressão pode ser aplicada a qualquer lugar, menos em relação à Rua Coronel Bordini, onde a última calada da noite teria ocorrido, segundo os moradores mais antigos, por volta de fevereiro de 1920, ainda na gestão do prefeito José Montauri de Aguiar Leitão.


Além das tradicionais correrias, com os canos de descarga em ritmo de discoteca e as buzinas botando a boca no mundo, agora deram para aparecer automóveis que perdem a identidade ao entrar na Rua Coronel Bordini, assumindo outras funções, como a de campainhas, por exemplo. Em lugar de apertar na campainha, o motorista aperta a buzina. E a pessoa procurada abre-lhe a porta da casa ou a janela do apartamento, indo ao seu encontro ou convidando-o a entrar.


Mas, afinal de contas o carro-campainha não passa de uma amenidade perto do que aconteceu com o pobre do seu Percílio. Ainda não se fez a estatística, mas a esquina da coronel Bordini com a 24 de outubro deve deter o recorde porto-alegrense de atropelamento de pedestres e acidentes de trânsito. Tanto assim que há moradores da zona que fazem o sinal as cruz antes de atravessá-la. Outros fazem promessas ou pedem graças ao Padre Reus. E alguns não se animam a atravessá-la, remontando até a esquina da Hilário Ribeiro. São os que acreditam piamente naquela história de que o seguro morreu de velho.


Com o aparecimento dos supermercados, houve o desaparecimento dos bodegueiros. Mas alguns, antes de fecharem o negócio, conseguiram vendê-lo a incautos seduzidos pela ideia de ingressarem no ramo de secos e molhados, como se dizia na “belle époque”. Recém chegado do interior, trazendo no bolso o produto da venda de sua colônia, o seu Percílio foi um desses incautos, comprando um armazém situado nas cercanias da fatídica esquina formada pela Bordini e a 24 de Outubro.


Logo me inscrevi entre os seus fregueses, tirando a respectiva caderneta, como aquelas de antigamente.


Por sinal, tenho uma vizinha, a dona Carmosina, que coleciona cadernetas de armazém, datada a primeira de 1912, coincidentemente o ano em que vim ao mundo, sem consulta prévia, configurando-se, assim, o primeiro atentado contra os direitos humanos de que fui vítima neste vale de lágrimas. Prefaciadas e anotadas pelo prof. Gudin, essas cadernetas poderiam ser publicadas como subsídio para a história da inflação no país.


O armazém do seu Percílio funcionou até o momento em que ele foi atropelado por um carro na esquina da morte, isto é, na esquina da Bordini com a 24 de Outubro. O seu corpo ficou de barriga para cima, no meio da rua. Logo chegou uma vizinha com uma espécie de lençol. Outra trouxe uma vela. Mas os motoristas que se aproximavam e não podia passar ficavam por conta com o cadáver.


Não é preciso acrescentar que tudo ficou por isso mesmo, pois o motorista goza no Brasil das prerrogativas dos menores, também sendo beneficiado pelo estatuto da irresponsabilidade penal. Por esse motivo, sou de parecer que não se deve andar armado de revólver, nem de facão, nem de metralhadora, nem de bomba molotov, mas apenas de automóvel. É quanto basta para matar e não ir para a cadeia.


Com o assassinato impune do último bodegueiro da zona, fiquei privado de alguns prazeres do cotidiano, como o de adquirir feijão preto embrulhado em papel de jornal. Embora continue a cozinhar o produto em panela de ferro e fogão à lenha, não é a mesma coisa, pois o feijão perde muito de seu caráter popular quando vem na sofisticação das embalagens modernas, tipo supermercados. Aliás, esses estabelecimentos são acima de tudo um festival de embalagens, coisas não comestíveis, razão pela qual só alimentam a barriga da inflação.


(Março, 1977)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 71/72.

Ardil contra Rui (Carlos Reverbel)

 

Encontrei um escritor muito agastado por causa dos erros de revisão com que apareceu seu último livro. Surpreendi-o numa livraria, de esferográfica em riste, fazendo correções nos exemplares ali colocados à venda.


Suponho que vai percorrer, na sua via-sacra autoral, todas as casas do ramo, hoje acrescidas de alguns supermercados. Talvez fosse menos cansativo recolher a edição, mas não ousei apresentar-lhe a ideia. Não se podia prever do que será capaz um beletrista em tais circunstâncias.


Pelo trabalho braçal de que fui espectador, este encontro de livraria me colocou frente a uma atitude nova na vida literária. Os autores costumam, quando muito, corrigir falhas tipográficas, de próprio punho, nos exemplares destinados aos críticos. E, às vezes, procedem do mesmo modo, como deferência em relação a amigos.


Guardo um livro de Gilberto Amado, cravejado de emendas feitas pela mão do notável escritor. E ainda outro dia recebi “O contrabando no sul do Brasil”, de Guilhermino Cesar, com diversas correções e alguns acréscimos manuscritos, reproduzindo palavras que a linotipo havia devorado, com apetite antropofágico.


Não chegarei ao ponto de fazer o elogio do erro de revisão, mas não esqueço que um dos livros mais interessantes que li, parece que esqueceram de fazer a revisão, tal a mixórdia tipográfica em que foi apresentado. Refiro-me a “Se não me falha a memória”, de Joaquim de Sales, um mineiro que fez jornalismo político no Rio, em alto nível, e terminou como deputado federal pelo seu Estado. Não sei de outra obra em que tenha refletido, com tanta expressividade, a vida parlamentar da chamada República Velha, retratada através da atuação dos grandes nomes que passaram pela Câmara e pelo Senado, no período compreendido entre a primeira constituinte republicana e a Revolução de 30.


De Germano Hasslocher, hoje nome completamente esquecido, mas que foi das figuras mais singulares da política rio-grandense nos tempos de Pinheiro Machado e Júlio de Castilhos, conta Joaquim de Sales um episódio que dá a medida não só da argúcia, como da eloquência e do preparo de que era dotado aquele parlamentar gaúcho.


A grande dor de cabeça de Pinheiro Machado, na época que antecedeu a Campanha Civilista, era encontrar um nome no parlamento que estivesse à altura de responder os ataques e as críticas de Rui Barbosa.


A escolha recaiu em Germano Hasslocher, e sua primeira iniciativa, para dar conta do recado, foi entrar em contato com o livreiro de Rui Barbosa, encarregando-lhe de também adquirir para ele, daí em diante, todos os livros que Rui Barbosa encomendasse para si próprio. E assim o astuto parlamentar rio-grandense, que era versado em diversas línguas, passou a contar com as novidades bibliográficas estrangeiras, jurídicas, filosóficas, políticas, sociológicas e literárias, com as quais Rui Barbosa costumava embasar a opinião pública nacional.


A partir de então, toda vez que a Águia de Haia fazia as suas famosas demonstrações de erudição, Germano Hasslocher saia ao seu encalço, respondendo-lhe com os mesmos autores, citados no original. Acabara o reportório de novidades de que o grande baiano era usufrutuário exclusivo. E isto passou a irritá-lo a ponto de fazer com que, por vezes, ficasse perturbado e levasse desvantagem na discussão.


(Novembro, 1978)




Capa: Jairo Devenutto


Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 69/70.

No Tempo do churrasco (Carlos Reverbel)



Embora fosse naturalista, interessado principalmente em botânica, Saint-Hilaire não se limitou a fazer pesquisas nesse campo, durante o roteiro de nove meses e 1500 quilômetros que cumpriu no Rio Grande do Sul, em 1820, vadeando rios e arroios, pois não existia nenhuma ponte.


Além de trabalhos d herborização, objetivo específico de sua viagem, manteve um diário em que ia anotando o que observara à sua volta, pelos caminhos percorridos ora a cavalo, ora de carreta; não de “carroça”, como diz o tradutor brasileiro.


Não raro Saint-Hilaire se identificava com o agreste meio ambiente, a ponto de não só experimentar, por simples curiosidade, certos hábitos nativos, mas de cultivá-los regularmente nas suas andanças. Foi assim que se tornou habitual tomador de chimarrão, enquanto transitou pelo Rio Grande do Sul.


A primeira vez que provei essa bebida – informa o naturalista – achei-a sem graça, mas logo me acostumei a ela, e atualmente tomo vários mates, de enfiada, mesmo sem açúcar.”


Saint-Hilaire atribuía diversas propriedades ao mate, inclusive a de ser estomacal e, “por conseguinte, necessário a uma região onde se come enorme quantidade de carne, sem os cuidados da perfeita mastigação.”


A carne não era degustada, era engolida, com maus modos, pouca mastigação e voracidade um tanto quanto canina. Mas agora estamos entrando numa fase em que a carne será degustada com fina etiqueta e requintes de voluptuosa mastigação. Deixando de dar o ar de sua graça no trivial caseiro, receberá as honras devidas aos pratos de alta culinária.


Na atual escassez e carestia do produto, resta-nos o consolo de podermos recordá-lo, com água na boca, tal como era deglutido nos velhos tempos. A exemplo do que fez no seu diário, em relação a tantos aspectos da vida cotidiana rio-grandense, Saint-Hilaire desce aos mínimos detalhes, ao fixar os hábitos alimentares do gaúcho, desabridamente, quando não exclusivamente carnívoro, ao tempo de sua viagem.


Referindo-se ao que lhe ofereceram para comer numa estância em que se hospedou, o naturalista assim alude ao cardápio, formado por vários pratos, mas na base de um só ingrediente:


O bom Silvério quis fazer-me almoçar esta manhã, sendo a refeição, como a de ontem à tarde, inteiramente composta de carnes. Nesta região não se come outra coisa. Carne cozida, carne assada, carne picada ou cortada em pedaços, sempre a carne e quase sempre de vaca ou de boi”.


Conta ainda que os estancieiros, mesmo os de menores posses, costumavam carnear uma ou duas reses, para oferecer aos seus visitantes, pedindo-lhes que escolhessem os pedaços de sua preferência, enquanto os restantes eram abandonados no local da carniça. A carne sobrava tanto na mesa do patrão e sua família, como na dos empregados e escravos.


Ainda segundo Saint-Hilaire, num intervalo entre as guerras com o Prata, a guarnição da fronteira ficou durante 27 meses sem receber soldo. Sem dinheiro para comprar outros alimentos, os oficiais e soldados se mantiveram, todo esse tempo, somente na base do churrasco, não havendo sal nem farinha.


Aliás, como também observa o naturalista, a circunstância das tropas da fronteira se alimentar quase exclusivamente de carne muito contribuía para a mobilidade de suas operações militares, pois não precisavam carregar lentos e pesados trens de guerra, com cargueiros e carretas para o transporte de seu aprovisionamento. O gado se deslocava por seus próprios meios de locomoção, acompanhando o ritmo das marchas da cavalaria.


(Outubro, 1979)




Capa: Jairo Devenutto

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 57/58.

Porto Alegre por Carlos Reverbel



Quando vim para Porto Alegre havia apenas um casarão com pretensões alterosas: o edifício Malakoff. Ficava na Praça 15, ainda não conflagrada e de alta periculosidade, como é de sua natureza hoje em dia. Por causa dessas e outras modificações urbanas às vezes sou convidado a dar meu testemunho sobre a evolução da cidade.



Os rapazes de hoje montaram diversos dispositivos para amolar as velhas gerações. As chamadas entrevistas, em que colhem subsídios para suas pesquisas, funcionam com grande eficiência nesse azucrinante sentido.


Ainda noutro dia fui brindado com a visita de um entrevistador, por sinal condenado ao desemprego, como castigo por ter ingressado no curso de sociologia, profissão que não existe no nosso mercado de trabalho. Em lugar de prestar-lhe pronto socorro, aconselhando-o a mudar de curso, me submeti pacientemente ao seu implacável interrogatório. O futuro “chomeur” queria saber em que medida Porto Alegre tem contribuído para o tipo brasileiro de civilização urbana.


O tema é realmente sedutor, motivo pelo qual merece amplo esclarecimento e vasta divulgação. Senão, vejamos. Como as dúvidas que existiam a respeito já foram dirimidas, permito-me afirmar, em caráter definitivo, que o vendedor-ambulante-parado é uma criação porto-alegrense.


Igualmente porto-alegrense é uma outra inovação, também revolucionária: o “trailer” sem rodas. De acordo com a mais recente estatística, temos na cidade 165 “trailers”, todos sem rodas, o que pode prejudicar sensivelmente o comércio de pneumáticos, mas, em compensação, veio dar novas dimensões à indústria de reboques, permitindo-lhes desempenhar as funções de mercadinhos, quitandas, cafés, bares, restaurantes, lanchonetes, boates e até quartos de alta rotatividade.


Porto Alegre pode reivindicar, ainda, o lançamento do artesanato-em-série, cujas peças, fabricadas mecanicamente, são tocadas pela mão do artesão somente no ato de sua venda ao freguês, operação que se processa a céu aberto e em plena rua, dispensando o trivial e mercenário aparato do comércio lojista.


Os geógrafos mais afoitos têm apontado o aterro do Guaíba como uma solução holandesa, não porto-alegrense. Mas não se pode concordar com a leviana assertiva. Além do odor acre de maresia, o aterro holandês se diferencia do nosso por não ter sido motivado por falta de terra (vulgo espaço vital), o que lhe tira toda a originalidade, enquadrando-o no rol das coisas prosaicas e necessárias. Já o aterro do Guaíba, no seu antropofágico engulimento do rio, não passa de um exercício surrealista de engenharia, pois terra boa e barata nunca nos faltou.


O muro da Mauá, por sua vez, é a primeira tentativa no sentido de criação em grande escala, de uma mitologia porto-alegrense. Foi construído em desafio à posteridade, tudo indicando que jamais será decifrada a sua utilidade. Entretanto, pelas dúvidas, já devia ter sido tombado, pois é sempre possível um arquitetonicídio, como o que ameaça a pranteada Farmácia Carvalho.



Aliás, a Farmácia Carvalho, assim como o saudoso Cinema Guarani, deveriam permanecer em ruínas, a exemplo do Coliseu romano, da Acrópole ateniense e da Igreja do Galo, em São Gabriel, a popular terra dos marechais. Talvez seja mais turístico conservar-se a farmácia e o cinema assim em ruínas, como destroços da antiga civilização da Rua da Praia. Lamentavelmente não poderá fazer parte do conjunto, por já ter sido vítima da picareta do progresso, o não menos histórico Restaurante Ghilosso.


Na falta do vetusto imóvel, talvez seja de boa política abrir voluntariado para tombamento dos fregueses sobreviventes do restaurante, entre os quais me incluo, evocando neste momento solene, através da memória gustativa e com água na boca, o suculento cardápio do extinto estabelecimento, cuja mesa, dentre outros frequentadores históricos, era distinguida, diariamente, pelo abundante e voluptuoso apetite de meu avantajado amigo Oswaldo Goidanich.


Como já tive a lealdade e coragem de confessar, a minha bibliografia, por sinal bastante atentada, é constituída por obras não escritas. Pretendo enriquecê-la oportunamente, com as memórias do Restaurante Ghilosso.


(Agosto, 1978)



Capa: Jairo Devenutto




Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 87/88.

Imagem Farmácia Carvalho: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/56/Farm%C3%A1cia_carvalho_-_porto_alegre.jpg

Imagem Ed. Malakoff: https://prati.com.br/porto-alegre/porto-alegre-exercicios-de-bombeiros-edificio-malakoff-decada-1900.html

Acesso 17/03/2023

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...