domingo, 30 de agosto de 2020

Bem capaz! (Gilberto Kieling)


O traço que mais distingue o gaúcho é a linguagem. Mais do que os trajes típicos, mais do que hábitos como o chimarrão e o churrasco. Estou certo que alguns leitores vão discordar – o que muito respeito – mas tenho razões para pensar assim. Tempos atrás um “estrangeiro”, nascido no norte do Paraná, ficou muito espantado quando ouvia, nas esquinas da cidade, as pessoas dizerem: “Bem capaz!” Confesso que foi uma dificuldade explicar o que isso significa.


- Você não entendeu? Capaz?!


O “capaz” pode ser, portanto, uma exclamação interrogativa, como a acima. Pode também ser uma expressão puramente negativa:


- Bem capaz que aquele político é honesto!


Ou ainda afirmativa como resposta:


- Capaz que não!


Na verdade, o “bem capaz!” serve para qualquer coisa. Serve para confundir sentimentos dos ouvintes, quando você não quer dar uma opinião definitiva. Ou até um simples deixa pra lá, por exemplo, quando alguém esbarra em você e pede desculpas, e você responde:


- Capaz, guri!


Muitas vezes a expressão é usada como exclamação e espanto:


- Viu que a vizinha tá traindo o marido?


- Capaaazzz!!!


No caso, o espanto se confunde com uma vontade danada de fofocar. E também temos a negativa que se confunde com aprovação:


- Deixa eu te dar um beijo?


- Bem capaz!


Se você for um estrangeiro, isto é, alguém que não nasceu no Rio Grande, deve tacar um beijo na moça. Afinal, você não é obrigado a conhecer todos os sentidos com que o gaúcho usa a expressão. E se ela responder: “Sai, piá! Tu és muito metido!”, você pode simplesmente responder, fazendo cara de anjo satisfeito:


- Capaz…

*


Não estou falando de sotaque, que temos de sobra. Quando dizemos que o nordestino fala cantado, tenha a certeza de que eles pensam o mesmo de nós. Portanto, falamos o português com sotaque influenciado pelo espanhol. Nada de mais nisso. É até bonito, mas é sotaque.


Estou falando de vocabulário. Tente explicar para nossos patrícios de outras plagas o que significa “na bucha”, “cheio de nove-horas”, “bodoso”, “revertério”, “cu doce”, e “pau de virar tripa”. Com algum esforço você consegue. O fato é que expressões desse tipo fazem parte do nosso cotidiano e sequer percebemos que elas são exclusivamente nossas. Estão no inconsciente.


*


No futebol não é diferente. Dar pontapés é “abrir o açougue”. Estádio ruim é “chiqueiro”. Gol feito meio por descuido é “de chiripa”. Ganhar a partida com muitos gols é “lavada” ou “vareio”, e juiz desonesto “garfeia”.


No Rio Grande, gandula é “marrecão”, uniforme é “fardamento”, agasalho é “abrigo”, jogo difícil é “encardido”, arco é “goleira”. E quando o atleta é atingido pela bola na virilha, com muita força, o torcedor comenta, sem muita ênfase: “Coitado! Levou um selaço nos bagos”. Vá entender!



Fonte: Kieling, Gilberto. HISTÓRIAS NADA SINGULARES. Editora Café Pequeno, p. 108/110.

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