“Meu
pai, precisando de cozinheira, comprou uma. Dizia o dono, ao
oferecê-la, que ela não servia para o trabalho da roça, por isso
vendia por qualquer preço. Já lhe havia dado uma tunda de laço,
mas de nada serviu porque ela não prestava mesmo para o que ele
necessitava. Chegou em casa toda encolhida, gemendo de dores, em
estado lastimável, com as costas em carne viva, crivada de lanhos
fundos feitos pela tunda de que se vangloriava o antigo senhor. Até
bichos tinham as feridas. Chamava-se Felicidade.”
Este
episódio aconteceu na cidade de Santa Maria da Boca do monte, na
década de 1860. E vem narrado num livro há muito esgotado, quase
raridade bibliográfica: Memórias,
de João Daudt Filho.
O
autor relembra, além desse, diversos outros da época da escravidão
em Santa Maria, de que foi contemporâneo, quando ali vivia com seus
pais, ainda menino. Menciona, inclusive, a existência de um
quilombo, num dos morros que circundam aquela cidade, fato de que não
se tinha informações. Atribui aos escravos a propagação de
crendices tais como o boitatá, o minhocão, o lobisomem, o
bicho-tutu. E não deixa de narrar uma série de atrocidades de que
os escravos eram vítima, a exemplo daquelas pelas quais passara
Felicidade, comprada para cozinheira de sua família.
Aqui
vai outro episódio, no gênero: “nunca pude esquecer um quadro
horrível que vi quando ainda era menino, estando de passeio em casa
de meus tios, negociantes, na estrada da Serra. Chegou ali uma
escolta de quatro soldados a cavalo, conduzindo um negro a pé,
seminu, de corda ao pescoço puxada por um dos soldados, os dois
braços amarrados pelas costas e o corpo todo ferido dos golpes de
espada. O pobre negro era obrigado a acompanhar o trote dos cavalos”.
O
capítulo sobre a escravidão dá a medida, por si só, do interesse
que podem despertar as Memórias de
João Daudt Filho. Vale a pena transcrever outros episódios, como
antecipação do que significaria a reedição desse livro, uma das
obras que realmente contam na bibliografia rio-grandense. Esta
passagem, por exemplo:
“Meu
pai recebeu em pagamento de uma dívida antiga
dois moleques: um preto e outro mulato. Fiquei íntimo dos moleques,
que eram mais ou menos da minha idade. Prestavam-se a ser cavalos de
meu andar, parelha de puxar a ajudavam-me a fazer urupucas, mundéus,
esparrelas e alçapões para caçar passarinhos, e as gaiolas para
prendê-los. Eu me julgava muito feliz em tão boa companhia.
Aconteceu, porém, que, chegada a época de meu pai ir a Porto Alegre
surtir-se de mercadorias para o seu negócio, quis levar-me a
passeio. Os moleques também seriam para cuidar dos cavalos durante a
viagem. Subi às nuvens de
contentamento, pela companhia dos moleques. Chegados a Porto Alegre,
tive porém um grande desgosto. Os moleques e eu fomos enganados!
Papai não podendo ter em casa maior número de escravos, viu-se
obrigado a desfazer-se deles (quer dizer, vendê-los). Chorei muito
com eles quando nos despedimos.”
Finalmente,
para encerrar os quadros de escravidão, este episódio estarrecedor:
“Tudo isso não espanta em face da monstruosidade dos senhores para
com as escravas suas concubinas e mães de seus filhos. Contou-me meu
cunhado, general Joaquim de Andrade Vasconcelos, o seguinte: um
pretendente à compra dos moleques, em conversa com um seu compadre,
perguntou: ‘Onde poderei comprá-los em boas condições?’
Este respondeu: ‘Tenho aí
o pátio cheio, pode escolher à vontade’. E o outro: ‘Mas não
são seus filhos?’ A resposta: ‘Que tem isso? São meus escravos,
poderei vendê-los. Custa-me caro a criação deles”.
Estes
episódios, como tantos outros, (inclusive a lenda do “Negrinho do
Pastoreio”, imortalizada por J. Simões Lopes Neto) contrariam,
frontalmente, o mito da bondade do senhor de escravos do Rio Grande
do Sul, criado por Saint-Hilaire, embora seja o naturalista francês,
entre os viajantes estrangeiros que percorreram a nossa terra, no
século passado, o observador mais atento, mais agudo, mais fidedigno
e mais compreensivo.
Além
de ser um valioso livro de memórias, gênero tão pouco cultivado
entre nós, a obra de João Daudt Filho também se singulariza, do
ponto de vista bibliográfico, pela circunstância de ter merecido
três edições, todas publicadas por conta do autor, para
distribuição fora do comércio. A primeira saiu em 1936, quando o
autor se aproximava dos 80 anos de idade, sendo destinada apenas aos
seus parentes e aos amigos mais chegados. O exemplar de que disponho
fora ofertado pelo autor a Salatiel de Barros, que dele abriu mão,
presenteando-me. Mais tarde o próprio Salatiel, homem da estirpe de
João Daudt Filho, seguiu o exemplo de seu velho amigo, também
escrevendo interessante livro de memórias, em parte formado pelas
“reminiscências” que publicava no Correio do Povo,
a que era muito ligado, como companheiro de Caldas Júnior e primeiro
gerente do velho órgão.
O
aparecimento das Memórias
de João Daudt Filho despertou tanto interesse, dando lugar a tantas
solicitações, que o autor teve de mandar imprimir mais duas
edições, sempre por sua
conta e distribuídas fora do comércio. Talvez seja o único caso,
entre nós, em que um livro publicado fora do comércio chegou à
terceira edição, pintando como best seller.
“Receoso
de cair no ridículo pela
pobreza de imaginação e pelo estilo chão” – confessa o autor,
sobre seus originais – “pedi a opinião de meu amigo Álvaro
Moreira, escritor consagrado, respondendo ele que, além de lhe
parecerem interessantes estas reminiscências, achava também
exatamente que, na simplicidade e na naturalidade da linguagem, a
mesma com que converso na intimidade, é que se encontrava o mais
forte motivo para a sua publicação”.
Embora
escrito sem literatura, como observou Álvaro Moreira, os originais
de João Daudt Filho resultaram livro destinado a perdurar na
bibliografia rio-grandense, mesmo porque faz parte de um gênero
cujos valores fundamentais muitas vezes transcendem aos de natureza
propriamente estética ou literária.
Depois
de ter sido comandante do primeiro navio a vapor utilizado na
navegação do Jacuí, entre cachoeira e porto Alegre, o pai de João
Daudt Filho (pertencente à primeira geração de imigrantes alemães
estabelecidos em São Leopoldo em 1824) radicou-se em Santa Maria,
onde se estabeleceu como comerciante e constituiu família. Por isso,
as primeiras recordações do memorialista datam daquela cidade,
oferecendo subsídios de grande interesse para a monografia do
município. Notadamente sobre o período revolucionário de 1893, a
vida escolar e a infância e mocidade de Júlio de Castilhos (de quem
o autor foi colega de curso primário), contendo, ainda, informações
de real valia sobre as condições de vida em Santa Maria e no Rio
Grande do Sul, naquela época.
Além
de escrever o modo como se viajava no primeiro vapor a singrar as
águas do Jacuí, João Daudt Filho narra uma viagem por terra, feita
por ele e seus pais de Santa Maria a Rio Pardo. “Fizemos a vigem em
15 dias” – conta o memorialista – “numa carretilha puxada por
três juntas de bois. A estrada era horrível a tal ponto que só
mesmo com a força de meia dúzia de
possantes bois poderia safar-se o veículo das sangas e atoladores.
Outra meia dúzia de bois ia por diante, para muda. Uma tropa de 12
bois somente para conduzir a carga de uma pequena família”.
Na
sua passagem como aluno pelo famoso educandário N. Sª da Conceição,
dos Padres Jesuítas, em São Leopoldo, João Daudt Filho foi
contemporâneo do episódio dos Muckers, de que relata a versão
corrente na época. Já formado e estabelecido com uma farmácia, em
Santa Maria, foi envolvido nas malhas da Revolução de 93, de que
narra uma série de acontecimentos inconcebíveis para as atuais
gerações. É quando o livro atinge o ponto culminante, sobretudo
pelas cenas de banditismo que enumera e descreve, de uma das quais
foi vítima o seu cunhado, Dr. Filipe de Oliveira, pai do poeta do
mesmo nome, que nasceu órfão, seno adotado e criado por João Daudt
Filho.
Trata-se
enfim, de uma obra que vem pedindo para ser reeditada.
Capa:
Tânia Porcher
Foto:
Jorge Rolla
Fonte:
Chamava-se Felicidade. Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto
Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 182/186.
Disponível
para aquisição:
https://editoraufsm.com.br/assuntos/artes-e-letras/memorias-de-joao-daudt-filho.html