O
baú
J.
Simões Lopes Neto publicou em vida apenas três livros: Contos
Gauchescos, Lendas do Sul e
Cancioneiro Guasca.
Postumamente, foram editadas duas obras de sua autoria: Terra
Gaúcha e Casos do
Romualdo.
A
produção do grande regionalista teria sido bem maior se os diversos
livros que ele anunciou, como
“em preparo” ou “a sair”, tivessem realmente aparecido. Nunca
apareceram pela simples e boa razão que jamais foram escritos.
Na
época do velho Simões, um escritor municipal, que viveu e editou
seus livros em Pelotas, era frequente os literatos anunciarem obras
de que havia apenas o título, o que levaria os pesquisadores, em
alguns casos, a empreender trabalhosas buscas no vazio.
Foi
o que aconteceu em
relação ao notável escritor pelotense, na acurada e inútil
procura de originais cuja autoria ele próprio se atribuía,
inclusive dois romances regionais – Peona e
Dona e Jango
Jorge – que J. Simões Lopes
Neto costumava apresentar como inéditos, isto é, já concluídos,
faltando, apenas, serem publicados. Tudo leva a crer, entretanto, que
esses romances somente existiram na imaginação do escritor, indo
com ele para o túmulo.
Não
foi, felizmente, o que se daria com os Casos do Romualdo,
cuja descoberta faria com que a reduzida bibliografia simoniana
viesse ganhar novo e valioso título, tendo, ao mesmo tempo,
enriquecido o nosso regionalismo literário com uma obra que, segundo
Augusto Meyer, aponta “novas qualidades no grande regionalista”
Quando
estive em Pelotas, em 1945, a serviço da Editora Globo, para
realizar uma pesquisa em torno da vida e da obra de J. Simões Lopes
Neto, a viúva do escritor, D. Francisca Meirelles Simões Lopes,
ainda vivia, na condição de ter de trabalhar (apesar da avançada
idade), para prover o próprio
sustento e o de uma filha de criação chamada Firmina e sem
qualquer capacitação profissional. D. Francisca exercia com
dignidade e eficiência as funções de secretária do Conservatório
de Música local. Dela se dizia na cidade: é pobre, mas orgulhosa.
Como
vinha fazendo em relação a todos que a procuravam, por causa do
nome literário do marido, já então bastante valorizado
postumamente, recebeu-me com muitas reservas, só faltando bater-me
com a porta na cara, quando lhe disse dos motivos de minha visita.
Afirmando ter sido vítima de falcatruas, com perdas e até roubos de
originais inéditos do marido (inclusive o dos Casos do Romualdo),
por parte de pesquisadores que me haviam antecedido e até por parte
de escritores que se inculcavam como “amigos e admiradores” de
J. Simões Lopes Neto, ela resolvera não mais receber “essa
espécie de gente”, emprestando às últimas palavras um tom que
poderia ser interpretado como “essa espécie de exploradores”.
Não
tive, assim, outra alternativa senão deixá-la entregue aos seus
ressentimentos e amarguras e tratar de iniciar a pesquisa em outras
fontes. Lá pelas tantas, no andamento do trabalho, que já se
revelara bastante proveitoso, a ponto de Augusto Meyer apontá-lo,
mais tarde, como obra de “copista beneditino”, fui levado pela
mão de Francisco Cardoso, um contemporâneo do escritor, que fora
seu amigo e grande admirador, ao sótão de um casarão abandonado,
onde tive a sorte de encontrar, entre outros guardados, um volume
encadernado do Correio Mercantil,
jornal pelotense há muito fora de circulação.
Por
pura sorte, ali encontrei, publicado em folhetim, a partir da edição
de 1º de junho de 1914, o texto completo dos Casos do
Romualdo, livro cujos originais
todos informavam, a começar pela viúva do autor, terem sido
extraviados por Pinto da Rocha, que os levara, numa de suas passagens
por Pelotas, para fazer-lhe o prefácio e procurar-lhe editor, no Rio
de Janeiro, deles não tendo ficado cópia, nem rastro.
Voltei
à casa de D. Francisca (que era conhecida na cidade pelo apelido de
D. Velha), já então armado com a cópia datilográfica do folhetim,
perguntando-lhe se não tinha lembrança que a obra havia sido
publicada, num jornal local, em 21 capítulos, ainda em vida de J.
Simões Lopes Neto. Ela, cada vez mais sestrosa e retrancada, afirmou
que jamais houvera tal publicação, voltando aos casos de extravios,
perdas e espoliações de que se dizia vítima.
Tomei,
então, a iniciativa de entregar-lhe o texto datilografado do livro,
com a observação de que, à vista do sucedido, parecia que ela
deixara de acompanhar a vida literária do marido, por não
reconhecer, talvez, o seu talento de escritor, enquanto ele vivera a
seu lado. A velhinha
desmontou, literalmente. E, voltando-se para os fundos da sala,
limitou-se a bradar, com energia: “Firmina, traz o baú”.
Foi,
assim, colocado à minha disposição velho e precioso baú, em que
D. Velha guardara, fechado a sete chaves, o que havia sobrado do
espólio literário do grande escritor gaúcho, inclusive as páginas
inéditas e manuscritas das Recordações da infância,
umas vinte e tantas laudas, que me deram a impressão de ser o começo
de um livro de memórias, mas que a ensaísta Eliane Zagury
identificou, com grande acuidade, como
a tentativa de um romance. Talvez as primeiras páginas de Peona
e Dona ou de Jango
Jorge, as únicas que não
teriam ficado no tinteiro.
D.
Francisca Meirelles Simões Lopes sobreviveu ao marido nada menos de
48 anos, tendo falecido a 3 de janeiro de 1965, aos 95 anos de idade
e em plena lucidez. Dela
recebi, a título de colaboração às minhas pesquisas, valiosa
documentação. E, naturalmente, nos tornamos bons amigos, como
testemunham as cartas que dela conservo, com gratidão e ternura.
Capa:
Tânia Porcher
Foto:
Jorge Rolla
Fonte:
Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A.,
1978, p 3/6.
Crédito Carta D. Francisca: Laitano, Cláudia. Tumultuário: cadernos de memórias de Carlos Reverbel. Orientador: Luís Augusto Fischer. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Porto Alegre, 2022, p. 101.
Disponível: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/242236/001145263.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Acesso 10/07/2023