terça-feira, 11 de julho de 2023

População dos 7 Povos em 1822 (Antônio José Gonçalves Chaves)

 

Antônio José Gonçalves Chaves*, na obra Memorias economopolíticas sobre a administração publica do Brazil (1823) fornece os seguintes dados.

Em 1801 José Borges do Canto conquistou as Missões para a coroa portuguesa, a população reduzida seria 14.000 pessoas (almas, para os jesuítas).


Povo

Ano 1801

Ano 1822

São Miguel

1900

600

São João

1600

300

São Lourenço

960

250

Santo Ângelo

1960

350

São Luiz

2350

200

São Nicolau

3940

250

São Borja

1300

400

Total

14010

2350


Ainda depois da independência do Brasil, as Missões estavam separadas da província, formando uma seção administrativa.

Cada povo tem um Corregedor e mais Magistrados civis (melhor diríamos rurais). O Governo nomeia-lhes Administradores, e um Governador que vigia sobre tudo.

Os povos, em vez de prosperar, cada vez diminuem mais.

cousa de três anos tirou-se dali um Corpo de tropas de 400 Guaranys.


Texto adaptado

*Português, viveu em Pelotas, onde foi charqueador.




Fonte: Brasil, Joaquim Francisco de Assis. História da República Rio-Grandense (Estante Rio-Grandense União de Seguros – ERUS). Porto Alegre: Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas, 1982, p. 18

segunda-feira, 10 de julho de 2023

João Simões Lopes Neto, obra (Carlos Reverbel)

 

O baú

J. Simões Lopes Neto publicou em vida apenas três livros: Contos Gauchescos, Lendas do Sul e Cancioneiro Guasca. Postumamente, foram editadas duas obras de sua autoria: Terra Gaúcha e Casos do Romualdo.

A produção do grande regionalista teria sido bem maior se os diversos livros que ele anunciou, como “em preparo” ou “a sair”, tivessem realmente aparecido. Nunca apareceram pela simples e boa razão que jamais foram escritos.

Na época do velho Simões, um escritor municipal, que viveu e editou seus livros em Pelotas, era frequente os literatos anunciarem obras de que havia apenas o título, o que levaria os pesquisadores, em alguns casos, a empreender trabalhosas buscas no vazio.

Foi o que aconteceu em relação ao notável escritor pelotense, na acurada e inútil procura de originais cuja autoria ele próprio se atribuía, inclusive dois romances regionais – Peona e Dona e Jango Jorge – que J. Simões Lopes Neto costumava apresentar como inéditos, isto é, já concluídos, faltando, apenas, serem publicados. Tudo leva a crer, entretanto, que esses romances somente existiram na imaginação do escritor, indo com ele para o túmulo.

Não foi, felizmente, o que se daria com os Casos do Romualdo, cuja descoberta faria com que a reduzida bibliografia simoniana viesse ganhar novo e valioso título, tendo, ao mesmo tempo, enriquecido o nosso regionalismo literário com uma obra que, segundo Augusto Meyer, aponta “novas qualidades no grande regionalista”

Quando estive em Pelotas, em 1945, a serviço da Editora Globo, para realizar uma pesquisa em torno da vida e da obra de J. Simões Lopes Neto, a viúva do escritor, D. Francisca Meirelles Simões Lopes, ainda vivia, na condição de ter de trabalhar (apesar da avançada idade), para prover o próprio sustento e o de uma filha de criação chamada Firmina e sem qualquer capacitação profissional. D. Francisca exercia com dignidade e eficiência as funções de secretária do Conservatório de Música local. Dela se dizia na cidade: é pobre, mas orgulhosa.

Como vinha fazendo em relação a todos que a procuravam, por causa do nome literário do marido, já então bastante valorizado postumamente, recebeu-me com muitas reservas, só faltando bater-me com a porta na cara, quando lhe disse dos motivos de minha visita. Afirmando ter sido vítima de falcatruas, com perdas e até roubos de originais inéditos do marido (inclusive o dos Casos do Romualdo), por parte de pesquisadores que me haviam antecedido e até por parte de escritores que se inculcavam como “amigos e admiradores” de J. Simões Lopes Neto, ela resolvera não mais receber “essa espécie de gente”, emprestando às últimas palavras um tom que poderia ser interpretado como “essa espécie de exploradores”.

Não tive, assim, outra alternativa senão deixá-la entregue aos seus ressentimentos e amarguras e tratar de iniciar a pesquisa em outras fontes. Lá pelas tantas, no andamento do trabalho, que já se revelara bastante proveitoso, a ponto de Augusto Meyer apontá-lo, mais tarde, como obra de “copista beneditino”, fui levado pela mão de Francisco Cardoso, um contemporâneo do escritor, que fora seu amigo e grande admirador, ao sótão de um casarão abandonado, onde tive a sorte de encontrar, entre outros guardados, um volume encadernado do Correio Mercantil, jornal pelotense há muito fora de circulação.

Por pura sorte, ali encontrei, publicado em folhetim, a partir da edição de 1º de junho de 1914, o texto completo dos Casos do Romualdo, livro cujos originais todos informavam, a começar pela viúva do autor, terem sido extraviados por Pinto da Rocha, que os levara, numa de suas passagens por Pelotas, para fazer-lhe o prefácio e procurar-lhe editor, no Rio de Janeiro, deles não tendo ficado cópia, nem rastro.

Voltei à casa de D. Francisca (que era conhecida na cidade pelo apelido de D. Velha), já então armado com a cópia datilográfica do folhetim, perguntando-lhe se não tinha lembrança que a obra havia sido publicada, num jornal local, em 21 capítulos, ainda em vida de J. Simões Lopes Neto. Ela, cada vez mais sestrosa e retrancada, afirmou que jamais houvera tal publicação, voltando aos casos de extravios, perdas e espoliações de que se dizia vítima.

Tomei, então, a iniciativa de entregar-lhe o texto datilografado do livro, com a observação de que, à vista do sucedido, parecia que ela deixara de acompanhar a vida literária do marido, por não reconhecer, talvez, o seu talento de escritor, enquanto ele vivera a seu lado. A velhinha desmontou, literalmente. E, voltando-se para os fundos da sala, limitou-se a bradar, com energia: “Firmina, traz o baú”.

Foi, assim, colocado à minha disposição velho e precioso baú, em que D. Velha guardara, fechado a sete chaves, o que havia sobrado do espólio literário do grande escritor gaúcho, inclusive as páginas inéditas e manuscritas das Recordações da infância, umas vinte e tantas laudas, que me deram a impressão de ser o começo de um livro de memórias, mas que a ensaísta Eliane Zagury identificou, com grande acuidade, como a tentativa de um romance. Talvez as primeiras páginas de Peona e Dona ou de Jango Jorge, as únicas que não teriam ficado no tinteiro.

D. Francisca Meirelles Simões Lopes sobreviveu ao marido nada menos de 48 anos, tendo falecido a 3 de janeiro de 1965, aos 95 anos de idade e em plena lucidez. Dela recebi, a título de colaboração às minhas pesquisas, valiosa documentação. E, naturalmente, nos tornamos bons amigos, como testemunham as cartas que dela conservo, com gratidão e ternura.




Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 3/6.

Crédito Carta D. Francisca: Laitano, Cláudia. Tumultuário: cadernos de memórias de Carlos Reverbel. Orientador: Luís Augusto Fischer. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Porto Alegre, 2022, p. 101.

Disponível: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/242236/001145263.pdf?sequence=1&isAllowed=y 

Acesso 10/07/2023

Júlio de Castilhos e aguardente (Carlos Reverbel)

 

Lágrimas de Santo Antônio

Amanhã quando vieres, deves trazer no carro duas garrafas de caninha especial (Lágrimas de Santo Antônio), visto haverem sido ontem esgotadas, em abundante palestra dos amigos, as duas que eu trouxe sexta-feira.”

Este bilhete foi dirigido por Júlio de Castilhos a Aurélio Veríssimo de Bitencourt, seu secretário. Na ocasião o então presidente do Estado se encontrava na Chácara da Figueira, de sua propriedade e situada no atual arrabalde da Glória, para onde se recolhia com certa frequência.

Entre os amigos a que se refere, o Patriarca (como Castilhos passaria a ser chamado) menciona apenas dois: Borges de Medeiros e Francisco Rodolfo Simch, pelo que se depreende do bilhete, igualmente apreciadores de Lágrimas de Santo Antônio.

Noutro bilhete, também dirigindo ao secretário, Júlio de Castilhos mandou o seguinte recado a Cássio Brum Pereira, seu ajudante-de-ordens:

Incluo 25$000, que entregarás ao Cássio. É a importância da dúzia de Lágrimas de Santo Antônio, que ele comprou há dias. Dize-lhe que encomende outra dúzia.”

Estávamos no último quartel do século passado, época em que ainda não se havia inventado o dadivoso modelo de economia doméstica denominado mordomia. E, nestas condições, nada se conseguia sem mostrar a cor do próprio dinheiro, não havendo discriminações entre os consumidores, por parte do bodegueiro. Segundo a famosa Carta de 14 de Julho, inspirada nas ideias políticas de Augusto Comte, todos eram iguais perante o balcão do armazém da esquina.

Talvez por medida de economia (pois, como se sabe, o Patriarca era parcimonioso nos gastos), chegou um momento em que entendeu de abastecer-se de Lágrimas de Santo Antônio na própria fonte de produção. Recorria, então, aos préstimos do Cel. José Maciel, intendente municipal de Santo Antônio da Patrulha, conforme se verifica através desta missiva:

Amigo José Maciel, aceitai minhas saudações. Senti não encontrar-me convosco quando viestes ultimamente a esta capital. Eu estava então veraneando em uma chácara. Desejo que continueis a administrar com felicidade o vosso município e a dirigir com acerto o Partido Republicano local, de que sois zeloso chefe. Prevalecendo-me dos vossos oferecimentos, tomo a liberdade de pedir-vos que me envieis com a brevidade possível um barrilote de aguardente especial, a melhor que aí houver. Desejo servir a um amigo, que me fez tal encomenda. Quando fizerdes a remessa do barrilote, deveis enviar a nota do preço, a fim de receberdes a respectiva importância. Aguardo vossa resposta. Contai sempre com o vosso amigo obr. - Júlio de Castilhos.”

Esta carta traz a data de 24 de março de 1899. Foi encontrada nos papéis deixados pelo Cel. Maciel. Também foi encontrada, nos papéis do mesmo, uma nota com os seguintes dizeres:

Embarco na carreta do Sr. Manuel Agostinho Ribeiro um caixote para ser entregue, em Porto Alegre, ao Ex.mo Sr. Dr. Júlio de Castilhos. Santo Antônio, 10 de dezembro de 1900. - José Maciel.”

Nessa mesma nota, embaixo, se lê o seguinte, escrito do próprio punho de Castilhos:

Recebi. Porto Alegre, 14-12-1900. - Júlio de Castilhos. Aproveito o ensejo para apresentar ao prezado colega meu cordial abraço.”

Como se vê pelas datas registradas na nota acima transcrita, a “carreteada” de Santo Antônio a Porto Alegre levou apenas quatro dias. E fica evidente, pelas respectivas datas, que era uma outra encomenda, não a que se refere a carta de Júlio de castilhos a José Maciel, datada de 24 de março de 1899. Tudo indica que as encomendas se tornaram regulares e habituais.

Embora na sua carta Júlio de Castilhos tenha deixado a critério do Cel. Maciel a escolha da marca da 'branquinha” encomendada, tem-se como certo que esta recaiu sobre a denominada Lágrimas de Santo Antônio, a cachaça mais afamada entre as já produzidas no Estado.

O papel hoje desempenhado pela Escócia, com ativa participação dos falsificadores de uísque, brasileiros e paraguaios, era naquela época exercido, com honra e glória, pelo município de Santo Antônio da Patrulha.

Há uma quadrinha do cancioneiro gaúcho que diz o seguinte:

A gaita matou a viola,

O fósforo matou o isqueiro;

A bombacha o chiripá

E a moda o uso campeiro.”

Resta acrescentar que o uísque matou a cachaça…



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 105/107.

Borges por João Neves da Fontoura (Carlos Reverbel)

 

O presidente e a bailarina

Na carência da bibliografia sobre Borges de Medeiros, as Memórias de João Neves da Fontoura talvez reúnam as melhores páginas já escritas a respeito do poderoso chefe republicano, em que pese a relação de dependência partidária e a afeição pessoal que os vinculava.

Entre outras, esta passagem é bastante ilustrativa:

Como já assinalei” - sublinha o memorialista - “o Sr. Borges de Medeiros foi, no poder, o homem solitário. Sem confidentes nem conselheiros. Assessores, mesmo, a rigor nunca os teve. Nem a família se intrometia na política ou se arrogava o direito de participar da administração do Estado ou da direção do Partido. As mensagens do Sr. Borges de Medeiros, seus discursos, seus despachos, não eram tão somente obras dele, como os escrevia do próprio punho, com aquela letra magnífica – igual, cheia, regular, de caracteres bem desenhados, letra que conserva, apesar dos anos, a beleza do antigo talhe. Quando cometia a outros a elaboração de projetos, não o fazia para depois apresentá-los como de sua autoria. Nomeava por decreto as pessoas escolhidas e mais tarde se limitava a corrigir ou alterar, a seu juízo, o trabalho que lhe fosse apresentado. Assim aconteceu com a reforma da Lei da Organização Judiciária”.

Em fins de 1925, quando ia entrar no penúltimo ano de seu terceiro mandato presidencial, Borges de Medeiros convidou Sérgio Ulrich de Oliveira para Secretário da Viação e Obras Públicas. Esta escolha foi interpretada, na época, como sinal de que o novo secretário seria o substituto de Borges de Medeiros na presidência do Estado.

A propósito, comenta o memorialista:

Era, entretanto, natural que a escolha de Sérgio de Oliveira para a pasta de Obras Públicas despertasse, no mundo político, a suposição, perfeitamente razoável, de que as preferências do Sr. Borges de Medeiros se haviam fixado na pessoa do seu novo secretário, para sucedê-lo. Sérgio representava, sem favor nem exagero, uma das melhores expressões, de conjunto, no seio do Partido Republicano. Caracterizava-o – primus inter pares – a harmonia entre os predicados morais e mentais. Insigne advogado, exercia a profissão com os rigores de uma ética exemplar. Fronteiriço, tinha da zona de seu berço as qualidades dos homens, sem os defeitos. Cultura esmerada nos domínios do Direito, da Filosofia Política, da Literatura, era um orador diserto, falando sem arroubos mas fiel à máxima de Quintiliano: quem sabe bem diz bem. Desde o início de sua vida, revelou profunda compreensão quanto à prevalência dos deveres sobre as conveniências.”

Tratava-se, enfim, de um homem público que, seja como político, seja como pessoa, quer pela integridade moral e pela firmeza de caráter, quer pela inteligência e pelo saber, reunia todas as condições para empunhar as rédeas do governo, estando, assim, perfeitamente à altura de recebê-las das mãos de Borges de Medeiros, na sua austeridade e na sua intransigência. E tinha-se como certo de que Sérgio de Oliveira seria o futuro presidente do Estado, embora Borges de Medeiros mantivesse rigoroso silêncio a respeito, como era de seu feitio de esfinge.

Quando foi um certo dia, já em fins de 1926, ocasião em que começara a ser organizada a chapa republicana para a Câmara dos Deputados, Borges de Medeiros mandou chamar Sérgio de Oliveira, comunicando-lhe que seu nome iria fazer parte da respectiva nominata.

Sérgio no dia seguinte” - informa o memorialista - “com a sua habitual elegância, exonerou-se da Secretaria, recolhendo-se à sua casa de Uruguaiana. Pequena não foi a decepção dos que nele anteviam o sucessor do Dr. Borges de Medeiros na presidência do Estado”.

Começou, então, a correr o boato de que Sérgio de Oliveira havia perdido a oportunidade de chegar ao governo do Estado porque teria se deixado “enfeitiçar pelas graças” de uma bailarina espanhola, em atuação no Clube dos Caçadores, famoso cabaré da época.

Embora o político uruguaianense fosse viúvo e tudo tivesse acontecido – se é que realmente aconteceu – na maior discrição, teria sido quanto bastou para que Borges de Medeiros, informado do episódio por um espírito de porco, que sempre os há, segundo Nelson Rodrigues, passasse a pensar noutro nome para substituí-lo. E esse outro nome não foi outro senão o de Getúlio Vargas.

O episódio deve realmente ter acontecido, de acordo com a sábia filosofia de que onde há fumaça há fogo. E dele se conclui que, se não fosse o célebre Clube dos Caçadores, com as suas importações de bailarinas espanholas, cançonetistas francesas e outras “artistas internacionais”, a história de 1930 para cá poderia ter sido um pouco diferente.

João Neves da Fontoura, por sua vez, encara o episódio, nas suas valiosas Memórias, da seguinte maneira:

De tudo quanto acabo de narrar, decorre uma inevitável filosofia: como teria sido diferente a história contemporânea do Brasil se, em lugar de Vargas, o Sr. Borges de Medeiros houvesse adotado, em 1927, a candidatura de Sérgio de Oliveira à presidência do Rio Grande!”.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 98/101.

Florianópolis, 1934 (Carlos Reverbel)

 

O lagarto e o camelô

Por volta de 1934 fui dar com os costados na ilha de Santa Catarina, terminando a viagem como repórter de um jornal de Florianópolis. Era no tempo em que o Palácio patrocinava o direito de ir e vir, sem ônus para o Tesouro. Um telefonema para o agente da Costeira resolveu, na hora, o problema da passagem, colocando em termos reais a aventura que me borbulhava na imaginação. E assim fiz o batismo de mar, barra a fora, num barco lerdo e acanhado, porém sincero: o Comandante Capela.

O jornal, que fazia oposição sistemática, teimando em defender a política decaída em 1930, realizava o milagre de ainda sair todos os dias. Era composto à unha, por velhos tipógrafos, todos grandes sujeitos. Ainda mantinham a tradição da classe, antigamente muito chegada às belas-letras. Tomavam intimidade com o “colega” Machado de Assis e cada qual se julgava o maior conhecedor de Cruz e Sousa. As apostas em que se empenhavam, para tirar a teima, eram capazes de levá-los a declamar as obras completas do lendário poeta catarinense.

Na redação, éramos apenas três gatos pingados. Um desembargador aposentado, responsável pelo artigo de fundo. O secretário, gênero pé-de-boi, que fazia, praticamente, o jornal todo. E este seu criado, no campinho do noticiário geral, aliás, muito despovoado, pois nunca havia espaço para os acontecimentos apartidários. O diretor só aparecia para dar as tintas políticas ou para salvar o valente órgão, alcançando-lhe, pouco antes de exalar o último suspiro, magra pecúnia, sempre captada entre os mesmos (e poucos) correligionários, mas que nunca deixava de reunir o estritamente necessário para prolongar-lhe os estertores.

A vida na ilha barriga-verde, naquele tempo, não podia ser mais amena e dadivosa. O cacho de bananas, que serviria, em caso de aperto, para fornecer proteínas por uma semana inteira, costumava ser ofertado a menos de 500 réis. O peixe só faltava pedir licença para fugir do mar e invadir as cozinhas, precipitando-se nas panelas, de ponta-cabeça. Mas sempre preferi na beira da praia, preparado em lata de querosene marca Jacaré, sobre o braseiro crepitando num buraco feito na areia. Aprendi a preparar e degustar a especialidade numa colônia de pescadores, segundo a clássica receita de camões:

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

sonhando, imaginando ou estudando,

senão vendo, tratando e pelejando”.

Como moradia, um quarto de pensão, cujo único luxo consistia em ser individual. Mas, um belo dia, a dona do estabelecimento pediu permissão para nele introduzir outro hóspede. Como a mensalidade nem sempre era atendida de modo pontual, não tive outra saída senão capitular, como Koutouzov em Austerlitz. E logo pude constatar, com perplexidade, que, em vez de um, apareceram dois novos hóspedes: o Aristides e seu companheiro Juquinha.

Nesse preciso momento, o Graf Zeppelin começou a sobrevoar a bela cidade de Florianópolis que, vista das alturas, a voz geral comparava a um presépio. Entretanto, era tal minha depressão, em face da dupla invasão do meu domicílio, que não tive ânimo, sequer, para chegar à janela e assistir ao “acontecimento do século”. Em estado de melancolia profunda, fui a única alma, em todo o litoral brasileiro, que não viu a passagem do dirigível Zeppelin, navegando precisamente na rota em que, ao passar pelo Recife, levaria o poeta Ascenso Ferreira a exclamar, pela voz de uma de suas criaturas folclóricas:

Meu Deus! Como a pomba do Espírito Santo cresceu!”

Toca-me agora a vez de também exclamar:

Meu Deus! Como a gente se engana neste mundo!”

Reunidos sob o mesmo teto, tornamo-nos os melhores amigos. Como o meu trabalho era noturno e o de Aristides e Juquinha se realizava durante o dia, a coabitação quase desaparecia nessa providencial diferença de horários. Assim, se quisesse encontrar os companheiros de quarto, teria de ir até o Mercado Público, onde eles exerciam a sua admirável arte.

Para atrair o público, Aristides retirava o Juquinha de dentro de uma sacola, colocava-o carinhosamente sobre a calçada e começava a dialogar com o inteligente parceiro, também revelando, por sua vez, grande talento histriônico. Formada a roda de basbaques, que nunca faltavam, renovando-se como em sessões permanentes de cinema, Aristides recolhia o Juquinha à respectiva sacola e começava a apregoar e vender a sua mercadoria, a toda velocidade.

Era um medicamento infalível, segredo de curandeiros indígenas do Alto Amazonas, elaborado com poderosas resinas medicinais, que tinha a propriedade de curar todas as doenças e fechar o corpo do paciente para as vindouras. Só não iam na conversa os companheiros de quarto do genial camelô, eu e o lagarto Juquinha, acostumados ao engenho com que ele fabricava, usando água da pena e uma anilina esverdeada, a sua milagrosa maravilha curativa.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 90/92.

Fernando Ferrari e uma obra (Carlos Reverbel)

 

Como andei fazendo umas pesquisas, no campo da bibliografia rio-grandense, ainda acontece de me pedirem informações sobre a matéria. Outro dia, um bibliófilo amigo, por sinal dos mais excêntricos, pois dá preferência, na sua estante de raridades, a edições recolhidas pelos autores, desejava saber se o saudoso político Fernando Ferrari realmente escrevera um romance, para mais tarde retirá-lo de circulação.

Não sei se o livro chegou a ser renegado pelo autor. Entretanto, posso garantir que foi escrito e publicado, num desses assomos de mocidade que a idade madura em geral repudia. Sem qualquer agravo à memória do autor, mesmo porque ele a seguir afirmaria, superiormente, como eminente homem público – sua legítima vocação – ainda posso garantir que a sua imatura incursão no campo da literatura, em que pese o generoso impulso, foi coisa parecida com o que antigamente se classificava como “um mau passo”.

Se fizermos ligeiro balanço nos livros de paternidade renegada, veremos que Fernando Ferrari, se efetivamente alimentou essa frustração, pode ser relembrado ao lado de muito boas companhias. Sabe-se, por exemplo, que Assis Brasil retirou de circulação as Chispas, seu primeiro e único livro de versos, motivo que a referida obra é hoje das mais cobiçadas e valorizadas raridades bibliográficas, pelo menos entre os colecionadores gaúchos, entre os quais pontifica Júlio Petersen, ex-goleiro, como Albert Camus.

Dá-se, ainda, o caso de certos livros serem retirados das livrarias por outros pudores que não os de natureza estritamente literária. Seria talvez o que tivesse levado João Neves da Fontoura a pelo menos não permitir a reedição do Acuso, a partir de determinado momento de sua carreira política. E temos também casos de obras recolhidas, não propriamente pelos autores, mas pelos seus descendentes, o que tanto pode acontecer por indulgência, como por motivos menos confessáveis, talvez para evitar possíveis comprometimentos, por via ancestral.

O romance de Fernando Ferrari, praticamente desaparecido até mesmo dos abundantes “sebos” do Manoel dos Santos Martins e do José Monteiro de Assis, foi editado em 1943, na cidade de Santa Maria, pela Tipografia da Escola de Artes e Ofícios da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, sob o seguinte título: Mas... e os Sinos não Dobraram.

Na biografia do autor, feita por Jorge Hadelt e impressa em 1960, nas oficinas gráficas da Livraria do Globo, há apenas esta referência sobre a aludida raridade bibliográfica: “Antes de ingressar na Faculdade de Ciências Econômicas, publicou um pequeno romance de caráter social, bem recebido pelos críticos da época”.

A referência é por demais acanhada, senão desenxabida, tendo partido de quem assim se pronunciava a respeito do seu biografado; “Nesta época conturbada por que atravessa o País, o aparecimento de Ferrari é, por assim dizer, uma dádiva divina.” O capítulo final da biografia é uma espécie de apoteose, com várias chaves de ouro, inclusive esta:

O desenvolvimento interior de Ferrari alcançou o limite máximo da perfeição, dando-nos a ideia mais cabal da grandeza humana”.

O transbordamento destas palavras, dedicadas ao homem público que vinha granjeando enorme popularidade e afeições, beirando o fanatismo, faz ilustrativo contraste com a sobriedade da referência ao “pequeno romance de caráter social”, embora com o esclarecimento de que fora “bem aceito pelos críticos da época”, o que não se verificou.

Publicado quando o autor recém-chegara aos 22 anos de idade, o romance de Fernando Ferrari não chegara a ser, propriamente, de “caráter social”, antes girando em torno do tema da ovelha desgarrada, tendo como protagonista um jovem que se desvia da religião e da família e volta à casa paterna como o antifilho pródigo, para afinal ensandecer de todo e morrer danado, entre os túmulos de um cemitério de aldeia, depois de ter causado as maiores devastações humanas nas adjacências.

No que diz respeito ao obituário, a obra tem profundas semelhanças com a mortandade das tragédias antigas. E serviu para demonstrar, sem sombra de dúvida, que os caminhos do autor teriam de ser trilhados fora da literatura. Como, de resto, foram afanosa e dignamente procurados e encontrados, através de exemplar dedicação à vida pública, numa carreira política ainda cheia de esperanças quando foi cortada de modo tão chocante e prematuro.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 81/83.

Cerro Formoso (Carlos Reverbel)

 

Um jovem, que viria a ser brazonado do Império, andava tropeando no município de Rio Pardo, quando encontrou uma carreta atolada na estrada. Como bom campeiro, foi logo tratando de ajudar os viajantes naquela dificuldade. O lerdo e pesado veículo, puxado por diversas juntas de bois, com outras tantas de reserva (ou de muda, como se dizia na campanha), conduzia uma família, de Porto Alegre a Rio Pardo. Era como se viajava na época, por terra.

Nas interessantes memórias de João Daudt há uma descrição que documenta admiravelmente esse primitivo meio de transporte. Só que o memorialista descreve outra viagem e outro roteiro, já então de Santa Maria a Rio Pardo. E nele não se registrou nenhum episódio fora do comum, como o da carreta atolada.

Nesse encontro, ageste e imprevisto, o jovem tropeiro conheceu a moça (citadina e porto-alegrense), que se tornaria sua esposa, formando-se, assim, um tronco genealógico que conta hoje com cerca de mil descendentes.

No dia que fez 140 anos esse encontro em campo aberto, foi lançado um livro, em sessão de autógrafos, realizada na Livraria do Globo, no qual um dos numerosos descendentes do então jovem casal – o historiador Tácito van Langerdonck – reconstitui a árvore genealógica daqueles que seriam o Visconde e a Viscondessa de Cerro Formoso.

O primeiro título nobliárquico outorgado a Cerro Formoso, no grau de barão, foi-lhe conferido por D. Pedro II, em reconhecimento a serviços prestados na Guerra do Paraguai. Quando Uruguaiana ainda estava cercada pelas tropas de Estigarribia, o antigo tropeiro de Rio Pardo, já então grande estancieiro, mandou alistar 50 escravos de sua propriedade, no Exército Brasileiro, fazendo, ainda, a doação de centenas de animais muares e cavalares. O gesto não teria qualquer grandeza humana e, mesmo, cívica, se também não tivessem sido alistados, juntamente com os escravos, os quatro filhos varões de Cerro Formoso.

Com exceção de um, que regressou após dois anos, em razão de grave enfermidade, contraída no chaco paraguaio, os demais lutaram até o fim da campanha, chegando todos ao oficialato, tendo um deles, que atingira o posto de coronel, se tornado um dos mais destacados combatentes do exército de Osório, a ponto de ser distinguido, em ordem-do-dia firmada pelo Conde d'Eu, como “superior a qualquer elogio”. Chamava-se Antônio Leal de Macedo.

Esse bravo rio-grandense, um dos poucos oficiais que fez os cinco anos de guerra, sem qualquer interrupção, tomando parte saliente nas grandes ações militares desencadeadas pelo Gen. Osório, distinguiu-se ainda por uma “gauchada”, possivelmente única em toda a campanha do Paraguai. Tendo partido para a guerra, da estância de seu pai, situada no município de Lavras do Sul, no cavalo de sua predileção, ao regressar da luta, cinco anos depois, montava o mesmo animal.

De volta ao pago, ele mesmo desencilhou o pingo, soltou-o no potreiro fronteiro à casa e nunca mais permitiu que fosse montado, deixando-o morrer de velho, no fundo de uma invernada. Foi como que um reconhecimento por serviços prestados, marcando um dos episódios mais ilustrativos da identificação que havia, no antigo Rio Grande campeiro, entre o homem e o cavalo, tanto no trabalho, como na guerra.

Senhor de mais de 10 léguas de sesmaria, que se alongavam através dos municípios de Caçapava, Lavras do Sul, São Sepé e São Gabriel, o Visconde do Cerro Formoso, ao receber D. Pedro II em sua estância, em 1865, surpreendeu o Imperador com uma retreta, aberta com o Hino Nacional e executada pela sua banda de música particular, formada com escravos por um maestro italiano, que mantinha permanentemente em seu estabelecimento.

O livro de Tácito van Langendock, não se limitando à pesquisa genealógica, apresenta notas biográficas, a começar pelas do Visconde de Cerro Formoso, através das quais se podem recolher fatos e episódios bastante elucidativos sobre a vida do patriarcado rural rio-grandense, no século passado.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 87/89.


Um orixá, um barco, livros (Carlos Reverbel)


O fato de ter reunido uma grande biblioteca ao longo da vida me propiciou bastante experiência no trato dos livros e, de lambujem, alguns rudimentos de biblioteconomia, adquiridos, naturalmente, por via do autodidatismo, sem dúvida a ciência que mais se afeiçoa ao temperamento do brasileiro, em geral trêfego e borboletante.

Aliás, esta é a segunda biblioteca que consigo amealhar, tendo recebido, por vezes, substancial ajuda de alguns amigos. Moysés Vellinho, por exemplo. Um belo dia o ilustre ensaísta me agraciou com uns dois ou três carrinhos de mão cheios de livros. Vieram, inclusive, diversas raridades bibliográficas, pelo que serei eternamente grato.

Da minha primeira (e também volumosa) biblioteca nem gosto de lembrar. Vendi-a ao correr do martelo, em 1946. Eu fora possuído, naquela ocasião, por um orixá que desejava viver algum tempo em Paris, por meu intermédio. A entidade baixou e não havia jeito de me largar. Tive de obedecê-la, tratando de organizar a viagem. Como o dinheiro era pouco (quiçá, nenhum) tomei a sábia resolução de vender tudo o que possuía, a começar pelos livros.

A travessia aconteceu na terceira e horripilante classe dum vapor cujo nome até hoje me produz calafrios pelo corpo todo: “Felipa”. O barco, que fora transporte de guerra e se mantinha como tal, com beliches de madeira rústica e colchões ralos, onde os passageiros de terceira eram empilhados, ostentava a gloriosa bandeira panamenha, mas era de propriedade duma empresa italiana, que assim furava a proibição de navegar, ainda em vigor para armadores alemães e italianos. Com o Panamá de testa-de-ferro, a Itália começava a voltar aos mares, mas lamentavelmente me tocara o “Felipa”, não o “Cap. Aarcona”, como naquela história da Lia e da Raquel.

Foi uma das primeiras, senão a primeira travessia do Atlântico Sul, depois da guerra, sendo de notar que ainda havia minas no Mediterrâneo, em cuja entrada o nosso piloto foi substituído por um prático. Às vezes a embarcação enguiçava, ficava meio à deriva sobre as ondas e então se fazia uma subscrição a bordo para pagar horas extraordinárias aos maquinistas. Nunca esqueci: quando desembarcamos no cais de Marselha, vi uma francesa, que ficara retida em Buenos Aires durante a guerra, beijar o chão. Outra caiu de joelhos e começou a rezar histericamente.

Na volta, já passados quase dois anos, ainda sofri dissabores por causa da venda de minha biblioteca, a primeira, como foi esclarecido. Alguns autores, que me haviam oferecido seus livros com dedicatória, ficaram chocadíssimos ao encontrá-los nos “sebos”. Ora, isto faz parte do negócio, não havendo mal algum na colocação, em antiquários, de livros com autógrafo dos respectivos autores. É prática corrente em bibliofilia e seu comércio, servindo, inclusive, como fator de valorização do livro. Eu mesmo trouxe de Paris, adquiridos nos buquinistas do Sena, alguns livros com dedicatória do autor a terceiros. E hoje tenho uma ala de minha biblioteca com livros assim valorizados.

Pelos rumos que as coisas tomaram, estou vendo que não será desta vez que terei espaço para transmitir, como pretendera no início, os rudimentos de biblioteconomia que terminei adquirindo, no longo trato com os livros.

Sou de opinião, por exemplo, que a primeira peça duma casa que se deve atulhar de livros é o quarto de hóspedes. Fica-se, assim, armado de excelente desculpa para não mais recebê-los, principalmente se ainda adotarmos o sistema de impregnar o local de naftalina, conforme aconselhava Rui Barbosa.

Outra recomendação que, baseado em minha própria experiência, tomo a liberdade de transmitir aos possuidores de biblioteca é de mantê-la na mais apavorante desordem, de modo que o livro procurado nunca possa ser encontrado. Sob o pretexto de que seria impossível encontrá-los, consegue-se, com essa eficiente técnica, a melhor desculpa para não emprestar livros.

Mas a maior vantagem de possuir uma grande biblioteca é a de dispensar a sua leitura, alegando-se absoluta falta de tempo para enfrentar a enorme massa bibliográfica. O indivíduo que dispõe de poucos livros fica na obrigação moral de devorá-los; o mesmo, entretanto, não se pode exigir daquele que juntou livros aos montes; seria um atentado aos direitos humanos, segundo o intérprete de polonês de Jimmy Carter.




Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 102/104.

Zeferino Brasil por Carlos Reverbel

 

A obra de Zeferino Brasil, formada por treze livros, foi iniciada em 1891, com Alegros e Surdinas, e concluída em 1935, com alma Gaúcha, poema épico em celebração do centenário da Revolução Farroupilha. Segundo o prof. Dionísio Fuertes Alvarez, que prefaciou a obra, “Alma Gaúcha é um dos poucos poemas épicos, dignos desse nome, que produziu a literatura do Rio Grande do Sul”. Dos treze livros de Zeferino Brasil quatro já foram reeditados pelo Internacional, inclusive Vovó Musa, que tivera duas edições anteriores, em 1903 e em 1917, proporcionando ao autor o título de “príncipe dos poetas gaúchos”.

Creio ter sido o repórter que entrevistou Zeferino Soares pela última vez. Sabendo de seu precário estado de saúde, na avançada idade a que chegara (71 anos), resolvi captar-lhe uma espécie de entrevista testamento. Ele publicara, pouco antes, na Revista do Globo, uma espécie de testamento sentimental, através de um soneto de muita ternura, dedicado a D. Celina, sua mulher, no dia das bodas de ouro do casal. Ainda sou capaz de reproduzir, de memória, os tercetos desse derradeiro soneto:

Velhinhos sempre unidos e abraçados

entre risos e flores caminhando,

como dois venturosos namorados,

nós vamos nossas vidas continuando,

meus olhos nos teus olhos extasiados,

teu coração dentro do meu pulsando”.

Numa tarde de domingo, fui procurá-lo em sua modesta casa, situada na Rua Pantaleão Teles nº 728. A fuligem do velho Gasômetro, que ficava na vizinhança, estava funcionando a todo vapor. Recebido que fui por D. Celina, o poeta não tardou a aparecer na humilde sala de visitas, com a vasta cabeleira revolta, a gravata ainda à Lavallière e claudicando, apesar da bengala que o ajudava a locomover-se, desde moço.

Disse-lhe do objetivo de minha visita, passando-lhe às mãos, a seguir, o questionário que trouxera redigido, com doze perguntas, cujas respostas recolheria no dia que ele determinasse. E assim as coisas se passaram, assegurando-me o privilégio de poder conservar, até hoje, precioso autógrafo, na bela caligrafia de Zeferino Brasil.

A entrevista saiu na edição da Folha da Tarde de 27 de janeiro de 1942 e o poeta veio a falecer no dia 3 de outubro do mesmo ano. Durante a entrevista, Zeferino Brasil confidenciou-me que estava escrevendo suas memórias, mas que deixaria recomendação para somente serem publicadas dez anos após a sua morte. Fui advertido, na ocasião, para não cometer nenhuma indiscrição, deixando de divulgar os episódios de suas memórias que ele me revelara, em confiança. Eu deveria publicar, apenas, as respostas ao questionário que eu lhe entregara no domingo anterior, e que ele me devolvia, completamente preenchido, de próprio punho. E tudo se fez, conforme sua vontade.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 73/74.

O transporte coletivo (Carlos Reverbel)

 

A chuva que não veio

Estive outro dia no Beira-Rio. Foi uma luta para chegar ao estádio. Todas as vias de acesso estavam congestionadas, tal a quantidade de veículos que se arrastava com o mesmo destino.

Enquanto o motorista do táxi deblaterava contra o engarrafamento do trânsito, eu imaginava as dificuldades que teria para conseguir um bom lugar naquela catedral de Notre Dame do Futebol.

Chegando finalmente ao destino, depois de uma travessia tão temerária e incruenta quanto a participação dos táxis de Paris na batalha do Marne, logo constatei que o estádio se encontrava quase vazio, não tendo recebido, sequer, uma quarta parte de sua lotação. Lotados estavam, apenas, os locais de estacionamento.

Como inúmeros outros, este flagrante urbano mostra o grau de hipertrofia do transporte individual na vida porto-alegrense. Chegou-se a esta distorção por causa de descaso a que ficara relegado o sistema de transporte coletivo.

Foi preciso a crise do petróleo para que nos déssemos conta de que o primado do transporte individual, em detrimento do coletivo, é uma aberração urbana, não apenas do ponto de vista social, mas também do ponto de vista econômico.

A crise petrolífera, de que nos dignamos tomar conhecimento com três anos de atraso, ficando esse tempo todo à espera de que Deus, sendo comprovadamente brasileiro, talvez tomasse a providência de nos brindar com chuvas de gasolina azul-celeste, teve o mérito de nos obrigar a reformular a política que vinha sendo seguida na área dos transportes urbanos.

Para que se chegue a bons resultados nesta reformulação, estabelecendo-se o primado do transporte coletivo sobre o individual, temos de partir da premissa de que o usuário não é gado vacum. Observada essa diferenciação fundamental, teremos preparado a área para o equacionamento do problema em termos humanos.

Levo, assim, bastante fé na crise do petróleo como fator de aprimoramento do nosso sistema de transporte coletivo urbano, motivo pelo qual peço permissão para propor o título de porto-alegrense honorário ao soberano da Arábia Saudita.

Por outro lado, haveria forte motivo para que se cumpra a vontade do prefeito Vilela, quando nos aconselha a amar a cidade.

Cercear o transporte individual, sem introduzir melhorias substanciais no sistema coletivo, tornando-o compatível com a dignidade do cidadão, corresponderia a rebaixar um número ainda maior de porto-alegrenses à condição de gado vacum, com o prevalecimento de estarmos cansados de saber que este é um rebanho atambeirado, a ponto de não recorrer, sequer, ao direito elementar e líquido e certo do berro.

Uma comunidade que absorve os maus serviços que lhe são cotidianamente administrados, sem tugir nem mugir, como se estivesse sendo tratada a pão de ló, termina se acomodando a toda sorte de espoliações.

Se as medidas que vêm sendo oficialmente apregoadas em favor da recuperação do transporte coletivo forme realmente eficazes, como uma das principais metas da retardatária e impropriamente chamada política de racionalização do consumo de combustível, isto será decorrência da crise do petróleo, razão pela qual não se poderá deixar de recitar, com unção religiosa, e de preferência na nobre língua de Racine, o anexim segundo o qual à quelque chose malheur est bon.

Por estas e outras, confio em Deus que o Brasil sairá bastante melhorado da crise do petróleo. Teremos aprendido, pelo menos, que não podemos acionar o nosso desenvolvimento à base de um combustível “árabe”, nem permitir que o País, em lugar de explorar, seja explorado pelo rodoviarismo.

A observação não é minha: é de um jornalista europeu. Aludindo à hipertrofia do transporte rodoviário entre nós, disse ele que, por termos relegado a ferrovia e a navegação a plano secundaríssimo, somos um País estrangulado pelas estradas de rodagem e pelos veículos que nelas queimam gasolina, óleo e a nossa receita cambial.

Poder-se-ia acrescentar que ainda respondem, de quebra, pela maior parcela do obituário nacional, conferindo-nos o recorde mundial de acidentes.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 39/41.

Metrópoles (Carlos Reverbel)

 

Quando as cidades crescem e não se civilizam, na mesma medida, não se pode deixar de redobrar os dispositivos de vigilância, prevenção e, em última instância, os de natureza coercitiva. Se existe um exército de contraventores em Porto Alegre, inclusive os que agridem a comunidade com os canos de descarga de seus carros, não há de ser com sermões franciscanos, nem com sessões afro-brasileiras de cafuné que conseguirá contê-los.

Percorrendo os subúrbios de Londres, numa tarde domingueira, no verão de 1975, era como se eu andasse pela velha Rua da Varzinha, na década de 30: cadeiras na calçada, as pessoas lagarteavam ao sol, desfrutando de uma tranquilidade que, hoje em dia, entre nós, talvez só exista nos arredores de Anta Gorda, Muçum ou Faxinal do Soturno.

Um processo metropolitano como o nosso, que se expande e impõe na medida de sua desumanização, massacrando o homem, em lugar de preservá-lo das agressões que o cercam e atropelam, não pode deixar de ser repudiado, aos urros, mesmo que se tenha de apelar para o leão da Metro, na falta de urros mais ortodoxos e convincentes.

Para aceitar semelhante processo, de coração aberto e sorriso nos lábios, seria preciso a capacidade de sofrimento e a resignação da digníssima senhora que desempenha o papel de mãe no célebre soneto de Coelho Neto, desdobrando fibra por fibra o coração.




Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 50.

Itinerário de um livro (Carlos Reverbel)

 

Recuo nostálgico

Para ajudar minha primeira viagem a Paris, nos idos de 1947, vendi tudo quanto possuía. E lá se foram águas abaixo, entre outros pertences de baixa cotação, os livros que vinha juntando, em quartos baratos de pensão, nem sempre de boa fama.

Por causa disso, talvez, terminei formando volumosa biblioteca, muito depois. Aliás, não deve tardar o momento em que, por motivo de falta de espaço, deverei ser expulso de casa pela biblioteca. O latifúndio que não consegui, em léguas de sesmaria, tomou a feição de estantes subindo pelas paredes.

Mas o caso é que, naquela ocasião, para poder fazer a viagem, eu venderia até a alma (ou um rim, se já existissem transplantes).

O livro que me proporcionou maior faturamento (nem poderia ser por menos) foi uma raridade bibliográfica: Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre, par la Banda Oriental, les Mission d'Uruguay et la Province de Rio Grande do Sul - Arsène Isabelle – Le Havre – 1835.

Tratava-se de um exemplar que, além de ser raridade, tinha lá sua história, pois pertencera ao Dr. Fernando Abott, um médico de São Gabriel que fizera renome quase lendário na profissão e na política, tendo, inclusive, exercido a presidência do Estado em época convulsionada e difícil – a da Revolução Federalista de 93. Ainda há poucos anos circulavam em São Gabriel, entre a gente do povo, “receitas do Dr. Fernando”, constituindo uma espécie de “medicina mágica”, cujas maravilhas curativas atravessaram várias gerações, passando de boca em boca e tornando-se folclóricas. E houve, na velha cidade, durante anos, a proliferação do nome Fernando, em homenagem ao célebre esculápio e chefe político.

O livro me fora presenteado por um neto do primitivo e famoso dono: meu velho e querido amigo Fernando Coelho de Souza. Era pra ser guardado em redoma, não tanto pela raridade, como pelo valor estimativo. Mas eu me encontrava completamente possuído pela ideia da viagem, sendo capaz de cometer quaisquer ações para realizá-la no peito e na coragem.

No momento em que me desfiz do livro, passando-o sem remorso às mãos do comprador, sem dúvida bem melhores que as minhas para conservá-lo, o novo dono da raríssima obra entregou-me um envelope, com a condição de somente abri-lo depois de sua saída. Foi o que fiz, no meu natural senso da obediência, encontrando, logo depois, dentro do providencial envelope, o triplo da quantia que eu pedira pelo livro.

A seguir, devo acrescentar que vi muita água rolar por baixo das pontes do Sena, inclusive sous le pont Mirabeau, como no verso de Apolinaire. E assim vivi uns dois anos de Paris, numa época cheia das fomes e outras dificuldades do imediato após-guerra, mas enormemente compensadora pela ausência quase completa de turistas. Não tendo turistas para dar coices, os parisienses trocavam coices entre si, com eficiência e desenvoltura.

Foram anos brabos e de ajuste de contas entre os naturais do país. E havia alguns que mascaravam de antiamericanismo a sua falta de vergonha. Como um sujeito que trabalhava no mercado paralelo de dinheiro e sempre me dizia, depois de fazer o escorchante câmbio:

Isto aqui era melhor no tempo dos alemães”.

Um belo dia, já de volta aos pagos, recebo inesperada visita do generoso comprador do raro exemplar que me pertencera. Vieram os cafezinhos. Veio a estirada charla amiga.

Lá pelas tantas, em meio à conversa, o visitante abriu um parêntese, limitando-se a dizer, com a habitual sobriedade e sua inconfundível finura natural:

Olha aqui, já li teu livro. E tendo tomado as notas que me interessavam, vim devolvê-lo”.

O livro estava embalado em papel de presente, trazendo, entre a capa e a página de rosto, o cartão de visita de Moysés Vellinho.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 75/77.

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...