O
nosso regionalismo é fértil em conteurs e
paizagistas. Seus reflectores fócam os assumptos, parcel’.adamente, por zonas,
em episodios avulsos e fragmentarios. Ha situações e typos que se repetem, com frequencia.
Pouco differem, de um livro a outro livro, os scenarios, a mise-en-scéne. E’ indisfarçavel, por isso mesmo, a monotonia que,
ás vezes, de muitas de suas melhores paginas se evola.
Esse
perpassar de identicos truques, em torno de personagens que quasi nada variam,
dá, afinal, a impressão falsa de que o Rio Grande é pobre de aspectos physicos
e moraes. Falta-nos, em verdade, um romance, uma novella, pelo menos, que
apanhe, por exemplo, no seu raio de acção, mediante opportuna série de paineis retrospectivos,
as varias faces da evolução da nossa vida rural, a physionomia typica do periodo
de transição que atravessamos, iniciado logo após a revolução de 1893.
A
fixação esthetica, - indirecta, portanto, - deste instante historico especial,
de tão radicaes transformações, mostrar-nos-ia não gaúchos mais ou menos
phantasmaticos e sim homens vivos, criaturas que a civilização mechanica tentou
eliminar ou pôr á margem, sem o conseguir; porque o gaúcho se converteu, graças
a um phenomeno surprehendente de plasticidade mental, em instrumento dynamico
de progresso.
Certos
autores, daqui e do Prata, descrevem o gaúcho á semelhança de materia inorganica,
inassimilavel. E’ um erro, oriundo da contemplação excessiva do passado. Contra
isso impõe-se um movimento de reacção. Há os inadaptaveis, certamente, mas
esses são diminuta minoria.
O
que o homem dos nossos campos, tanto o estancieiro quanto o mais humilde
trabalhador rural, offerece de impressionante a qualquer observador meticuloso,
é justamente a sua capacidade de renovação, a presteza da sua activa e intelligente
adaptação ás exigencias novas da vida.
Poucas
industrias já soffreram, aqui, tão largas modificações como a pastoril. Sob a suggestão
do exemplo de dois ou tres extrangeiros corajosos, fizeram-se os gaúchos, elles
proprios, sem relutancia, orgãos propulsores da implantação de todos os
methodos modernos de criação e pastoreio.
Affeitos
á evocação do gaúcho anterior á estrada de ferro, ao Ford e á introducção do
Hereford e do Durban, para a cruza dos rebanhos creoulos, não comprehendemos,
por via de regra, a mutação. E só vislumbramos destroços, precisamente onde se
forjam e articulam os materiaes do nosso rejuvenescimento.
O
homem que alguns dos nossos regionalistas surprehendem, decepcionados, no
interior, a guiar, com pericia, um automovel, a marcar o gado com o auxilio do
bréte, a estabular reproductores de puro sangue, a expedir novilhos, tranquillamente,
em vagões ferro-viarios, para as xarqueadas e os frigorificos, está por certo bem
longe do typo lendario que a imaginação delles, imaginação poetica e, em geral,
livresca, idealizava.
Póde
não ser o seu gaúcho, mas é o gaúcho, com as linhas psychologicas raciaes
intactas.
Não
é o xiripá, não é a indumentaria o essencial á sua caracterização, como o não
é, tampouco, o modo exterior de se conduzir na vida, que perdeu em theatralidade
o que ganhou em efficiencia.
Vestido
á européa, a pé ou a cavallo; derrubando touros ou extendendo aramados; ouvindo
as operas do Colon, de Buenos Aires, por intermedio do radio, em vez da
ancestral cordiona, o que dá physionomia historica ao gaúcho, o seu vinco de
differenciação, em summa, é a franqueza, nas attitudes e nas palavras; o
narcisismo; a bravura quichotesca; a instantaneidade impulsiva das resoluções;
a vehemente vocação cívica; a altaneria; o bom humor, mesclado a irreprimiveis explosões
sentimentaes e fatalistas.
Taes
virtudes e defeitos constituem o fundo permanente, immutavel, do seu caracter.
Por isso, não variam com as condições materiaes, ou moraes, de vida. Exprimem
uma postura ideal e typica de alma. São os traços distinctivos da estirpe.
Esses
defeitos e virtudes identificam, soldam, espiritualmente atraves do tempo, o
gaúcho de hontem ao de hoje.
Acóde-me,
a proposito, á lembrança, o caso de Frederico de Ahumada, o Zogoibi, do admiravel
romance do sr. Enrique Larreta. E’ um gaúcho europeizado, quasi deslocado no pago, depois das suas viagens e
aventuras. No entanto, por debaixo daquelle verniz parisiense, o que lateja são
as qualidades positivas e negativas da raça, o instincto especifico da grei.
Confrontemol-o,
por exemplo, com o D. Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes. Fica este, por
certo, muito mais proximo, apparentemente, das nossas fontes originarias. E’ um
ser quasi primitivo, na sua vivacidade elementar, agitando-se num ambiente
agreste.
Será
um neto de Martin Fierro? não o será, antes, de Viscacha?
Talvez
de ambos...
Examinem-se-lhe
detidamente, entretanto, os actos e as intenções. Ver-se-á, no intimo, que é um
typo convencional. Nada obstante as exterioridades circumstanciaes e as
preocupações symbolicas, é bem menos expressivo do Pampa do que o heróe
semi-desenraizado de Zogoibi.
Não
é um gaúcho, rigorosamente, mas um moujik.
Acompanhae-o
nas suas sentenças e attitudes, no mysterio das suas origens e propositos. No
fundo, é mystico e melancholico. E’ uma personagem de Gorki, extraviada no
Pampa.
Vêde!
E’ Konovalov a cavallo...
¹
Grafia original.
Fonte:
O Rio Grande do Sul em Revista, p. 115. OF. GRAF. DA LIVRARIA DO GLOBO. Porto
Alegre: 1930.