domingo, 25 de junho de 2017

PRZEWODOWSKI (Carlos Reverbel)







Os que tiveram o privilégio de conviver com Luís Palmeiro ficaram sabendo que a palestra informal, em roda de amigos, pode exercer o fascínio de verdadeira obra de arte.



O saudoso advogado, que tanto se distinguiu no ministério público e no magistério superior, era capaz de discorrer com raro brilho sobre qualquer assunto, mas a sua palavra, matizada de ironia e ternura, tornava-se ainda mais colorida e pitoresca quando reproduzia histórias de Itaqui, sua terra natal.



Se essas histórias tivessem sido gravadas e passadas para o papel, nenhum município rio-grandense teria o relevo de Itaqui, em termos de transposição estilizada do folclore local.



Luís Palmeiro criava as suas obras de arte a partir de episódios que realmente aconteceram e terminaram se incorporando às tradições do lugar, como o famoso bombardeio de Alvear por Przewodowski.



Foi no tempo da Flotilha do Alto Uruguai, criada depois da Guerra do Paraguai e cujo comando, sediado em Itaqui, dispunha de diversos navios de esquadra, com 12 canhões de bordo e um efetivo de numerosas praças e 72 oficiais, entre eles Saldanha da Gama, Alexandrino de Alencar e o próprio Przewodowski.



Em 1874, estando no comando da Flotilha do Alto Uruguai, o capitão-tenente Estanislau Przewodowski mandou bombardear a localidade argentina de Alvear, situada do outro lado do rio. Os tiros de canhão, desfechados por dois monitores – o “Rio Grande” e o “Alagoas” – eram repetidos de hora em hora, com a alça de mira em elevação, de modo a não causar vítimas nem fazer danos à população fronteira, visando apenas, intimidar as suas autoridades.



Mas nem por isto deixaram de configurar grave atentado à soberania do país vizinho, criando inquietante problema diplomático entre Brasil e Argentina. Embora absolvido no Conselho de Guerra a que respondeu, por ter mandado bombardear uma localidade estrangeira, por conta própria, Przewodowski desgostou-se e resolveu pedir reforma da Marinha Nacional. Ganhou, entretanto, grande popularidade, tornando-se famoso e sendo festejado pelas ruas como herói, não apenas em Itaqui, mas até no Rio de Janeiro, onde fora julgado.



O incidente foi causado pela agressão sofrida pelo oficial médico da Flotilha do Alto Uruguai, quando se encontrava em Alvear. Como criara fama de excelente profissional, esse médico, de nome Panfilio Freire de Carvalho, era muito procurado, sendo chamado para atender clientes inclusive naquela localidade Argentina.



A fim de afastar o concorrente, médicos argentinos tramaram o atentado, encarregando dois sicários italianos, acobertados pelas autoridades de Alvear, de executarem o “serviço”. Przewodowski exigiu que os criminosos lhe fossem entregues. Não sendo atendido dentro do prazo que estabelecera, mandou abrir fogo contra a cidade estrangeira.



O capitão-tenente Estanislau Przewodowski, quando chegou a Itaqui, para comandar a Flotilha do Alto Uruguai, tinha apenas 31 anos, mas trazia uma folha de serviços de excepcional relevância, sobretudo pela sua destacada atuação na Guerra do Paraguai, tendo recebido todas as condecorações conferidas durante a campanha, em número de sete ordens honoríficas. Integrado na esquadra de Tamandaré, foi citado por atos de bravura em Humaitá e Curuzu, tendo atuado no comando de uma canhoneira. Entretanto, ficou famoso, sendo lembrado até hoje, não pelos seus invulgares feitos navais, mas pela sua atividade intempestiva, mandando bombardear o então povoado de Alvear.



O capitão-tenente Estanislau Przewodowski era natural da Bahia, sendo filho do polonês André Przewodowski e da brasileira Romalina Augusta Dantas. O seu pai vivia exilado em Londres (por causa da anexação da Polônia pela Rússia), quando foi contratado pelo governo brasileiro, tendo realizado, entre outras obras, o traçado da primeira ferrovia baiana e o projeto do porto de Salvador.



Depois de deixar a Marinha de Guerra, Przewodowski formou-se em engenharia no Rio de Janeiro, passando a exercer a profissão na Bahia, como diretor de obras de colonização de terras e de uma companhia de navegação fluvial. Nessa função, encarregou-se do transporte de tropas do Exército na campanha de Canudos. E quando esteve no Rio Grande, sediado em Itaqui, houve a rebelião do Ferrabrás, tendo a morte do coronel Gesuino Sampaio, pelos “muckers”, coincidindo com o bombardeio de Alvear. Também publicou um trabalho sobre a barra de Rio Grande.



Antes de terminar o curso de engenharia, Przewodowski esteve em Jaguarão, para casar com dona Felicidade Perpétua Pereira de Melo, filha de um oficial do Exército. Conheceu-a e ficaram noivos quando ele e o futuro sogro serviam em Itaqui. Aliás, tanto ele como diversos outros oficiais da Flotilha do Alto Uruguai marcaram época na sociedade de Itaqui. E Przewodowski ainda se distinguiu por ser muito afeiçoado ao teatro, levando seu interesse por essa arte ao ponto de ter projetado e iniciado um teatro em Itaqui, concluído quando ele não mais ali se encontrava, mas que recebeu seu nome ao ser inaugurado. A sociedade local não esquecera o baiano, de origem polonesa, que fizera a maior “gauchada” de que se tem notícia em Itaqui. E o Teatro Przewodowski se encarregou de manter viva a sua memória, naquela cidade e no Rio Grande do Sul.

(Novembro, 1978)

Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1980, p. 11/13

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Entrevista: Domenico de Masi – Jornal Zero Hora, 15/10/2000


Trabalha-se muito, descansa-se pouco

Diminuir as horas de expediente no escritório e acrescentar diversão e estudo ao dia a dia do trabalho. Para o sociólogo italiano, as empresas que não prestarem atenção nisso virarão desertos de ideias.
A fala carismática e inflamada do italiano Domenico de Masi, professor da Universidade de Roma, consultor de empresas e autor de livros como O Futuro do Trabalho e Ócio Criativo, dificilmente deixa seus interlocutores passarem incólumes a suas ideias.
As reações, no entanto, podem divergir: pânico dos workaholics e êxtase dos que sonham com mais tempo para o lazer e a criatividade, o sociólogo do trabalho vem conquistando especialmente os brasileiros com suas ideias nada convencionais.
- O sistema de trabalho hoje é completamente antiquado, e por isso não se cria nada dentro das organizações. As ideias acabam sendo compradas de terceiros – afirma o consultor.
Nesta entrevista, De Masi falou sobre o impacto da tecnologia e da Internet na organização do trabalho, sobre o que é importante na formação de um profissional brilhante e o que as empresas devem fazer para mantê-lo.


ZH Como o senhor resumiria o cenário do mercado de trabalho hoje?
Domenico de Masi – Tenho um amigo que trabalha como executivo num banco e uma outra amiga que é grande atriz do teatro italiano. Sempre que os dois se encontravam em festas na minha casa ou em férias no campo, ela me dizia: “Esse seu amigo parece sempre tão triste. A expressão dele é tristíssima!” Na verdade, ele era a síntese do burocrata. Trabalhava tanto que quando estava fora do seu esquema habitual se sentia perdido. Em resumo, os profissionais hoje descansam pouco e trabalham muito. Até as horas de descanso giram em função do trabalho. Isso gera uma insatisfação e infelicidade enorme, um cansaço que mina cada vez mais a capacidade de ter boas ideias.

ZH O que há de errado nas empresas de hoje?
De Masi – Se você observar as empresas, vai ver que o marketing e os processos de produção evoluíram, e a tecnologia avançou incrivelmente. Enquanto isso, as políticas de recursos humanos mudaram tão pouco que parecem as mesmas de cem anos atrás. Os processos de produção são outros e a tecnologia permite milhões de novas possibilidades e facilidades, mas a organização do trabalho ainda é aquela criada pelas necessidades de uma era anterior à nossa.

ZH O senhor crê que uma mudança de hábitos esteja a caminho?
De Masi – A Nova Economia e a Internet estão imprimindo uma necessidade incrível de velocidade às mudanças. É uma revolução que vai num ritmo cada vez mais veloz. Se pensarmos que as pessoas levaram 700 anos andando em carruagens até inventarem o automóvel, e em 70 anos os carros já andavam com mais do que o dobro da velocidade inicial, podemos ter uma ideia de como o ritmo é e vai se tornando cada vez maior.

ZH Como uma empresa pode tentar fugir do perigo de não inovar?
De Masi – As empresas que estimulam seus funcionários a ficar no escritório 10, 12 horas por dia estão fadadas a transformar todos os seus colaboradores em burocratas, exaustos e incapazes de enxergar além do óbvio e de ter ideias brilhantes sobre o negócio em que atuam. É uma burrice achar que o trabalho está limitado ao expediente no escritório. O trabalho precisa ser complementado com pelo menos dois elementos fundamentais: os processos lúdicos, que eu resumo como jogos, e o estudo. Sem isso, o trabalho está condenado a se confinar no escritório e se transformar numa coisa puramente neurótica que aos poucos esgota qualquer possibilidade de prazer. Sem esse prazer, não há criatividade possível e, com a velocidade que as novidades da tecnologia vêm criando, os que não perceberem isso ficarão para trás.

ZH O que o senhor considera importante na formação de um profissional?
De Masi – Quando falo em estudo não estou falando da coleção de títulos, de ficar apenas se debruçando sobre cursos de especialização na área de formação ou lendo livros sobre esse assunto. Isso é importante, mas falo também de ler coisas diferentes, assistir a filmes, conversas com as pessoas, se dar o direito de contemplar coisas belas. Não digo só de uma bela obra de arte, mas encontrar beleza numa cena cotidiana, conseguir encontrar serenidade para simplesmente parar e olhar o movimento das pessoas, da natureza. Isso é uma coisa belíssima. Estas são as coisas que desenvolvem os sentidos, a sensibilidade e dão asas à criatividade.

ZH A redução da jornada de trabalho ainda é uma enorme polêmica no mundo todo. O senhor acha mesmo que se tornará realidade em curto prazo?
De Masi – Hoje temos computador, Internet, milhões de facilidades que deveriam diminuir o tempo de trabalho e não aumentá-lo. Esse tempo que sobra deve ser aproveitado em atividades lúdicas e diversão. Assim, as pessoas têm mais prazer e se produzem as grandes ideias. Por que exigir um expediente de oito horas no mínimo, com horário de entrada e saída, em vez de estipular tarefas e prazos e deixar que os funcionários decidam como organizar seu tempo? Além de ser menos neurótico, isso economizaria milhões em gastos com luz, equipamentos e manutenção dos escritórios.

ZH Nem todas as empresas pensam dessa forma.
De Masi – A maioria das empresas não utiliza de forma inteligente o que a tecnologia oferece. Acham que o lucrativo é produzir cada vez mais com menos gente trabalhando. Isso cria profissionais frustrados, neuróticos, estressados e que têm uma relação de dependência e ódio com o trabalho. Burocratas, em resumo. E esses são os piores inimigos da criatividade. Não é ficando 12 horas num cubículo que alguém vai pensar em algo brilhante. As ideias se produzem em qualquer lugar, menos nos escritórios.

ZH As organizações saberão como aproveitar funcionários mais criativos?
De Masi – Não basta às empresas despertar em seus funcionários a criação de ideias. A maioria das pessoas tem uma grande capacidade de pensar coisas fantásticas, mas uma enorme dificuldade para colocá-las em prática (os fantasiosos) ou tem um enorme senso prático e grande força realizadora, mas nem sempre têm ideias brilhantes (os concretos). A empresa que conseguir unir esses dois tipos ou que encontrar as raras pessoas que conseguem unir as duas potencialidades verá coisas incríveis acontecerem.

ZH Por onde se deve começar?
De Masi – Os departamentos de recursos humanos deveriam começar a pensar no que oferecer aos funcionários para que eles sejam mais felizes. Só assim vão conseguir ter funcionários que produzem ideias realmente eficientes. Hoje, as pessoas dedicam 90% do tempo ao trabalho, e é preciso ter mais alegria e menos estresse. Para isso, o RH deveria pensar em oferecer luxo aos seus funcionários. O que é um luxo? É uma coisa que é rara. Quem consegue organizar a vida de modo a ter mais tempo, tem mais luxo do que os que não conseguem, por exemplo. A empresa deve se preocupar não só com isso, mas, por exemplo, com a beleza e o espaço onde as pessoas trabalham. Os escritórios deviam ser menos impessoais, mais agradáveis, o espaço é muito importante no processo de criação. Outros luxos são a maior autonomia, a segurança e a alegria. O sucesso das organizações dependerá de sua capacidade de oferecer essas coisas aos seus colaboradores.
Fonte: Jornal Zero Hora, 15/10/2000

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Ribeiro Louco - Causo (Antônio Augusto Fagundes)


Disco voador, lá no Alegrete, dá nojo... E eu “tou” me lembrando, nesta hora, de um rapaz que serviu comigo no glorioso Sexto Regimento de Cavalaria. Nós “chamava” de Ribeiro Louco. Já no apelido, o índio não é de laçar com sovéu curto. Nunca se apertava. É capataz dum daqueles herdeiros do falecido Gregoriano Correia da Costa, homem que deixou história lá no Alegrete.

Um dia, pensei que ia apertar o Ribeiro. Os russos tinham largado aquele primeiro Sputnik, e os jornais diziam que o satélite fazia: bip, bip, bip, não sei o quê...

Fui visitar o Ribeiro (Nós “tinha” servido em 1953).

- Ribeiro, tu já ouviste falar que os russos largaram uma porcaria aí pelo espaço? Não apareceu aqui?

- Não. Quer dizer que não.

Mas ele sentiu que esbocei um sorrizinho.

- Não, quer dizer que não. Continuou:

- Mas, tem uma coisa!

Digo: “Aí vem o Ribeiro...”

- Uma noite dessas, eu olhei pro céu. Passou uma bola de fogo, fazia bi, bi, bi... (Ele nem sabia que o barulho era bip, mas “ouviu de orelha” e já aproveitou pra me...). Fazia bi, bi, bi, e eu estou que era o tal de “satel”.

Este era o Ribeiro Louco, cujo sonho na vida era falar com um tripulante de disco voador. E realizou este sonho...

Cousa de umas três, quatro semanas, ele estava sestiando. A patroa “veia” tinha ido visitar uns parentes. Andava um, meio atentado lá no Alegrete e ele ficou meio sozinho no rancho.

O Ribeiro mora cerca de uns trinta, trinta e cinco quilômetros do Alegrete, lá no rumo dos Pinheiros, e ouviu um zunido. (Isso, ele me contou e jurou que queria cair morto no meio de quatro “vela”, que era verdade). Uma luz que clareou tudo em derredor.

“É o tal disco voador. Hoje converso com essa gente”, pensou.

Saiu pra fora e tinha, como é que vamos dizer, capa de circo de borlantim, a tal coisa, mas só a parte de cima. E tudo clareando e branquinho que parecia um queijo recém-feito.

Aquilo veio descendo, veio descendo.

O Ribeiro olhou pra cima, no meio das nuvens. Parecia um charutão bem grande. Bem escuro. Cheio de “janelinha” iluminada.

Olhou pro disco e o disco veio. Parou bem no potreiro. Espantou uma vaca mansa que tinha por ali e um petiço aguateiro.

Desce uma escadinha pro chão. Aquela escadinha sai do disco e vem direto ao Ribeiro Louco. Um homenzinho verdinho, mais ou menos dessa alturinha (com mais escamas que traíra das graúdas) e duas guampinhas que não paravam de se mexer pra tudo que era lado.

- É a cousa mais engraçada, me dizia o Ribeiro Louco. Não falei com ele, e ele não falou comigo. A gente se entendia só pelo “célebro”!

O gaúcho da minha zona é muito tímido, mas é muito metido. Ele mete o cavalo, mesmo! Já sai dizendo o que não é da conta dele.

“Ainda que mal pergunte” (pensou o Ribeiro e transmitiu a pergunta ao verdinho), “não é da minha conta, o amigo vem de onde?”

“Venho de um planeta não sei o quê, lá perdido não sei onde, e este meu disco, minha nave pequena, saiu daquela nave grande que está lá em cima do Alegrete. Parada.”

HANNNNNNNN... (O Ribeiro não entendeu coisíssima nenhuma). HANNNNN... Ainda que mal pergunte, que não é da minha conta, o amigo tem essas guampinhas como pra o quê?”

Aí o verdinho explicou: “Isso que o senhor chama de guampinhas são minhas antenas. Uma, “tá” ligada aqui na nave-mãe que “tá” sobrevoando o Alegrete. A outra, “tá” ligada lá no meu planeta XYZ, de origem, à outra antena. Sempre, as duas, transmitindo notícias. Eu, assim, sou sempre o primeiro a saber.”

Aí, parou e olhou o Ribeiro Louco: “Por quê? Vocês aqui no Alegrete não tem dessas guampinhas?”

“Não, algum tem, mas é sempre o último a saber...”


Fonte: Rodada de Causos. Cadernos Gaúchos. Equipe Técnica do IGTF – Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Porto Alegre: Evangraf, 1989, p. 65/67.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O Amado (Adroaldo Furtado Fabrício)




O nome do naturalista René Bonpland é mais conhecido sobretudo em ligação com o de Alexander von Humboldt, de quem foi companheiro em suas andanças, pesquisas e aventuras pelo Brasil-colônia, em torno de 1800. Viajavam e trabalhavam juntos, inclusive, quando foram presos por uma guarnição militar portuguesa no coração da Amazônia e tiveram apreendido todo o seu equipamento, permanecendo sob custódia por vários meses, até que se convencessem os lusos da natureza inofensiva das atividades a que se dedicava a dupla. Não é de se estranhar, aliás, que levantassem as piores suspeitas aqueles dois estrangeiros malucos, a vagar pelos confins da floresta virgem com sua aparelhagem esquisita, examinando bichos e plantas.

Mas parece que René Bonpland não era seu verdadeiro nome. Chamava-se realmente Aimé Jacques Alexandre Goujand, nascido em La Rochele em 1773. Depois de sua acidentada parceria da juventude com Humboldt, voltou à França, onde exerceu funções públicas de certa importância (consta que chegou a ser Intendente dos Domínios da Imperatriz Josefina). Mas sua vocação andeja revelou-se mais forte: ele retornou ao Brasil na década de 1820, iniciando aqui seu talvez mais longo período de relativo sedentarismo, que se prolongou até a sua morte, em 1842. Veio acompanhado de quatro jovens, das famílias Brandon (depois e aqui Brandão), Jacques e Balbé, cujas numerosas descendências são bem conhecidas no Estado e particularmente na região missioneira.
O que tem isso a ver com Bossoroca? Pois foi à margem do rio Piratinim, perto da desembocadura do Lajeado Godói – portanto, em terras hoje pertencentes a esse Município – que o andarengo incorrigível finalmente deitou raízes, ou pelo menos reduziu o raio de suas incursões. Na região, ficou conhecido como Amado Bonpland (o que parece confirmar o prenome francês Aimé), estabeleceu excelentes relações com a população local, praticou caritativamente a medicina e ganhou a irrestrita simpatia de todos, ricos e pobres. Segundo a tradição oral colhida e perpetuada por Monsenhor Estanislau Wolski em sua Polianteia Missioneira, Bonpland manteve essa residência até cerca de 1835, quando se transferiu para uma chácara nos arredores da cidade de São Borja. Aí terminou seus dias em 1842.

Durante todos esses anos, mais de vinte, mesmo abstendo-se de viagens mais longas, nunca deixou de embrenhar-se frequentemente pelas matas da região, movido pela compulsão da pesquisa e do estudo de campo. Permanecia dias, semanas ou meses acampado, só ou na companhia de poucos companheiros, identificando e comparando espécies animais e vegetais. Nunca mais voltou à sua Europa natal, e seus restos mortais repousam num cemitério de Libres, Argentina, para onde seu corpo foi conduzido embalsamado, por razões desconhecidas.

Fonte: Fabrício, Adroaldo Furtado. Causos da Bossoroca e de outras querências. Porto Alegre: AGE, 1999, p. 120/121

sábado, 17 de junho de 2017

Víveres (Adroaldo Furtado Fabrício)


Leoveral de Souza Oliveira (pai do Presidente do IRGA, ex-Deputado e ex-Secretário de Agricultura Carlos Cardinal de Oliveira, na vida pública mais conhecido pelo sobrenome materno) era homem de muitos negócios e atividades. Fazendeiro abonado, também se empenhava intensamente no comércio e um tanto na política, além de atender a compromissos sociais e comunitários diversos. À sua fazenda, então ainda pequena, embora representasse parte importante de seu patrimônio, não podia dedicar pessoalmente muito tempo; sequer podia visitá-la com frequência, em razão dessa multiplicidade de afazeres.

Desviando-se nesse particular dos costumes espartanos que eram de regra entre os homens do campo na sua época, tinha gostos e hábitos exigentes, talvez até
um tanto refinados, sobretudo no que se refere à mesa. Apreciava boa comida e bebidas finas. Mesmo na casa da estância, que pouco frequentava, costumava manter razoáveis estoques de conservas importadas, acepipes finos e vinhos de boa cepa e safra.

Tinha, em relação a peães, capatazes e caseiros, as dificuldades que todas as pessoas do ramo conhecem, agravadas, no seu caso, pela escassa presença física na fazenda. Estava sempre a procurar alguém que o pudesse deixar razoavelmente tranquilo sobre o andamento dos assuntos de seu estabelecimento rural. Uma de suas tentativas foi o Praxedes, homem tido como confiável e bem-mandado, embora não muito afeito ao trabalho e meio chegado ao trago.

Ao instalá-lo na casa, deixou-o bem provido de gêneros para o seu consumo, autorizado, de resto, como era uso de então, a abater para consumo próprio as galinhas e capões que fossem necessários. Recomendou-lhe, mais, especial vigilância sobre a despensa nobre, onde eram guardados os comeres e beberes do patrão e que, na ausência deste, não deveria ser tocada em circunstância alguma.

Passadas umas semanas, apareceu-lhe na casa da vila o Praxedes, a queixar-se de que lhe faltavam víveres. Assaltado por um mau pressentimento, seu Leoveral começou a interrogá-lo, inteirando-se aos poucos da extensão do desastre. Relutantemente, o Praxedes foi contando a verdade toda. Consumira (certamente com alguma “ajuda externa”, porque sozinho não poderia) todas as provisões que lhe haviam sido deixadas; alegando necessidade, invadira a sagrada despensa patronal e começara a comer também o que lá encontrara.

- Os presuntos, Praxedes? As copas e salames?

- Pois comi, seu Leoveral...

- E os queijos? O bacalhau, os peixes?

- Comi, comi... O senhor vê, a necessidade...

- E os enlatados? As compotas? As passas?

- Tive que comer... Comi, comi tudo...

- E o vinho, Praxedes? O vinho?

- O vinho? O vinho... o vinho... eu fiz sagu!


Fonte: Fabrício, Adroaldo Furtado. Causos da Bossoroca e de outras querências. Porto Alegre: AGE, 1999, p.141/142.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

O Autor Luiz Sérgio Metz (Sérgio Jacaré)



Nasci em Santo Ângelo, no inverno de 1952. Meu grande sonho era permanecer analfabeto, se não fosse A mãe, do Górki, lá pelos quinze anos, me meter no coração uma certa senda proletária, igual a de meu pai.

Decorre daí que iniciei Filosofia, na Universidade Federal de Santa Maria. Por
um erro de computador e matrícula, acabei formado em Jornalismo.

Um grande equívoco de Martins Livreiro fez com que publicasse o livro de contos O primeiro e o segundo homem.

Tenho participado de várias lutas como já o fiz no movimento estudantil e político em Santa Maria e Santo Ângelo, todas em defesa da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, todas visando o fim da exploração do homem pelo homem.

Gosto de poesia e tenho escrito alguns versos, alguns versos que foram musicados.

Gostaria de ser enquadrado na escola ou na corrente ou na vertente dos que escrevem versos cubo-futurista-nativista.

Tenho uma certeza na vida: viver é para os desiludidos. Viver é ser utópico.

Hoje trabalho, como assessor da diretoria, no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre.  

Fonte: Revista Tarca – ANO III – Nº 15 – Julho 1986 – p. 07


Aureliano de Figueiredo Pinto (Luiz Sérgio Metz)


Era um homem culto, Aureliano, este menino que viajava parnasiano. Das visões das janelas do trem lembraria a fixação dos imigrantes italianos, povo que amou muito a ponto de aprender sua língua. O mesmo fez com os franceses. O mesmo com os ingleses. O mesmo com seus patrícios anexados, portenhos e
orientais. Dominava, como se houvesse nascido falando, a língua de Quixote e de dom Segundo Sombra, que conhecia como ninguém que nesta hora tivesse dez anos e estivesse pronto a fazer os primeiros voos parnasianos...


Imagino que Aureliano pagava o preço de sua dimensão à poesia. Ele sabia da grandiosidade que ela encerra e por isso o fúlgido e o imenso respeito a ela e aos poetas. Talvez seja o motivo de sua ira à notoriedade, que o levou a não publicar nada ou publicar tardiamente. Por certo comparava-se com seus atores preferidos. Talvez sofresse muito com isso. Talvez. Sua sina em reescrever sempre e incansavelmente um mesmo verso, a procura da palavra ou a própria fuga dela, o domínio do linguajar rude e o momento de empregar termos gaúchos ou espanholismos levaram-no a rabiscar papeis de toda a espécie e finalidade: receitas médicas, bulas, carteiras de cigarro, papel de embrulho, livros, cadernos escolares, postais, cartas...

Aureliano não era um homem do poder (Tu bem conheces meu sereno ‘sceptismo’ a respeito dos homens públicos deste país, escreve, em agosto de 1932, em carta a Antero Marques). O poder se ofereceu a ele, em dinheiro, tempo e condições de melhorar sua vida. Principalmente dinheiro e tempo. Ele poderia ser o sub do sub do sub no fundo da última vila, que o poder provavelmente pagaria para ele escrever e abandonar a medicina. Como bardo moderno, Aureliano sabia: o poder não cega fisicamente, mas coopta os artistas, que é cegá-los através da alma. Aureliano poderia dedicar-se finalmente aos livros. Recusou as propostas. E recusou na raiz: a iniciativa dos amigos neste sentido. Que barrou e impediu...

Ele deveria ser a ponte, mal ou bem. Falava, seguidamente, em relação a seus versos: “mau mas meu”. E registrou a voz de um homem diante seu assombro: O inverno. O sol. A dor. O prazer rápido, sempre fugidio, que um campeiro leva à sua garupa, ou pelo prazer é levado. A mulher e o homem, sempre fugindo, às pressas, da morte ou dos olhares, fugindo, para um fundo de rancho no fundo do mundo pequeno. Longe dos olhares de Cachucha, a que significava o tudo sempre igual. Longe de todos e de tudo. Cruz antiga. Chuva. Fogo do diabo. Relato de enforcado. Chimarrão da madrugada. Sesteada. Triste tarde. Filosofia de peão. Unha-de-fome...

Para conseguir estas duas entrevistas com Aureliano, um problema tinha de ser superado: onde localizá-lo, em que mundo? Em que região de país sonharia, com cuia e chaleira à mão, Aureliano? A geológica coluna ou lâmina do tempo calcada nas calçadas missioneiras lhe abriria espaço para passar? O espaço confabularia com o tempo para juntos talharem Aureliano contra o céu de nuvens vermelhas, e seu passo marcaria novamente a terra dos guaranis? Em que solidão ou multidão luminar ou subsolar o poeta declamaria suas gestas ao berçário das estrelas? Em que século estaria? 


Fonte: Coleção Esses Gaúchos, Editora Tchê / Revista Tarca – ANO III – Nº 15 – Julho 1986 – p. 07

NO MÍNIMO, COERÊNCIA - ENSAIO (Jaime Vaz Brasil)






E
m uma recente entrevista, o grande escritor Mário Vargas Llosa declara interessantes passagens de sua vida literária. Entre elas, uma conversa que manteve com o chileno Pablo Neruda, através da qual Mário aprendeu que, quando um escritor de talento começa a ver sua obra e sua vida pessoal (!) atacadas, é sinal de fama.

Não foram poucas as surpresas que me abraçaram enquanto li, no jornal Zero Hora de 07.06.86, um artigo intitulado “De Coronel a Silva Rillo”. Ideologias à parte, jamais pensei em ler tantos ataques infundados e gratuitos ao poeta Luiz Coronel e sua obra.

Logo no início da matéria, o seu ilustre autor declara que a métrica usada por Coronel é altamente discutível, e que os versos da “quadrinha” são armados arbitrariamente. Como exemplo, cita o poema “Cordas de Espinho”. De saída: não se pode julgar uma obra tão extensa tomando por amostra apenas uma poesia. Seria como avaliar as condições de uma praia a partir de um ínfimo grão de areia. Eu poderia enfileirar aqui uns mil exemplos refutando o argumento descabido de que as quadras do poeta em questão são armadas com arbítrio. A grande maioria das estrofes possuem quatro versos que se completam ao longo da quadra, e não sem antes receberem a bênção do espanto e da leveza. Ninguém utiliza com tanta maestria os arredios recursos da imagem poética. Talvez existam jurados de festivais que não imaginem o que seja essa tal imagem poética. Recomendo a esses a leitura (várias vezes) do livro “BUÇAL DE PRATA” da Editora Tchê! Aos que desejarem se aprofundar no assunto, recomendo autores como F. S. Eliot, todos pertencentes e representantes do Imagismo inglês do começo do século. No Brasil temos Carlos Nejar, Armindo Trevisan, Álvaro Pacheco, Castro Chamma, Francisco Miguel de Moura, Dobal Teixeira, Herculano Moraes, Homero Homem, Laci Osório, Mário Quintana, Torquato Neto, Renata Pallotini, Walmir Ayala e por aí adiante. Estes são os nomes mais conhecidos.

Sobre a métrica, acho desnecessário tecer referências mais aprofundadas sobre o assunto. Basta evocar João Cabral de Melo Neto, grande poeta do nativismo nordestino, membro da Academia Brasileira de Letras e dizer que este mestre utiliza formulações métricas semelhantes às de Luiz Coronel. (João Cabral também emprega “quadrinhas”).

Mais adiante, o autor da matéria fala que a rima empregada pelo poeta Luiz Coronel é “meramente circunstancial”. Outro equívoco, dos grandes. Em dezenas das poesias de Coronel a quadra é unitária, com os quatro versos formando um verso maior, ao final (Estrofe). E assim sendo, como existe coesão nas estrofes, a rima  não tem outra finalidade senão a de fornecer sonoridade à peça musical:

“Quando abraça sua guitarra
e desempenha seu solo
o guitarrista parece
a mãe com o filho no colo.

Quando ele fecha os olhos
nos prodígios de seu dom
viaja pra dentro de si,
navega em ondas de som.” (...)

Não prossigo com exemplos. Seria perder muito tempo para provar algo que salta aos olhos de tão evidente.

Certamente que uma arte cerebralizada e de extremo bom gosto como a do poeta Luiz Coronel não poderia, de modo algum, ser composta por um “trovador folclórico de 1935”, como escreve o autor do desastrado artigo. Além do abismo intelectual entre Coronel e os tais trovadores, há outro talvez maior: o da cultura. Não adianta nada saber como dizer se não se sabe o quê dizer. (Se todos entendessem esta simplória constatação, não existiriam pessoas ocupando uma valiosa coluna de jornal para explanar tolices e argumentos descabidos.)

Vamos adiante. Logo em seguida, o autor pergunta qual foi o tema social abordado até hoje por Luiz Coronel em suas canções. Respondo de pronto: ninguém com tanta maestria retratou o drama do êxodo rural como Luiz Coronel. Sugiro ao distinto crítico a leitura de “Os Retirantes do Sul” (Ed. Movimento). Trata-se de um livro que reúne poema exclusivamente sociais, mostrando em diversas formas e visões as agonias migratórias, fenômeno obviamente causado pelas precárias condições socioeconômicas de nossos pequenos agricultores.

Abro aqui um necessário parênteses. Em outro artigo, datado de 24.05.86, no mesmo jornal, com uma linguagem um tanto áspera, o mesmo autor contesta o uso de instrumentos alienígenas em composições nativistas. Reclama que os compositores querem levar ao palco orquestra de câmara, baixo acústico e quinteto de cordas (entre outros). Por estranha coincidência, o insigne crítico não inclui em sua lista negra dois instrumentos: bateria e baixo elétrico. Por ocasião da última Califórnia (décima quinta) apresentou-se e venceu a linha campeira uma composição intitulada “Gaita de Botão”, onde uma bateria faz verdadeiro escarcéu acompanhada, entre outros instrumentos tradicionais, de um baixo elétrico. Quero crer que o ilustre reclamante anda com a memória um tanto debilitada, e não lembrou que é um dos autores do trabalho mencionado acima. Fecha parênteses.

É preciso, no mínimo, coerência. Coerência para criticar. Coerência para debater. Principalmente para argumentar. Recomendo, com todo o respeito, que o autor das matérias citadas pare de comprar bochinchos por aí e faça as pazes com a vida. Somos irmãos de arte. Temos inimigos comuns. Combatemos as mesmas massificações culturais. É preciso que um respeite a manifestação criadora do outro. O regionalismo arcádico que tentam impor ao canto gaúcho é lamentável. É um pássaro engaiolado, prestes à condenação. Além das grades, enfrentará um inclemente pelotão de fuzilamento cada vez que não cantar exatamente como pedem as bitolas dos tirânicos preceitos.

O Rio Grande é um mosaico, é diverso, há espaço e público para todas as correntes. Uma forma de expressão não deve e não pode sufocar a outra. Todas são imensamente válidas. Precisamos coexistir, e pacificamente.

Para concluir, penso que a crítica só é válida quando possui bases sólidas. Bases coerentes. Luiz Coronel não precisa grandes defesas. Venceu o I Concurso Nacional de Poesia de Florianópolis. Sua poesia foi elogiada por nomes como Carlos Nejar, Tom Jobim, Barbosa Lessa e Carlos Drummond de Andrade.

Aliás, é Drummond quem recomenda: “Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria como pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais o que fazer.”

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO III – Nº 15 – 1986 – p. 3/5


Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento ; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isen...