A
vida e obra de Cenair Maicá, um dos troncos da música missioneira
Escutando
Argentino Luna e Tránsito Cocomarola no toca-fitas, Cenair Maicá
percorria com seu Chevette a rodovia RS 536 no Noroeste do Estado.
Essa estrada é a que leva os viajantes da BR 285 até São Miguel
das Missões, onde o cantor e compositor viveu nos anos 1970 e
administrou o restaurante que recebia os turistas nas ruínas das
reduções jesuítico-guaranis.
Agora,
esse caminho possui um novo nome: "Rodovia Cenair Maicá".
Pois, no ano passado, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de
lei de autoria do deputado e músico Luiz Marenco, que propôs a
homenagem.
É
também na cidade de São Miguel que outro tributo está sendo
preparado. Já está em pé desde fevereiro uma estátua de Cenair
Maicá, de quatro metros de altura e quatro toneladas de concreto
armado. Devido à pandemia de Covid-19, a festa de inauguração está
adiada por tempo indeterminado, bem como a conclusão da praça no
entorno.
Essa
homenagem contou com fãs do missioneiro que realizaram uma campanha
de arrecadação e o apoio da prefeitura municipal. A escultura é
obra de Vinicius Ribeiro, autor de monumentos a outros artistas, como
Jayme Caetano Braun, Mano Lima e Noel Guarany.
Desde
que faleceu em 1989, Cenair Maicá se consagrou em uma série de
reverências nos municípios em que viveu. Na terra natal, Tucunduva,
e em Santo Ângelo, logo batizaram travessas com seu nome. A
comunidade de São Luiz Gonzaga inaugurou um palco e os
santo-angelenses instalaram um busto do cantor, confeccionado por
Tadeu Martins, e um mausoléu no cemitério onde estão seus restos
mortais.
Sua
presença também se impôs postumamente nos palcos e fonogramas.
Além do relançamento de alguns LPs em formato CD, em 2004, filhos,
irmãos e sobrinhos reuniram-se e gravaram um primeiro álbum
interpretando músicas de Cenair para marcar 15 anos de saudade. Uma
década depois, gravaram outro.
Neste
meio tempo, Patrício Maicá lançou um disco tributo ao pai,
contendo uma canção inédita, Potranca
tordilha,
guardada pelo violonista Paulo Guerra, que o acompanhou nos últimos
anos de vida em Soledade. O músico também esteve envolvido em uma
série de shows realizados na cidade em homenagem ao colega. "Cenair
era fantástico, muita simplicidade, mas muito conhecimento, um
verdadeiro mestre", recorda.
As
composições de Cenair Maicá são pedras fundamentais do repertório
missioneiro. Trinta anos depois, seguem ganhando regravações,
a exemplo das que Ângelo
Franco registrou para Balaio,
lança e taquara
e Mágoas
de posteiro.
"Todo missioneiro da minha geração já nasceu ouvindo, já
nasceu fã do Cenair Maicá", afirma.
Mas
de onde vem tanta reverência? Para compreender um pouco desta
importância, buscamos nesta reportagem recuperar arquivos e
depoimentos que ajudam a pontuar a trajetória de Cenair Maicá. Uma
das principais fontes está na biografia escrita por Valter
Portalete, que desvenda detalhes de sua vida e de sua morte, em 1989,
por complicações nos rins, após uma série de problemas que teve
desde a juventude, quando foi baleado.
Conversando
com o filho Patrício, sabemos que seu pai era uma pessoa muito
calma, embora artisticamente inquieto. "Pai estava à frente do
tempo dele", afirma. E confessa que tem muita saudade: "Eu
queria ver o pai vivo hoje, ver sobre o que estaria escrevendo".
Nos últimos anos, Patrício tem se dedicado ao legado musical de
Cenair Maicá, pois percebe que há reconhecimento. Por isso,
emociona-se ao cantarolar uma das canções: "Mas se algum dia
meu cantar for sufocado/ Por negra morte ou por capricho do destino/
Há de ficar meu canto xucro perpetuado/ No assobio de alguma boca de
menino".
Já
o historiador Tau Golin, amigo de diversas aventuras, define-o como
um baita parceiro: "Gostava de encontros, de cantar no meio das
pessoas". Ao mesmo tempo, lembra que Cenair era introspectivo,
falava só o necessário. "Lá fora, encilhava um cavalo e saía
sozinho pelo campo. Ficava contemplativo", recorda.
Além
dos depoimentos de quem conviveu com o músico, acessamos arquivos
que revelam sua própria voz. Um grande achado foi uma entrevista em
áudio do acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana.
Outro
documento significativo foi uma edição da revista Tarca,
em que Cenair conta histórias de quando foi participar de um show ao
lado de nomes como Chico Buarque e Milton Nascimento, mas a censura
acabou cancelando. Na revista, fala também das origens e do
reconhecimento da música missioneira, em uma época em que
predominavam os estilos de baile serrano e sertanejo.
Por
isso, acreditava ter criado um novo estilo, ao lado de Noel Guarany,
Pedro Ortaça, Chaloy Jara e Jayme Caetano Braun. "Acho que o
músico, além de cantar as coisas bonitas, a alegria, tem que ser um
porta-voz do povo", sustentava.
Quando
se pesquisa no Google o nome Cenair Maicá, chega-se a um conjunto de
dados básicos. Na Wikipédia, lê-se que "foi um cantor e
instrumentista brasileiro de música nativista, conhecido por cantar
a natureza e os índios". Nos resultados da busca, enumeram-se
seus três maiores sucessos: Canto
dos Livres, Baile do Sapucay e Rio
de minha infância. Para completar,
a rede digital lista datas e locais de nascimento (3 de maio de 1947,
Tucunduva) e falecimento (2 de janeiro de 1989, Porto Alegre).
Mas
logo que se começa a pesquisar a fundo o ícone da música
missioneira Cenair Maicá, por outras fontes menos informatizadas,
notam-se incongruências. Por exemplo, quando se lê o livro Terra
e cidadania na obra de Cenair Maicá
(FuRi, 2012), de Valter Portalete, pode-se corrigir um equívoco
repetido na internet a respeito de sua discografia. As fontes do
ciberespaço omitem sua primeira gravação, o compacto duplo Belezas
missioneiras, lançado em 1970 pelo selo Solar Discos. Em seu lugar,
destacam o compacto simples que gravou acompanhando Noel Guarany, no
mesmo ano, chamado Filosofia
de gaudério.
Quando
acessamos as plataformas de streaming, descobrimos que apenas Meu
canto
(1985) e Troncos
Missioneiros
(1989) estão disponíveis no Spotify e no Deezer. É preciso acessar
o YouTube para conseguir ouvir outros álbuns, mas a discografia não
está acessível de forma completa. Um dos vídeos mais acessados,
com quase 300 mil visualizações, é o de uma apresentação no
programa Oigalê Tchê, da RBS TV de Chapecó, em que canta ao lado
de Chaloy Jara e Jayme Caetano Braun, no ano de 1984.
Ainda
insistindo na pesquisa via internet, no site Letras.mus.br,
encontramos na página destinada a Cenair Maicá suas 20 mais
tocadas. Compilando os versos digitalizados, foi possível compor uma
nuvem de palavras com o aplicativo Wordart.com. Desta forma
concluímos que a palavra mais recorrente é "rio", seguida
de "terra", "milonga" e "amor". Esse
resultado oferecido pela tecnologia provavelmente não surpreende os
fãs. Afinal, ainda em vida, ficou conhecido no popular como Cantor
das Águas.
Cenair
Maicá elaborava teses: "Na verdade, o nativismo nasceu com Sepé
Tiaraju nas Missões. Foi o primeiro nativista registrado na
história. Um cara que se ergueu e morreu pela terra dele, pelas
coisas dele, isso é a base do nativismo".
Afirmações
prenhes de posicionamento como essa recheiam a edição número 5 da
revista Tarca, publicada em setembro de 1984. Nela, uma entrevista de
três páginas. Entre anúncios da CRT e JH Santos, o jornalista
Adalberto Jardim afirmava que Cenair Maicá era uma das vozes mais
respeitadas do meio artístico gaúcho. "Respeito que se impôs
pela lucidez com que Maicá tem interpretado os sentimentos do homem
simples, que não precisa se utilizar da linguagem rebuscada - e às
vezes enganosa - para exercer um agudo senso crítico",
escreveu.
Na
revista, revela-se que o cantor estava "temporariamente afastado
da atividade artística, por causa da saúde abalada". Havia
seis meses enfrentava insuficiência renal, fazendo hemodiálise e
aguardando para realizar um transplante de rim. Mas já projetava a
volta aos palcos.
Pode-se
observar na fala do músico críticas à falta de diversidade nos
festivais nativistas e aos limites do movimento tradicionalista,
embora reconheça o papel importante na preservação de raízes.
Sobram reprovações também à "alienação bárbara e
americanista" do Rock in Rio, e a Teixeirinha: "Distorceu
que o gaúcho é fanfarrão, que mata 50, que dá tiro, que é
agressivo". Por outro lado, fala de projetos, como a fundação
de um centro cultural nativista em São Miguel e a criação de uma
universidade das Missões.
O
Museu Antropológico Diretor Pestana, em Ijuí, guarda em seu acervo
uma entrevista histórica, gravada em fita em 1982. A convite de
pesquisadores, conversaram por mais de duas horas Cenair Maicá,
Chaloy Jara, Dedé Cunha, Noel Guarany e Pedro Ortaça. Neste arquivo
inédito, os músicos missioneiros comentam sobre a cena musical da
época, avaliando a conduta dos CTGs e das gravadoras. Fazem
comparações com a música folclórica argentina, que recebia
subsídios governamentais para pesquisa e difusão. Dão aula sobre a
cultura e a história das Missões, destacando o elo
latino-americano, a origem do chamamé e a presença do bandoneon.
Com
volume e firmeza na voz, Cenair intervém na conversa em diversos
momentos, inclusive discordando de Noel Guarany em alguns pontos.
Adverte que não se considera pesquisador, mas que canta o que
aprendeu na infância. Fala da "infiltração" da música
estrangeira, mais especificamente a norte-americana, que teria
despertado a adesão dos músicos da região, por questão de
sobrevivência. "Nós, os poucos idealistas que sobraram,
resolvemos até trabalhar em outros empregos, mas conservamos a bela
música que aprendemos", afirma.
Um
dos assuntos mais abordados na conversa foram os festivais, dos quais
participou muito mais como contratado para shows do que concorrendo.
"Quem pode julgar a arte é o povo mesmo, e não meia dúzia de
pessoas que se dizem intelectuais da música gaúcha", critica.
Já quando perguntado sobre a diferença entre nativismo e sertanejo,
Cenair destaca o romantismo. Observa que não há problema em cantar
o amor, mas que o sertanejo cantava o amor "para fazer
dinheiro". E com isso não concordava.
A
primeira posição que aprendeu no violão foi dó maior. Depois
aprendeu gaita. Aos 10 anos já tocava e cantava nas rádios em Santa
Rosa, em dupla com o irmão Adelque. Estes detalhes estão presentes
na entrevista concedida à equipe do museu de Ijuí. Nela, também
salienta que todos os seus oito irmãos tinham vocação musical
(após sua morte, o que mais prosperou foi Valdomiro Maicá, autor de
mais de 20 discos). Recuperando sua árvore genealógica, sabemos que
seus três filhos mais velhos, Potiguara, Patrício e Miguel Caraí,
são do casamento com Maria Geceli. Já Catira e Gabriel, que morreu
aos 21 anos de leucemia, são filhos com Issara Hactz.
Cenair
fazia questão de contar que ainda criança foi morar em Misiones, na
Argentina, pois seu pai era balseiro e se instalou na região de
fronteira. Essa experiência de vida teria marcado sua obra. Logo no
primeiro álbum, Rio
de minha infância
(1978), convidou para acompanhá-lo dois grandes músicos argentinos:
Chaloy Jara e Martín Coplas.
Seu
biógrafo Valter Portalete recupera fragmentos importantes de sua
importância no mercado musical. Em 1970, Cenair Maicá conheceu o
empresário Arlindo Gagliotto, que lhe propôs a representação das
gravadoras RDB, Solar Discos e Pampa Discos. Uma das primeiras duplas
descobertas por Cenair foram as Gauchinhas Missioneiras.
Diversificando sua fonte de renda, nesta época também foi
representante das máquinas de escrever Olivetti.
Uma
segunda edição ampliada da biografia de Cenair Maicá está sendo
preparada pelo autor para este ano. O livro inclui histórias das
parcerias com José Mendes, com quem tocou bailes, e com Noel
Guarany, com quem venceu um festival em Santo Tomé. A partir daí
passou a pesquisar e a compor sobre as Missões. Vivendo em São
Miguel, também se aproximou de Pedro Ortaça. Seu filho Patrício
relata que lá o pai "recebia os indígenas e fazia registros,
como um antropólogo". Paralelamente, Cenair Maicá apresentava
programas nas rádios Repórter de Ijuí e Sepé Tiaraju de Santo
Ângelo.
Sua
vida de radialista teria continuidade nos anos 1980, quando ingressou
na Liberdade FM em Viamão, a convite do jornalista Paulo Mendonça.
"Cenair pode ser considerado um dos compositores mais
importantes de todos os tempos no Rio Grande do Sul. Suas canções
possuem signos terrunhos e leveza universal", avalia.
Um
dos momentos marcantes de sua trajetória se deu quando a censura do
regime militar impediu que Cenair Maicá cantasse uma canção que
acabaria sendo um dos seus maiores sucessos: Canto
dos Livres. Aquela que possui os
versos: "Quisera um dia cantar com o povo/ Um canto simples de
amor e verdade/ Que não falasse em misérias nem guerras/ Nem
precisasse clamar liberdade".
Hoje,
para revelar as memórias daqueles tempos, é possível pesquisar no
Arquivo Nacional. Nele encontram-se documentos processados na Divisão
de Censura de Diversões Públicas. Ao inserir as palavras-chave
"Cenair Maicá" e "Canto dos Livres" no mecanismo
de busca digital do arquivo, localizam-se apenas letras aprovadas
pelos censores para gravação em disco e apresentação em
festivais. Incluída Canto
dos Livres.
Então, quando teria ocorrido a censura? Em entrevista à revista
Tarca,
Cenair comenta o episódio: "Fomos pra São Paulo pra fazer o
lançamento do meu novo disco e nos barraram lá. Trancaram o disco,
dois meses censurado".
Em
resenha do jornal Zero Hora de 1983, o jornalista Juarez Fonseca
relata que a canção "teve execução em rádio proibida"
e que Cenair estava aguardando a ação que a gravadora WEA havia
promovido para liberá-la. Já Tau Golin, que organizava shows dos
missioneiros naquela época em Santa Maria, recorda que Canto dos
Livres tinha que escolher onde ia cantar. "Havia dedos-duros e
pressão por vias não-oficiais, por isso Cenair foi realmente tocar
ela em público só no período de abertura, antes não",
lembra.
Cenair
Maicá foi um dos Troncos Missioneiros da música e poesia popular do
Rio Grande do Sul no século XX. Ao lado de Noel
Guarany,
Jayme
Caetano Braun
e Pedro
Ortaça
(único ainda vivo), cantou a
natureza, as lutas do homem do campo, a história e cultura da região
das Missões. O tema já foi destaque nas reportagens culturais do
Jornal
do Comércio. O caderno
Viver publicou anteriormente as biografias de Braun, Ortaça e
Guarany.
Os
Troncos Missioneiros ofereceram uma via estética alternativa na
cultura gaúcha. Iuri Daniel Barbosa, músico e mestre em Geografia
(UFRGS), comenta que o grupo buscou abrir um outro mercado que não
era nem de festival nem de baile. E obtiveram reconhecimento da
crítica, inclusive do Centro do País. Barbosa define o estilo
inaugurado por eles como Música Regional Missioneira, para
diferenciá-la da música missioneira histórica. Até hoje, Pedro
Ortaça, Jorge Guedes, entre outros, seguem nesta linha.
Barbosa
destaca que Cenair era multi-instrumentista e analisa sua performance
vocal: "Era sensível, um cantar mais calmo, menos empostação".
Também avalia os arranjos com mais elementos harmônicos, que se
aproximam de uma música mais urbana. Esta aproximação se dá
também na gravação de canções de Jerônimo
Jardim
e
Raul Ellwanger, que foi produtor do disco Caminhos
(1980).
Atualmente,
sua escola influencia novas gerações. Ângelo
Franco, por exemplo, conviveu com Cenair Maicá. Suas famílias eram
amigas e tocavam Baile
do Sapucay
em São Luiz Gonzaga. "Tenho muita afinidade com a obra do
Cenair, carinho por esta história indígena, este respeito, este
quase remorso, entre aspas, que a gente carrega pelo genocídio
indígena", revela.
Do
ponto de vista estético, Franco pegou sua influência de cantar em
espanhol, e, na questão política, de "fazer um protesto
exortativo, não impositivo". Por fim, observa que Cenair ajudou
a entender que há uma música que está presente nos dois lados do
rio Uruguai e além.
Afora
a vivência fronteiriça e com indígenas, Cenair Maicá teve
vivência campeira. Frequentou estâncias próximas a Santa Maria,
junto a Tau Golin. Com isto, o historiador acredita que o amigo
tentava resolver o conflito existencial entre o gaúcho e o indígena,
que gera uma inquietação estética entre latifúndio privatizado
oligárquico e a organização coletiva e familiar missioneira. Mesmo
gostando da lida campeira, teria sido responsável por tirar o
"absolutismo do imaginário do campo" na música gaúcha e
trazer os ribeirinhos. "Missioneiros como o Cenair nos colocaram
na América Latina, fizeram com que nós tivéssemos esta
fronteiridade", pontua.
Fonte:
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/especiais/reportagem_cultural/2021/05/791032-a-vida-e-obra-de-cenair-maica-um-dos-troncos-da-musica-missioneira.html
Publicada
em 21h23min, 06/05/2021.
Acesso
23/05/2021
Crédito
Foto: Assis Hoffmann, Capa LP Canto dos Livres, RODEIO, BR 79005,
BERRANTE, Fabricado e distribuído por EMI-ODEON, janeiro/1983