terça-feira, 10 de julho de 2018

LUIZ CARLOS BARBOSA LESSA - Entrevista (Álvaro Santi)


AS — O senhor participa, ou participou alguma vez, de festivais nativistas de música? De que maneira?

LCBL — Quando começaram as Califórnias eu não morava aqui, morava em São Paulo. Eu tive notícias. Ao voltar, em setenta e quatro, eu cheguei a participar duma Califórnia, com uma música afro-riograndense. Eu achava que pudesse abrir a temática, não ficar apenas naquela temática campeira tradicional, eu resolvi concorrer com o Bambaquererê.

— Em que ano foi isso?

— Tenho a impressão de que foi em setenta e cinco. Inclusive o pessoal que foi interpretar, que era o grupo Tempero, vieram vestidos com uma roupa de rito afro, tipo de uma bata branca, e eu sei que isso escandalizou alguns companheiros. Alguns velhos tradicionalistas que já participavam dessas Califórnias se espantaram muito que eu estava... até algum deles disse que eu estava querendo fazer música de jangadeiro, o que não era o caso, “de jangadeiro”, mas pela maneira com que se apresentaram. Foi uma tentativa minha de abrir um pouco.

Quanto a participar de festivais nativistas, eu fui convidado para participar como jurado desses festivais. O último em que eu estive foi em São Lourenço do Sul, e pouco depois eu abro a Zero Hora um dia, e está lá uma fotografia, com destaque, do entrevistado, que era um músico nativista, dizendo com todas as letras que jamais participaria de um festival se de antemão soubesse que na comissão julgadora estava o Barbosa Lessa, e dava mais um ou dois nomes. Ora, aquilo me assustou um pouco porque afinal eu estava com um espírito puramente de colaboração, não estava querendo a glória por ser um integrante do festival. Então, por este motivo eu me retirei dos festivais, até mesmo como integrante das comissões julgadoras.

Um último dado que eu tenho que dar: Eu tenho, devido a minha formação campeira, numa cidadezinha pequena — depois andei correndo esse mundo, como profissional — mas eu gosto muito do silêncio, uma oportunidade de falar como eu estou falando contigo aqui. E tu sabes melhor do que ninguém que num ambiente de festival nós jamais poderemos trocar ideias, ou num fandango, porque estão tamanhos decibéis lá que é impossível o diálogo. Esse foi um outro motivo pelo qual eu me afastei não só dos festivais, mas também dos fandangos pela impossibilidade de a gente conversar com os companheiros.

— Entre os acontecimentos que resultaram na fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, e o fenômeno dos festivais nativistas, vinte anos mais tarde, uma das diferenças é que a intenção de recolher, estudar e preservar a tradição foi substituída pela tentativa de criação artística tomando como base aquela tradição. O senhor concorda com esta afirmação? Que outras diferenças existem? Os dois momentos históricos eram semelhantes? Por quê?

— Isso aí eu, conforme te disse não tenho acompanhado, não posso analisar o que houve. Posso é dar depoimento. Quando no ginásio, aos doze anos de idade, em Pelotas, eu vinha do interior do município de Piratini, com mais três colegas conterrâneos, Germano, o Clair e o Juvenal, aliás, não era o Juvenal, era o irmão dele o Vidal, eu resolvi, dei a ideia que foi muito aprovada, de nós fundarmos um grupo pra músicas gaúchas, com um repertório de músicas gaúchas. Tinha gaiteiro, violão e tudo o mais. Formamos então o grupo “Os Minuanos”. Eu tinha doze anos de idade, em mil novecentos e quarenta e dois. “Os Minuanos” durou mais ou menos uns três meses pelo simples fato de não haver cancioneiro gaúcho. Não havia música gaúcha. Nós começamos a cantar música sertaneja, a tocar tango, mas não tínhamos vibração praquilo, e paramos totalmente.

Depois, quando Paixão e eu iniciamos, fizemos um levantamento das danças gaúchas, chegamos a selecionar e completar aquelas danças nossas, não havia em Porto Alegre nenhum estúdio e nenhum cantor de música gaúcha. Nós precisávamos gravar para divulgar, e quem é que podia sair: o Paixão era funcionário da Secretaria da Agricultura, eu era jornalista free-lancer. Free-lancer aqui ou free-lancer lá era a mesma coisa, e eu tive de me mudar para São Paulo para ver se lá eu conseguia quem cantasse, quem gravasse, porque aqui não havia estúdio nem cantor. Então, com Inezita Barroso eu consegui um apoio, e com a Editora Irmãos Vitale também, e a etiqueta Copacabana.

Vê como era difícil aqui, com tu dizes, a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho: nós não tínhamos nem cantores, nem estúdio, nem nada. A grande diferença que eu vejo nessa fase, vinte anos mais tarde é que já se começou com um público, que antes não havia público. Então, quando um cantor foi na I Califórnia e abriu o peito, ele já tinha um público propiciado pelo próprio CTG, promotor da Califórnia, e dali foi indo pra outros e outros e outros... Eu acho que a grande contribuição do MTG foi essa, essencial, que é o público. Não foi mais preciso aos cantores nativistas passar por aquele desafio, aquele sacrifício que eu próprio passei de ter que me mudar do Rio Grande do Sul, pra tentar conseguir lá fora um intérprete e um estúdio. Hoje, mais do que vinte anos passados, qualquer guri que queira se iniciar no movimento, ele já tem uma série de festivais que ele possa conhecer, mais perto do município dele, ele pode ir de ônibus... Mas o essencial que ele tem agora e que não havia no início do movimento é o público. A ponto de ter formado já um mercado autossuficiente.

O que eu acho uma das deficiências do Movimento Nativista é se voltar única e exclusivamente para o mercado interiorano do RS. Excepcionalmente chega até Lajes mas ao Uruguai não chega, São Paulo nem pensar, e Rio de Janeiro muito menos. O MTG através dos CTGs continuou se espalhando pelo Brasil afora e até por outros países, e o Nativismo ainda está muito amarrado ao mercado consumidor local.

— Mas chega [o Nativismo] muito àquelas regiões onde o MTG está espalhado, no Paraná, Mato Grosso...?

— Sim. Onde o MTG chegou, e realiza fandango, aí tem que comparecer o tocador de gaita, o cantador, a fim de animar o fandango. Se não houvesse lá os CTGs representando o MTG, seria bem mais difícil. Mas não são os cantores, exclusivamente são mais os tocadores de fandango.

— Em que medida os festivais, e a posterior apropriação pelos meios de comunicação de massa do seu produto — a canção nativista ou gauchesca — serviram para popularizar o MTG e seus ideais?

— Eu acho que a parte musical é uma parte... A música nativista, ou gauchesca ela faz parte do Movimento Tradicionalista geral. Ela se apropriou da parte musical, da parte de danças, tocando como uma parte desse movimento como um todo. Hoje, se botar uma bomba na sede do MTG, e acabar com o MTG, eu acho que não será o fato de desaparecer a sigla MTG que vai [fazer] desaparecer o Movimento Tradicionalista, ou qualquer nome, a “Tendência Tradicionalista”. E os meios de comunicação ainda... tá muito relativo. A não ser que sejam emissoras voltadas para a música nativista, ainda aqui no RS é muito difícil...

— Em que medida essa popularização é um “mal necessário”, isto é, provoca a distorção ou diluição da tradição original?

— Não, acho que não. Nunca houve uma rigidez de princípios no MTG. Não é uma seita dogmática como alguns companheiros dão a entender. O próprio Luiz Coronel já se referiu alguma vez nesse sentido. Mas não há esse dogmatismo na tradição. E se houvesse esse dogmatismo, é óbvio que ele não teria se difundido tanto. Imagina se lá em Roraima, se lá no Japão, se em Los Angeles alguém queira se aproximar de um fogo de chão, queira tomar o seu chimarrão, e tenha que seguir dogmas tradicionalistas do MTG do Brasil, não sai nenhum. Nenhum. No entanto, cada mês são novos CTGs que estão sendo fundados, exatamente por essa liberdade de atuação. Não existem donos da verdade no Movimento Tradicionalista.

E veja bem, uma pessoa como eu, que me afastei um tanto do movimento por causa do som demasiado. Agora que nós estamos conversando, eu sinto... eu te convide para chegar perto da janela porque eu fumo. E nos últimos anos, eu tenho sentido inclusive por parentes chegados, uma grande restrição à minha pessoa pelo fato de eu fumar. Eles alegam que eu largando essa fumaça eles estão sendo forçados a respirar essa fumaça, exatamente é o que eu sinto, é a sensação de agressão que eu sinto quando eu vou a um fandango, a um festival, e até mesmo a reuniões tradicionalistas informais, onde eu sou obrigado a assistir a um som que é totalmente contra a minha feição, e segundo estudos da Dinara Paixão, este alto som, para quem frequenta habitualmente, no caso, músicos, etc. tende a levar a surdez, além de um estado de depressão bem sério. Então, vê bem, o cigarro... me deixa eu fumar o cigarro. E deixem os outros tocarem bem alto. Agora, me deem a liberdade de não participar dessas reuniões. Dançar, eu gostaria de dançar.

— Os festivais também foram eventualmente um espaço de polêmica e contestação ao MTG e à tradição. Isto teve consequências para o movimento? Quais?

— Ora, como eu estou um tanto afastado da lida habitual e rotineira do MTG, e do Movimento Nativista, devido aquela quase que solicitação do compositor nativista que não entraria num festival onde eu estivesse na comissão, eu não sou uma pessoa atualizada para falar. Mas eu não tenho sentido uma maior influência — assim, de quem está aqui fora! — do tradicionalismo na música nativista, como também não vejo influência da música nativista no tradicionalismo. Cada um tá seguindo os seus rumos, com plena liberdade, e não vejo choques maiores. Agora, às vezes, fazer uma agitação, um agito, promover discussões é interessante pra animar, pra esquentar o ambiente. Mas eu não, ao longo de todo esse tempo, eu não vi maior influência de um sobre o outro.

— Não houve... uma abertura? O senhor colocou que não existe dogma, não existe rigidez... As polêmicas que foram desencadeadas nas primeiras Califórnias, principalmente, não tiveram alguma influência nisso?

— Não, eu sempre vejo se complementando, muito mais um auxiliando o outro do que entrando em disputa, entrando em discussões teóricas... Na prática, eu acho que se complementam. Não tenho sentido nunca. Eu vi o movimento nativista da nossa música crescendo duma maneira impressionante, como também o MTG crescendo duma maneira impressionante, sem um atrapalhar o outro. Eu acho que eles se complementam. Agora, tu e outros estudiosos que estão mais voltados para a questão poderão perceber coisas que eu não percebo.

(29/09/1998)

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

LUIZ CORONEL - Entrevista (Álvaro Santi)


LC — No ano de 1970 houve uma Califórnia, eu não estive presente, em que ganhou a música do Colmar, que já era uma música que tinha uma postura nova em relação ao regionalismo. Em 71, com “Gaudêncio Sete Luas”, eu diria que foi um momento muito “estopim” da Califórnia (eu não estou fazendo elogio de boca própria, que é desaforo). Mas, vamos dizer assim, até que ponto isto acendeu, até que ponto isto representou...

Eu diria que Gaudêncio Sete Luas naquele ano foi uma música de impacto. Impacto na medida em que rompia muito a letra, rompia muito a narrativa linear, ficava com versos soltos. Eu próprio não tinha nem consciência do que estava fazendo, eu deixei embaixo da [porta da] casa do Marco Aurélio [Vasconcelos] uma letra... Ele leu e disse: “Que letra gozada aquilo, não entendi coisa com coisa mas achei engraçado... Gostei.” E fez a música do Gaudêncio, foi o Leopoldo [Rassier] a Lúcia Helena e o Marco Aurélio [que defenderam a música no festival], a música é do Marco Aurélio. E a música causou um grande espanto e agradabilidade, mas, vamos dizer assim, dentro da “cúpula” da Califórnia foi uma música inaceitável. O próprio vice-presidente da Califórnia disse: “se essa música vencer a Califórnia eu me retiro da Califórnia.” A esposa dele até disse para mim: “essa música é um chocalho, não diz coisa com coisa”.

Então, vamos dizer assim, houve um primeiro estopim de rompimento de tradição formal. Esse movimento de tradição formal, eu diria que ele avança até a VI Califórnia, VII, e depois acontece esporadicamente. Eu diria que até a VII Califórnia o que existiu de mais glorioso desse movimento tradicionalista aconteceu ali, que foi a presença de um mosaico múltiplo de várias pessoas que tentavam, através dessa qualidade essencial da arte, que é o estilo, tentavam propor trabalhos completamente diferenciados. Então tinha Marinho Barbará com Aparício Silva Rillo; Marco Aurélio e Luiz Coronel; Kleiton, Kledir e Fogaça; Jerônimo Jardim; o grupo “Os Angüeras” de lá de São Borja...

AS — Os Tapes...

— Os Tapes, mais outro grupo também, aquele pessoal de lá da própria cidade [Uruguaiana], fazendo músicas que definiam um mosaico, uma multiplicidade de propostas. E o festival apresentava essa maravilha de coisas completamente diferenciadas. E a coisa vai disparando, vai disparando de uma forma incontrolável.

Até que um dia, numa apresentação da Califórnia, — e eu te diria que “Seis da manhã” de Jerônimo Jardim, “Piquete do Caveira”, “Coto de Vela”, pra te dar alguns exemplos, foram músicas que trouxeram... Eu te diria que aquilo foi uma maravilha, foi um ciclo maravilhoso do festival... Até eu te diria que eu ganhei a III Califórnia com “Canto de morte de Gaudêncio [Sete Luas]”, e foi um trabalho extremamente conservador, que ganhou vamos dizer assim pela força temática, pela interpretação da Rosa Maria, mas que estaria até marginal dentro desse movimento de profunda renovação formal do festival.

Hoje eu faço essa visão.

E aquilo ali vai indo, vai indo... E há uma espécie de tentativa de enquadramento da música de temática regional gaúcha no grande filão da música popular brasileira. Há uma reapresentação de músicas regionais no Teatro São Pedro, e o Paixão Cortes (que é uma pessoa que eu amo e admiro), umas quatro filas atrás de mim, eu me lembro que ele gritou: “E a velha gaita do Rio Grande?”

Simbolicamente eu coloco esse momento como o momento em que as coisas param de ser proponentes para ser conservadoras. A partir daquele momento, embora o Paixão não seja um homem conservador, as coisas se tornaram extremamente conservadoras. Houve uma espécie dum recuo conservador dentro do movimento dos festivais, e aquilo que era essencial para a vitalidade do movimento regionalista, que era a convivência do proponente e do retrospectivo, passa a ser apagado, porque não há mais lugar para o proponente.

— Isso tem uma data...?

— Daria pra [situar] em 77, 78 isso aí. Depois, as coisas proponentes e novas vão ser esporádicas, mas como tese, elas são recusadas. Passa a haver assim uma defesa da tradição, da velha ideologia do épico, nostálgico e romântico, uma espécie dum canto da valentia e da bravura, ou seja, se desdobram... Atolam o pé no mito do gaúcho heroico, na eleição do passado como paraíso perdido.

E a partir daí o movimento não consegue mais voar. Acontecerão coisas maravilhosas, como a música do Nico Fagundes, que é uma música muito bem sucedida, do Alegrete; acontecerão coisas fantásticas, eu acho, lindíssimas, como, do Napp, “Desgarrados”; mas como regra geral, a temática está presa numa nostalgia passadista, e os espaços para abertura formal, para adaptação e conciliação da música às grandes linhas da música popular brasileira ficaram barrados.

Então nós chegamos, já no fim dos anos 70, a uma dramática situação em que, tu vês, num festival, nada mais parecido com a quinta música que a quarta, nada mais parecido com a quinta música do que a sexta... As músicas eram todas feitas dentro duma única narrativa. Em vez da inovação, se juntavam cada vez vozes mais altissonantes e eloquentes. A criação musical perdendo espaço, a criação poética sendo completamente confinada nessas linhas do tradicional e do épico repetitivo. E eu tenho a impressão que o festival fica valioso como mercado de trabalho; fica valioso como expressão de defesa da cultura regional; fica como peça de resistência contra o domínio cultural das grandes metrópoles, num estado que tem uma tradição de resistência; mas de qualquer forma esteticamente deixa de ser um produto cultural valioso, na medida em que passa a não ter condição de ser uma bela arte, uma arte residente, e que ganha espaço, e que nós mesmos nos encantemos. Se torna uma coisa...

Essa cultura dos festivais cria uma verdadeira cultura de layouts. Nós temos mais de mil layouts e pouquíssimas artes finais. Poucas coisas ganham forma de arte final, como é o caso da música “Vento Negro”, de Fogaça, como é o caso de uma música própria minha, Cordas de Espinho, que foi gravada pela Fafá [de Belém]. Há poucos episódios de alguma gravação valiosa em termos de arte final. Cria-se uma grande cultura de layouts, sem acabamento.

Então, tu estás falando com uma pessoa que tem de um lado a defesa e um encantamento de ter participado e de participar desse movimento de valorização da cultura gaúcha, mas também tem a frustração de ver trancado o rumo mais criativo e mais livre, porque o movimento não soube como conciliar o proponente com o retrospectivo.

— Não seria natural, tu achas que não teria uma limitação de tempo, digamos, para a inovação, ou seria possível continuar inovando sempre?

— Foi muito breve o ciclo inovador. O ciclo tem trinta anos, dez inovadores e vinte repetitivos. Vamos dizer, eu tenho dois terços de cansaço e um terço de vitalidade.

— Isso seria por que houve uma apropriação, vamos dizer, pelo conservadorismo, pelo tradicionalismo, de um movimento que não era...

— Há uma coisa muito estranha nisso. O festival é um encontro que tem suas próprias regras. A música que se ouve num festival, a música que triunfa num festival não é a música que tu gostas em casa. Não é a música que gostarias de ouvir em rádio. O festival monta, o impõe com o tempo suas próprias regras: dois, três versos a menos e um verso vibrante... Parece que a vitalidade cênica se impõe sobre a própria qualidade. Os cantos meigos, uma música como por exemplo: “Milongas tristes, milongas...” jamais vai ganhar um festival, e se tu fores ouvir em casa, vais dizer que é uma música mil vezes melhor que muitas vencedoras de festivais. Porque o festival impõe uma grandiloquência operística, que não tem nada a ver com qualidade. As regras do festival impuseram uma grandiloquência operística que nada tem a ver com qualidade estética, ou possibilidade de sensibilizar, ou riqueza poética das canções.

— Que tem a ver talvez com o tipo do gaúcho, com o estereótipo?

— Não. Tem a ver tipicamente com o evento “festival”. Se tu tens ali um público, aí tu vais ouvir geralmente de madrugada, porque já houve show, já houve não sei o quê, vai ser acordado por grandes gritarias, e jamais por coisas... Esse ano, eu fui a um festival, ganhei o prêmio “melhor letra”. Uma música que era um encanto, mas não foi nem conhecida no festival! Os jurados lá deram o prêmio de melhor letra. Porque ela era meiga. As coisas meigas não terão lugar. Essa fusão, essa componente lírica portuguesa nossa, não tem lugar em festival. Tem momentos, assim, de coisas minhas que assombraram no espaço do festival, e estavam fora da estrutura épica, mas são coisas excepcionais, como aquele “Quando morre um menino”, que o Lênin cantou ali na Moenda. Foi um caso excepcional, parou o festival. Então tem um cara falando da morte de um menino... Mas são coisas raras. Geralmente não ganham espaço as coisas meigas. Então é difícil dizer, eu ter essa balança aí, o que teria de ser feito. Teria de ser feita uma grande arte final desse produto cultural, já que é, como eu disse, uma cultura de layouts.

E o grande problema é essa cultura de jurados. Essa história de jurados, das pré-seleções, essa história dos donos do festival, o que eles querem, que propostas eles têm. Dono de festival não tem que ter proposta nenhuma, que tem que ter proposta é artista, com sua liberdade de criar arranjos, de criar músicas, de criar versos. Não se respeitou o poder de impacto da arte, para se abrir, para se criar uma grande valorização da acomodação. E essa é a crise dos festivais.

— Então isso seria a restrição da liberdade criativa?

— É, criou-se uma ideologia acomodada. Os caras já vão atrás da... Os músicos já vão atrás da ajuda de custo, que já faz parte da sua forma de viver, já fazem aquelas coisas tudo parecidas, sem... Aí, daqui a pouco, um cara fura o bloqueio, e faz alguma coisa realmente de qualidade estética, mas a qualidade estética é exceção, não é a virtude permanente da música dos festivais. Ao passo que, se tu ouvires as músicas da primeira década, tu vais ver que ali tinha, ali acontecia isso. A Ciranda, um festival em que aconteciam coisas gostosas, a Ciranda de Taquara, se tu fizeres uma revisão dos discos da Ciranda, tinha muita coisa valiosa, não é? E por incrível que pareça, uma contradição aí...

— Uma universalidade maior.

— É. Teve uma universalidade na medida em que procurava abrigar a cultura alemã, teve uma abertura maior. Enquanto [a Tertúlia de] Santa Maria, uma cidade universitária, que era para ser um centro criativo, se tornou o festival mais conservador do Rio Grande do Sul, porque havia um CTG conservador, que impôs ordens e disciplina na criação. Então Santa Maria, que poderia ter desempenhado um papel de estopim criativo, passou a ser um freio nas definições de criação da música do Rio Grande do Sul. E hoje quem está realizando um festival mais aberto, por incrível que pareça, é a Moenda, e o de São Lourenço. São esses dois que estão assim meio... sem dogma, sem muita coisa, permitindo que entrem coisas mais livres.

Houve uma tentativa também muito boa, que foi aquela de Santa Rosa. Aí, por exemplo, o Pampa e Luz do Pery com o Luiz de Miranda, um grande momento da criação da música do Rio Grande do Sul. Faltou talvez a complementação de tudo isso, uma reapresentação de vencedoras no final do ano em Porto Alegre, uma arte final desse trabalho.

Faltou Porto Alegre realizar um grande festival de música do Rio Grande do Sul, em que coubesse o regional e o não-regional, numa convivência muito saudável, porque nada briga com nada em arte. Eu sou um cara mais adepto da sulinidade que do regionalismo. Acho que as coisas são mais sulinas que regionais.

— Tu participavas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, antes dos festivais? Ou participaste em algum momento?

— Não, nunca participei, não sou filho de tradição rural. Sou nascido em cidade do interior, morei em campanha, morei no posto, como é que se chamava..., Posto de Puericultura em Piratini, onde eu ia de charrete levar minha mãe no posto. A Dona Amelinha do Posto, como chamavam... Conheci um pouquinho da campanha.

Mas ninguém cobra do Érico Veríssimo que ele tenha usado chiripá e sido domador de cavalo. Pra conhecer o Rio Grande do Sul não precisa nada disso. Eu não gosto de ter participado disso. Até, eu tenho alguns amigos, como o poeta Paulo [Roberto] do Carmo, que dizem que de todo esse trabalho meu, que já é um trabalho grande, com vinte e cinco livros, talvez as melhores coisas, segundo a visão dele, que eu teria escrito, seriam esses cantos de Gaudêncio, de Leontina, dos Retirantes do Sul (que é um escrito em cima do “Morte e Vida Severina). Então eu sou um dos muitos participantes do festival, mas com esta visão.

Por isso eu estive muito, eu estive mais de dez anos absolutamente retirado do festival. Aí eu fiz um regresso, um regresso muito vitorioso, quase tudo que eu fiz no meu regresso venceu: Pai; Campo não sonha, floresce; Coração ferido da América...

Quase todas as coisas que eu fiz depois do meu regresso, do fim dos anos 80 até aqui saiu vitorioso. Então isso aí me credencia a dizer que eu falo como visão cultural, não como nenhum... A esta altura da minha vida seria muito pequeno colocar qualquer rancor ou descontentamento. Não, eu falo como movimento cultural, e essa coisa... O festival não poderia ter perdido pessoas como Geraldo Flach. Não podia ter perdido pessoas como... músicos de primeira grandeza que tem aí, que foram se afastando: Toneco...

— O próprio Jerônimo.

— Jerônimo. Perdeu porque foram ficando tão conservadores que as pessoas não sentiam espaço mais nisso aí.

— Sobre a tua maneira de trabalhar: fazes eventualmente o poema para o festival... em relação às regras mesmo, às “linhas”?

— Eu devo dizer que em matéria de regionalismo eu estou no INPS. Eu só voltei a escrever regionalismo para o livro “Pampa Gaúcho – A Terra e o Homem”, que eu não encontrei poemas que falassem sobre determinados assuntos, e criei poemas sobre os assuntos. E até para mim foi uma surpresa porque eu senti que ainda dava para escrever, que os versos ainda me contentavam. Mas eu não escrevo mais sobre o regionalismo. Rarissimamente escrevo. Escrevi o que? Uma letra depois que eu li o livro Lavoura Arcaica, que me deixou uma letra na cabeça. Estou mais ligado num outro trabalho, sobre amor, sobre política, sobre o país... Como é o caso de Um Girassol na Neblina.

Estou fazendo uma antologia e revisão de toda a obra, reunindo tudo isso num livro. Estou no caminho de fazer o CD “Paulo José interpreta Luiz Coronel”... Estou no caminho de rever esta obra, que vai ficando volumosa: da qualidade digam os outros, mas a mim me cabe organizar.

— Mas, na época em que tu estavas mais envolvido com esse assunto, quando escrevias, eu queria saber em que medida procuravas seguir as regras... Não os modelos, mas as regras estabelecidas nos regulamentos... Ou procuravas romper com isto?

— Eu não procurava romper, nem me submeter. Eu tinha uma criação dentro do meu estilo, dentro do meu verso. Inclusive talvez tenha sido um dos primeiros a fazer quadras, dentro do regionalismo. Havia uma tradição payadora, que era outra estrutura de versos: décimas,... E eu fazia quadrinhas, que era a velha tradição lusa, que acompanha a Revolução Farroupilha. Eu tinha lido aquelas coisas. Os cantos da Revolução Farroupilha eram quadrinhas... Então, eu estava muito dentro dessa tradição aí, dessa linha das quadras, dos versos vigorosos. Cada verso como uma bala deflagrada.

Então, eu buscava alguns temas e criava, assim, sem pensar se ia agradar ou não ia agradar. Não havia endereço. Eu entrei, por exemplo, na linha de Gaudêncio Sete Luas, e escrevi doze cantos de Gaudêncio. Entrei na linha de Leontina, e escrevi oito letras. Na linha Retirantes do Sul, escrevi catorze textos. Então eu entrava dentro de um ciclo de criação. E aí mandava os trabalhos. Não estava muito preocupado se iam gostar ou não iam gostar. Alguns trabalhos meus e do Sérgio Rojas foram extremamente recusados.

Eu me lembro que eu ganhei um prêmio com O Tempo e o Vento. Eu ia caminhando, passou um gaudério, olhou para mim e disse: “Não tem vergonha de levar esse prêmio?” Eu até tremi, disse... pô, esse troço aí gera conflito para mim. O que houve naquele festival em que houve aquela quebradeira? Por que o Jerônimo tinha ganho com Astro Haragano, e eu tirado segundo lugar com O Tempo e o Vento, com uma letra extremamente fora dos parâmetros do regionalismo: “Havia na boca da noite / um riso lânguido e triste / De moça que vai ao baile / Se vê no espelho e desiste” Não tem nada que ver com a tradição regionalista. Então, aquele dia o festival parece que perdeu a capacidade de acomodação. Naquele dia explodiu a Califórnia porque perdeu a capacidade de acomodação entre o proponente e o preservador. Por isso houve aquela explosão. A regra na qual Califórnia sabia caminhar era na acomodação dessas duas coisas, e nisso ela foi mestre, até que perdeu essa sabedoria. Hoje ela não tem mais, e se tornou um festival conservador.
(...)
A verdade é que eu nunca, apesar de ser um homem de temperamento afável, carinhoso e até bastante diplomático nas minhas relações pessoais, eu nunca fiz relações públicas com a minha arte, com meu trabalho. Nunca deixei de dizer as coisas que eu penso sobre essas coisas como dever de consciência criativa. Essas coisas muitas vezes eu disse, e criei muita hostilidade, muito conflito. Até me lembro de terem me chamado de mal-agradecido, que a Califórnia teria sido meu primeiro palco, primeiro espaço...

— Veículo de divulgação...

— ... do meu trabalho, importantíssimo, que eu vivo reconhecendo. Mas lá por reconhecer eu não teria o direito... Eu teria o dever de fazer críticas, na medida em que as críticas possam ser colaboração. Então eu sempre fiz essas ponderações, quando foi aberto espaço. E acho que é uma tese importante essa que tu trabalhas, de rever essas letras, de rever essas músicas, de rever essas interpretações, de rever os cantores que surgiram, de rever as músicas que conquistaram espaço, conquistaram mídia, que veículos se conquistou. Por que de fato não houve o rompimento de um confinamento. Houve apenas criação de uma rádio aqui, um pouco de espaço nas rádios do interior, que não havia antes, e um programa de televisão, mas mesmo assim confinado. Não há o triunfo de um produto cultural gaúcho.

— Mas houve uma popularização grande, e em certa medida a Califórnia é responsável por isso.

— Sim, ela é o estopim de tudo. Ela é a matriz generosa de tudo isso.

— E o resultado seria mais conservador sem que tivesse existido a Califórnia?

— Sem que existisse Califórnia, sem que existisse esse movimento, vamos chamá-lo de “Ciclo dos Festivais”, o filão regionalista estaria muito soterrado. Temos que pensar que o folclore é base para criações vigorosas. É dentro do folclore espanhol que Lorca vai criar Bodas de Sangue. É preciso que o teatro crie uma Bodas de Sangue. Não vai ser na repetição dos CTGs dançando o “Pezinho” e o “Balaio” que vai se criar uma dança regional gaúcha. Vai ter que se criar uma grande estilização criativa em cima dos nossos motivos, guardando a essência sulina. Aí se está criando verdadeiramente uma arte. Assim também na poesia, assim também na pintura. Nelson Jungbluth é um pintor de maravilhas do Rio Grande do Sul porque soube se livrar, soube criar, soube dar um traço pessoal, soube dar o triunfo do estilo, sem o qual não existe arte. É esse hiper-realismo que o regionalismo procurou nas narrativas, e esse culto ao passado que confinaram a coisa numa atrofia criativa.
(...)
Eu estava dizendo que aos organizadores dos festivais cabia: dar boa alimentação, boa hospedagem e ajuda de custo. Mas não competia dizer o que os artistas deveriam fazer. Na medida em que eles quisessem dizer o que os artistas deveriam fazer, eles estariam fazendo uma arte de encomenda, o que já é em princípio empobrecedor. Uma coisa é tu chamares um grande artista e fazeres uma encomenda. Uma coisa é o Papa Júlio II chamar o Michelangelo fazer uma encomenda, outra coisa é tu criares um evento cultural com encomendas.

E quando eu protestei contra isso eu criei muitas antipatias contra mim. Mas eu segurei o barco, disse que não, que eu achava isso. Que não tinham nada que me dizer o que eu tinha que fazer.

Eu tenho histórias de festival maravilhosas. Na IV Califórnia, quando um cara cantou: “Um tombo / do lombo / é um rombo / no chão / Eu caio / mas saio / com a crina / na mão.” Isso levantou o público. Nunca visto. O estribilho, de pé. Pensei: já ganhei o festival. Aí um jurado disse: é plágio. Até hoje não explicou plágio de quê. E a música foi desclassificada, na Califórnia.

(07/09/1998)

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

Sérgio Napp - Entrevista (Álvaro Santi)


AS — Tu participavas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, antes de participar dos festivais nativistas? Em que medida? Caso negativo, houve depois alguma aproximação?

SN — Não, eu nunca participei do movimento em si, em termos de CTG. Nunca tive participação ativa, nem sequer participação esporádica num CTG. Eu nunca participei desse movimento, ele nunca me atraiu. E nem depois da minha participação nesses festivais todos, eu continuei não participando desse movimento, inclusive tenho algumas restrições a ele. Eu uma vez, inclusive, fui convidado a participar da “Estância da Poesia Crioula”, até me colocaram dentro da “Estância”, à revelia. Fui incluído como sócio participante, mas também em nenhum momento participei da “Estância”. Ainda hoje me enviam correspondência, coisa e tal. Eu convivo amigavelmente, tenho muitos amigos nesse meio tradicionalista, mas não participo.

— Então vês diferença entre Tradicionalismo e Nativismo?

— É, fazem [diferença]. O Barbosa Lessa diz que de trinta em trinta anos há um, não sei se um movimento, mas alguma coisa de novo dentro desse movimento.

— Um renascimento.

— Ele começa com um gauchismo, passa pelo tradicionalismo, e agora nós estaríamos vivendo a fase do nativismo. O que eu considero, a grosso modo, o tradicionalismo é um pouco mais, como a própria palavra está dizendo, um pouco mais tradicional, mais rígido com seus princípios; enquanto o nativismo viria a ser um movimento um pouco mais aberto, onde pessoas como eu de repente começam a participar de festivais, a usar temas regionais, mas absolutamente não pertencem ao movimento. Uma outra geração que vem chegando absorve um pouco do tradicionalismo, mas ela também recicla esse tradicionalismo, e torna-o um pouco mais próximo do presente. Isso viria a ser o nativismo. A gente verifica nos temas, nas letras uma diferença bem grande entre um tradicionalista convicto, na forma que ele escreve; e o que seria um nativista, na forma também com que ele coloca o seu texto. O Jerônimo Jardim, que faz também trabalhos nessa área, e trabalhos brilhantes, diga-se de passagem, ele também não pertence ao Tradicionalismo, não é um tradicionalista, não participa de CTGs, etc. Nada contra, afinal, cada um, cada um. Eu tenho amigos que são ferrenhos defensores, nem por isso deixam de ser meus amigos.

— Tu és natural do interior, viveste no campo, tiveste uma experiência “campeira”?

— Eu sou natural do interior do Estado... Nasci em Giruá. Minha família é toda daquela área. Talvez a minha ligação com esse tipo de manifestação cultural seja um tanto atávica, já que eu sou missioneiro. Então também essa minha melancolia, essa minha introspecção talvez venha daí. Mas eu vim para Porto Alegre com nove, dez anos de idade, e vivi sempre dentro da cidade, em Santa Rosa, Santo Ângelo, Giruá. Nunca participei de atividade de campo. A única atividade, em que eu até baseio a maioria das minhas letras ligadas a esse movimento, é que meu sogro era fazendeiro, aqui em Encruzilhada do Sul. Então eu frequentava a fazenda. Era um exercício de observação Então, todo esse trabalho que eu fiz nessa área é todo um exercício de observação e de sensibilidade em cima da área. Quando eu escrevi “Desgarrados”, o pessoal me perguntou se eu tinha feito muita pesquisa. Eu não fiz absolutamente nenhuma pesquisa. Foi simplesmente uma questão de olhar, de ver, de sentir aquilo que eu estou colocando na letra.

— Não deixa de ser uma pesquisa...

— Sim, mas não é uma pesquisa formal, né? Eles me perguntam como se fosse uma pesquisa formal, se eu tivesse ido ao campo, se eu tivesse falado com alguém que retratasse a figura, né? Neste sentido não houve pesquisa nenhuma. Em nenhuma das letras houve pesquisa, das letras que eu fiz nessa área aí.

— Com relação a esse trabalho de fazer o poema, de fazer letras, o Tradicionalismo tem uma doutrina mais ou menos determinada, e o Nativismo não, é uma coisa mais aberta, se baseia muito... nos regulamentos, que nem sempre são muito rígidos, isto é, permitem interpretações diferentes. Eu queria saber como esse regulamento influi na hora de fazer o poema, se na hora de fazer o poema tu estás pensando no festival, ou se o poema já estava pronto, e aí surge a oportunidade.

— Houve as duas coisas. Eu desde 71, quando começou a Califórnia, eu sempre me interessei em participar da Califórnia. Eu havia participado uma única ocasião, de um festival, não me recordo bem em que ano, mas foi antes da Califórnia que houve aqui na Televisão Gaúcha, quando ainda era lá na Piratini. Ou melhor, na TV Piratini, nem era Gaúcha ainda, eu participei de um festival. Meu parceiro naquela ocasião foi o César Dorfmann. Eu tinha uma letra pretensamente com um tema regional, não tinha palavreado regional nem nada, e o César fez uma música praticamente urbana, também. Nós participamos daquele festival, e naquele festival participou Teixeirinha, participou Airton Pimentel, participou... uma série de nomes que eu ainda não conhecia, eu estava ingressando naquilo ali. Depois, numa outra ocasião, num festival que houve na SOGIPA, de novo eu participei com música urbana porque o festival era aberto, mas naquele momento participaram também o Marco Aurélio Vasconcelos e o Airton Pimentel. E o Airton inclusive fez uma música que recebeu um dos prêmios, naquela ocasião. Esses foram meus primeiros contatos com essa área.

Quando apareceu a Califórnia, eu sempre tive interesse em participar da Califórnia. Ocorre que eu sou um letrista, basicamente, e isto me criava problemas porque eu não tinha parceria para me inscrever numa Califórnia. Depois desses dois festivais, em 1980, essa música que eu fiz com o César, que tinha participado desse Festival, nós fizemos uma pequena adaptação na letra, e nós inscrevemos na Califórnia. E ela foi classificada, mas ela também não foi apresentada no festival, porque nosso intérprete, um grupo que se chamava Saracura, na última hora roeu a corda, e não foi ao festival. Pela primeira vez uma música foi classificada e não foi apresentada. Quer dizer, foi uma frustração para mim, que há horas estava querendo participar da bendita Califórnia.

Mas em 81 eu conheci o Mário Barbará. Em 81, eu participei de um festival, da Vindima, em Flores da Cunha, e ali foi o surgimento do “Canto Livre”. E ali, nós ganhamos a Vindima, naquele ano. Oitenta e um foi um ano muito marcante porque além de nós ganharmos a Vindima, o Emílio Santiago gravou uma música minha, o que pra mim foi um acontecimento. E eu fiz uma pequena cirurgia de varizes, fiquei quinze dias imobilizado em casa, e aí escrevi um batalhão de letras, entre as quais eu escrevi “Desgarrados”, e outras tantas.

Logo depois houve um show do Saracura no Teatro Renascença, e eu fui convidado para assistir, para tentar fazer uma parceria com o Nico, com alguém lá dentro, e o Mário Barbará fazia uma participação especial naquele show. Eu vi o Mário Barbará cantando, eu conhecia o Mário Barbará só de nome, eu achava inclusive que ele era uma pessoa mais idosa, e ele era um garotão. Eu vi o Mário cantar e disse: esse cara tem de ser meu parceiro. Então eu fui procurar o Mário. Naquela ocasião, eu estava iniciando, eu ia atrás das pessoas, procurando: cacei o Hermes Aquino, cacei Fulano, Beltrano, pra mostrar letras... Fui atrás do Mário, e deixei uma porção de letras com o Mário, entre as quais “Desgarrados”.

Eu estou contando essa história toda pra dizer que houve momentos em que nós fizemos música, letra e música, sem a pretensão de ir pra Califórnia, e houve momentos em que eu fiz letras com a pretensão de ir pra Califórnia. Nunca me preocupei muito com fazer ou não fazer. Muitas vezes chegava o momento de inscrição da Califórnia, e eu procurava aquilo que eu achava mais condizente com o espírito da Califórnia, e inscrevia, sem me preocupar muito se essas músicas ou letras fossem muito regionais ou não.

— O “x” da questão é se tu achas que limita a criatividade ou não, o letrista que queira seguir muito à risca o regulamento?

— Se tu quiseres seguir muito à risca o regulamento é capaz de limitar mesmo. Eu nunca me senti limitado, em relação a isto aí. Eu mantive uma certa independência. Não digo que eu não tenha... não sou assim um Jerônimo Jardim, que fazia coisas bastante avançadas para a época, colocava na Califórnia, criava problemas, de repente...

— Tu não tinhas a pretensão de quebrar...?

— Tinha. Talvez não conseguisse, mas tinha, sempre tive a pretensão de quebrar. Onde eu atuei sempre tive a pretensão de quebrar. Procurei até fazer alguns experimentos. Porém, como eu também, volto a dizer, sou um letrista, fica complicado... Eu posso escrever uma letra eu que eu tenha uma ideia de quebrar, mas por um motivo ou outro, eu pego um parceiro que não quebra, e aí eu também não posso fazer milagre. O Jerônimo faz música e letra. Ele pode fazer isso. Quem faz música e letra, ele... ou quando se juntam duas pessoas que resolvem quebrar, tu consegues fazer um trabalho nesse sentido. Agora, quando tu estás com uma ideia... Eu, desde a época dos festivais, da grande época dos festivais da Record, eu sempre de uma certa forma procurei quebrar alguma coisa. Eu nunca foi um arrivista, no sentido... aquele que quebrava tudo. Mas eu sempre tentei fazer alguma coisa.

Eu, num festival de 1969, quando isto ainda não existia na música popular... eu participei aqui em 1968 ou 1969, num festival da RBS, que tinha uma tradição de fazer festivais, eu participei com uma letra minha e música do Paulo Dorfmann, em que eu descrevia uma transa, um ato sexual. Claro, cheio de metáforas, eufemismos e coisas... Mas, para as pessoas que perceberam o que eu estava passando ali, foi um espanto. Porque as pessoas ficaram assim: “Tu estás tentando dizer realmente isso aí, ou eu estou lendo errado?” “Não, eu estou dizendo isso aí.” Depois, logo depois dessa minha letra aí (claro que não tem consequência nenhuma), o Marcos e o Paulo Sérgio Valle, e outro pessoal lá no Rio de Janeiro, começaram a fazer letras meio com duplo sentido, em que exploravam muito a sexualidade.

Bom, eu também tentei fazer aqui, houve um determinado momento em que eu pensei que se podia fazer uma letra declamada em cima de uma música. Então escrevi uma letra, que era quase um poema, mais longo, e pedi para um amigo meu, César Dorfmann, bolar uma música de tal forma que aquilo pudesse ser meio cantado e meio interpretado, como se fosse um jogral. Logo, pouco tempo depois, começaram a surgir gravações que tinham músicas e as pessoas recitavam. Então houve tentativas da minha parte de quebrar alguma coisa, de manifestar um certo inconformismo, mas eu não conseguia ir adiante porque eu tinha uma limitação.

Na Califórnia, a minha preocupação nunca foi ser um “gaudério”, nunca foi ser uma pessoa que mostrasse ou tentasse mostrar aquilo que não era. Eu não tinha experiência de campo, eu não conhecia a lide campeira, a não ser de observação, como eu disse, na fazenda, então eu não tinha essa preocupação. Eu procurava me ater ao regulamento, quer dizer, como na Califórnia existia uma linha... de Projeção Folclórica, então eu me enquadrava via de regra na Projeção Folclórica, onde eu tinha temas mais abertos. Eu usava um que outro termo, nas minhas letras, gauchesco, mais regional, mas eu não tinha preocupação de fazer uma letra tipicamente regional. Tinha preocupação de falar de algum tema regional, o que é bem diferente. Eu fiz uma letra que se chamava “Mala de Garupa”. E mala de garupa é um apetrecho bem gaúcho, bem regional. Mas a minha letra, falando sobre a mala de garupa, ela não tem nenhum termo regional, mas ela fala exatamente daquele objeto ali. Essa música participou duma Califórnia, também...

Então, resumindo esse longo papo: pra mim, nunca um regulamento me cerceou, ele não me balizou. Eu procurava fazer as coisas da forma como eu gostava de fazer, sem ter aquela preocupação de atender rigidamente. Claro, existiam algumas coisas com as quais eu não concordava, por exemplo: não podia usar termos, palavras castelhanas, isso constava do regulamento. Não podia ter um intérprete que não fosse gaúcho. Até houve músicas que foram desclassificadas por causa disso. Era uma coisa que incomodava porque eu não via sentido. Não que eu me apresentasse, mas tu não podias te apresentar que não fosse pilchado. Não podias usar determinado tipo de instrumentos. Quer dizer, ficava um pouco limitada a apresentação em si por causa do regulamento, isto sim. Alguns ousavam um pouquinho, e se quebravam. Isso aí era uma coisa que eu contestava. Contestei muito isso, lá, em debates, etc. Numa ocasião, em 82, quando eu concorri com uma seleção de trabalhos que eu acho que são os melhores com que eu participei da Califórnia (duas músicas com o Mário Barbará, que foram “Campesina” e “Razões de Cantar”; e uma música com Jerônimo Jardim, que é “Carreta”), e nesse momento inclusive a crítica considerou que as minhas letras foram as melhores da Califórnia, houve manifestações, etc. E em 82 eu fui vaiado. Fui vaiado na Califórnia, quando eu fui agradecer, porque eu também não concordava...

— Foi premiada “Campesina”?

— Foi premiada “Campesina”, em 82, na linha de Projeção Folclórica. Eu tinha ganho com “Desgarrados” em 81, e em 82 foi a “Campesina”. E eu fui vaiado porque eu errei na forma de dizer, como eu comecei a minha frase, e o pessoal entendeu mal de cara, e eu fui vaiado e não pude continuar. Mas o que eu queria dizer naquele momento, basicamente, era que eu não via diferença entre a música urbana e a música regional. E aí a vaia veio abaixo. Eu não via diferença porque, se uma música regional é boa, se uma música tradicionalista é boa, de qualidade, tem uma boa letra e um [bom] arranjo, ela não pode ficar presa num gueto, como se faz até hoje, que a música regional só toca em determinadas rádios, e ela só toca nessas rádios em determinados horários. São raros os intérpretes e cantores que conseguem furar esse bloqueio. E eu queria colocar a minha manifestação contrária a isso. Queria dizer que não via diferença entre a música urbana e a música regional, no que se referia à qualidade. Se a música regional fosse boa, ela obrigatoriamente deveria tocar no espaço nobre de uma rádio, misturada com um Milton Nascimento, com uma Gal Costa, até para fazer um paralelo. Se ela é boa, toque-se junto com outras músicas. Não tem porquê, só porque ela tem um sotaque acentuado, nós estamos cansados de ouvir sotaques nordestinos e palavrório nordestino em letras e achamos que isso não é regional. No entanto, isso é regional. Mas eu comecei assim: “Eu penso que não existe diferença entre música urbana e regional...” Bah! veio a plateia abaixo e eu não pude nem continuar. Então eu contestava essa coisa do fechamento, sabe? Eu acho que a coisa tinha que ser mais aberta. Eu achava... eu contestava essa coisa assim: tu podias tocar bombo legüero, porque diziam que era um instrumento “aculturado”, mas não podias botar teclado no palco. Por que não podia? Bombo legüero não é um instrumento gaúcho, aliás, não existe nenhum instrumento gaúcho.

— Mas nem na categoria “Projeção Folclórica”?

— Não. Lá pelas tantas, mais adiante, se começou a usar o piano, podia fazer gravações com piano. Tu não podias usar bateria no palco. Só que, por exemplo, tinha uma contradição enorme. “Os Serranos” estavam se apresentando no palco da Califórnia, concorrendo na Califórnia, e não podiam usar bateria. Aí, no dia seguinte, eles estavam fazendo o baile da Califórnia, e estavam tocando o baile de bateria. Só podia entrar gente pilchada no baile. Eram “Os Serranos” que tocavam, mas eles estavam tocando com bateria e baixo elétrico. Era uma coisa contraditória que eu não concordava. Questionei muito isso aí. Então às vezes eu fazia uma letra pensando na Califórnia, é verdade. Mas não era trabalho “dirigido” pra Califórnia. Era dirigido num sentido, porque eu sabia que havia letras minhas que absolutamente não passariam pela triagem. Então eu nem me preocupava em mandar. Eu me preocupava em mandar aquelas que eu achava que tinham alguma coisa a ver. Porque cada festival tem uma linha. E é claro que eu penso, particularmente, que se tu vais participar de qualquer tipo de concurso, um concurso de contos, de novelas, há um regulamento, e esse regulamento te dá algumas linhas. Que tu ficas limitado em forma, talvez, mas não no conteúdo. Tu não limitas tua criação. Agora tem um concurso de “contos de bom humor”. Então, claro: se é um concurso de contos de bom humor, eu não vou mandar pra lá um trabalho que não tenha nada de bom humor, porque é perda de tempo. Não vai adiantar nada. Então eu vou procurar mandar um trabalho... O resto... Olha, só exigem que tenha três páginas no máximo. Muito bem: se eu não tiver um conto de três páginas, de bom humor, se eu tiver um de quatro ou de cinco, não posso mandar. Não adianta, eu vou mandar e vai ser anulado.

Então eu me preocupava com essa coisa assim mais, quer dizer, com a linha do festival. Pro Musicanto, poderia mandar qualquer tipo de música, porque não tem problema, é um festival aberto. Pra Moenda, eu posso mandar qualquer tipo de música, já mandei até samba-enredo pra lá, porque é um festival aberto. Agora, pra Califórnia, ela tem seus limites, eu sei. Então, eu mandava trabalhos que mais ou menos estivessem dentro do espírito, sem me preocupar rigidamente com a forma. Isso nunca me limitou.

— Continuas participando ainda eventualmente de algum festival?

— Esporadicamente, de todos os festivais. Eu acho que os festivais perderam o glamour, perderam a importância, eles se... por um motivo ou outro eles não têm mais aquela ressonância. Eu me recordo, em 81, quando eu ganhei com “Desgarrados”, tinha uma polêmica enorme dentro da Califórnia, e quando eu ganhei, na noite de domingo, a final, segunda feira eu vim pra Porto Alegre. E na segunda-feira, tanto a Zero Hora quanto — ainda existia naquele tempo — a Folha da Tarde, já tinham matérias extensas, discutindo os premiados, essa coisa... Então havia isso naquele tempo, em que o festival era uma coisa considerável. Eram transmitidos, a imprensa divulgava. Hoje, os festivais acontecem, e tu nem sabes que os festivais aconteceram. Não há uma divulgação pela imprensa, não se sabe nem que festival vai acontecer em tal final de semana, tu nem sabes quem é que ganhou o festival... parece que não aconteceu.

Agora mesmo eu... o Mário tem muita letra minha guardada ainda, daquelas que a gente vai passando, ele não vai fazendo. E o Mário me ligou no início do ano, que ele tinha feito, quer dizer, ele me ligou pra saber se determinada letra ainda estava musicada, não estava, ele musicou e inscreveu num festival, se não me engano o festival de Santiago, ou de Rosário, não sei bem. E depois ele me ligou: “Olha, fomos classificados.” Eu até agora não conheço a música ainda. Fomos classificados. Absolutamente, não saiu em lugar nenhum na imprensa, eu não sabia nem quando era o festival, nada. O festival ocorreu nesse feriadão de 12 de outubro, eu estava viajando, nem sabia de nada. Quando eu voltei na segunda-feira, de noite o Mário me ligou: “Olha, tiramos o terceiro lugar no festival.” Então, veja bem o seguinte, é uma coisa que não bate mais. Eu participei de um festival, eu não conheço a música, foi o João de Almeida Neto que cantou, um baita dum intérprete, pessoas que assistiram acharam até que a música poderia ter tirado uma classificação melhor... Mas não saiu a relação das músicas classificadas na imprensa, não saiu nenhuma nota em nenhum jornal dizendo que o festival se realizaria naquela data, não saiu o resultado do festival em nenhum jornal. Então, a pergunta é a seguinte: existiu o festival?

— Sintoma disso é que a própria Califórnia esteve ameaçada de não sair, este ano.

— E o Musicanto não vai sair, esse ano não sai. E depois também, eu acho que cumpriu-se um ciclo. Eu participei ativamente de todos esses festivais, onde eu pude participar, e foram os mais diversos. Eu me preocupava, eu gravava meu trabalho, eu mandava, eu acompanhava, eu ia até lá, eu assistia... mas de repente isso ficou cansativo. E eu não via mais graça no negócio, entende? Aí fui parando, eu comecei a me dedicar mais à literatura, mesmo, comecei a escrever. Não deixei de fazer letra. Continuo. Talvez tenha umas 100 letras lá em casa, à disposição de quem queira fazer a música. Então, quando me pedem, eu envio, seleciono e envio, dependendo da pessoa que me pede. Aí ela faz ou não faz, também não tem maiores problemas. Muitos meus trabalhos estão sendo regravados agora. Há intérpretes que estão me procurando, buscando músicas que eu tenha, feitas para gravar... Então eu continuo. Música pra mim é fundamental.

Eu gosto muito, e gostaria muitíssimo de poder dar um pulo, de poder sair do Estado, de fazer outras tentativas. Já procurei fazer isso aí com compositores, com músicos de outros Estados. Então não é uma coisa assim que eu tenha deixado completamente de mão. Eu continuo ainda trabalhando nisso. Estou fazendo agora um CD. Eu peguei assim... vinil não existe mais, né? Então, eu tenho todo esse material grande em vinil, que não está em CD, nunca vai ser, porque são faixas esparsas de festivais, isso nunca vai ser colocado em CD. Muita coisa minha de festival até tem saído, tem sido remasterizado em antologias, tem saído por aí. Mas tem um lado meu, de música urbana principalmente, que nunca apareceu muito. Então eu resolvi selecionar esses trabalhos, remasterizei, estou com a matriz pronta, e estou em tratativas para fazer um CD pra mim, como resgate de memória. Pra ter um material, pra passar pra alguém: “Olha, isso aqui, tal e coisa...” E pretendo, pro ano que vem, começar a trabalhar num disco de música regional, também dessas coisas que estão gravadas, pra resgatar isso aí como memória, não como... não tenho objetivo comercial, é mais uma coisa pra deixar.

Então, eu continuo me envolvendo, continuam meus parceiros se inscrevendo em festivais, passa ou não passa... Tem o “Status” com quem eu fiz muita coisa, voltou a trabalhar, pediu letra, fizemos vários trabalhos agora, ultimamente. Então eu continuo ainda trabalhando nisso aí, mas assim, muito light. Porque meu objetivo é outro, já não é isso aí.

Ah, eu acho que tem uma coisa interessante, já que tu falaste em cerceamento pelo regulamento. Uma ocasião eu tive uma letra minha censurada na Califórnia. E no Musicanto também, parece mentira. Na Califórnia, foi uma música com o Mário Barbará, uma letra em que eu falava de prostituição, uma das quadras fazia um comparativo entre uma sinhazinha na fazenda e uma prostituta. A música foi classificada, e os caras me ligaram de lá, se eu podia suprimir aquilo ali, ou mudar, ou qualquer coisa. E eu ponderei que não, que eu não gostaria de mudar, fiz um arrazoado do porquê daquilo ali, o que eu tinha colocado não era nada ofensivo, era uma coisa muito light. Tá, não houve problema, a música foi apresentada daquela forma, sem problema nenhum.

E lá no Musicanto, eu tinha uma letra em que eu estava falando... porque eu morei muito tempo em Santa Rosa, praticamente me criei em Santa Rosa, minha família morava lá. Então eu fiz uma letra em que eu colocava minha vivência lá em Santa Rosa, algumas lembranças lá. E eu colocava, lá pelas tantas da letra, que “a primeira coca-cola”, parafraseando a coca-cola da Panair, do Milton Nascimento e Fernando Brant, “a primeira coca-cola foi na Praça da Bandeira”, que é a praça lá. E os caras não gostaram que a primeira coca-cola fosse lá, tive que trocar para “o primeiro mate”. Tipo de coisa, assim, que é uma coisa muito pobre, acho. Mas houve. Não sei se isso aconteceu com outras pessoas, nunca tive conhecimento, mas houve isso aí.

— Foi proposto como condição para tua participação que alterasses a letra?

— Não, não. A música tinha sido classificada. Só que eles achavam que não pegava bem, falar em coca-cola, quem sabe botava um mate, chimarrão... Uma coisa assim que não tem porquê. Primeiro porque eu nunca tomei meu primeiro chimarrão naquela praça, e nem tomo chimarrão, a não ser eventualmente quando me oferecem. Não tenho o hábito. Então, jamais eu poderia colocar “o primeiro chimarrão na Praça da Bandeira” porque não era. E realmente a primeira coca-cola foi lá na praça, quando eu morava lá e era guri. Isso só para fazer uma referência. Então, tem dessas coisas em festival.

E não se pense que é em festival aqui do Rio Grande do Sul. Isso existe em festival nacional também. Uma ocasião, num festival em que eu participei, não foi comigo isso aí, foi... aquele último festival da Rede Globo, que ganhou a Tetê Espíndola... Globo-Shell, uma coisa assim.

— Ganhou com “Escrito nas Estrelas”.

— Exatamente. Eu estava participando com uma música, com o Canto Livre, e eu me recordo que o Vítor Ramil também tinha se inscrito, e o Vítor Ramil é um compositor, ou naquela ocasião pelo menos ele ainda era um compositor bastante hermético. Inclusive bastante experimental. E ele foi solicitado... eles gostaram muito do trabalho dele, mas pediram para o Vítor mandar uma música mais... “aberta”, digamos assim, pra poder participar do festival. E o Vítor não concordou em fazer, e não participou do festival. Então tem essas coisas, por detrás, que não aparecem, mas existem, nesses festivais da vida.

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

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