AS
— Tu participavas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, antes de
participar dos festivais nativistas? Em que medida? Caso negativo,
houve depois alguma aproximação?
SN
— Não, eu nunca participei do movimento em si, em termos de CTG.
Nunca tive participação ativa, nem sequer participação esporádica
num CTG. Eu nunca participei desse movimento, ele nunca me atraiu. E
nem depois da minha participação nesses festivais todos, eu
continuei não participando desse movimento, inclusive tenho algumas
restrições a ele. Eu uma vez, inclusive, fui convidado a participar
da “Estância da Poesia Crioula”, até me colocaram dentro da
“Estância”, à revelia. Fui incluído como sócio participante,
mas também em nenhum momento participei da “Estância”. Ainda
hoje me enviam correspondência, coisa e tal. Eu convivo
amigavelmente, tenho muitos amigos nesse meio tradicionalista, mas
não participo.
—
Então vês diferença entre
Tradicionalismo e Nativismo?
—
É, fazem [diferença]. O Barbosa
Lessa diz que de trinta em trinta anos há um, não sei se um
movimento, mas alguma coisa de novo dentro desse movimento.
—
Um renascimento.
—
Ele começa com um gauchismo,
passa pelo tradicionalismo, e agora nós estaríamos vivendo a fase
do nativismo. O que eu considero, a grosso modo, o tradicionalismo é
um pouco mais, como a própria palavra está dizendo, um pouco mais
tradicional, mais rígido com seus princípios; enquanto o nativismo
viria a ser um movimento um pouco mais aberto, onde pessoas como eu
de repente começam a participar de festivais, a usar temas
regionais, mas absolutamente não pertencem ao movimento. Uma outra
geração que vem chegando absorve um pouco do tradicionalismo, mas
ela também recicla esse tradicionalismo, e torna-o um pouco mais
próximo do presente. Isso viria a ser o nativismo. A gente verifica
nos temas, nas letras uma diferença bem grande entre um
tradicionalista convicto, na forma que ele escreve; e o que seria um
nativista, na forma também com que ele coloca o seu texto. O
Jerônimo Jardim, que faz também trabalhos nessa área, e trabalhos
brilhantes, diga-se de passagem, ele também não pertence ao
Tradicionalismo, não é um tradicionalista, não participa de CTGs,
etc. Nada contra, afinal, cada um, cada um. Eu tenho amigos que são
ferrenhos defensores, nem por isso deixam de ser meus amigos.
—
Tu és natural do interior,
viveste no campo, tiveste uma experiência “campeira”?
—
Eu sou natural do interior do
Estado... Nasci em Giruá. Minha família é toda daquela área.
Talvez a minha ligação com esse tipo de manifestação cultural
seja um tanto atávica, já que eu sou missioneiro. Então também
essa minha melancolia, essa minha introspecção talvez venha daí.
Mas eu vim para Porto Alegre com nove, dez anos de idade, e vivi
sempre dentro da cidade, em Santa Rosa, Santo Ângelo, Giruá. Nunca
participei de atividade de campo. A única atividade, em que eu até
baseio a maioria das minhas letras ligadas a esse movimento, é que
meu sogro era fazendeiro, aqui em Encruzilhada do Sul. Então eu
frequentava a fazenda. Era um exercício de observação Então, todo
esse trabalho que eu fiz nessa área é todo um exercício de
observação e de sensibilidade em cima da área. Quando eu escrevi
“Desgarrados”, o pessoal me perguntou se eu tinha feito muita
pesquisa. Eu não fiz absolutamente nenhuma pesquisa. Foi
simplesmente uma questão de olhar, de ver, de sentir aquilo que eu
estou colocando na letra.
—
Não deixa de ser uma pesquisa...
—
Sim, mas não é uma pesquisa
formal, né? Eles me perguntam como se fosse uma pesquisa formal, se
eu tivesse ido ao campo, se eu tivesse falado com alguém que
retratasse a figura, né? Neste sentido não houve pesquisa nenhuma.
Em nenhuma das letras houve pesquisa, das letras que eu fiz nessa
área aí.
—
Com relação a esse trabalho de
fazer o poema, de fazer letras, o Tradicionalismo tem uma doutrina
mais ou menos determinada, e o Nativismo não, é uma coisa mais
aberta, se baseia muito... nos regulamentos, que nem sempre são
muito rígidos, isto é, permitem interpretações diferentes. Eu
queria saber como esse regulamento influi na hora de fazer o poema,
se na hora de fazer o poema tu estás pensando no festival, ou se o
poema já estava pronto, e aí surge a oportunidade.
—
Houve as duas coisas. Eu desde
71, quando começou a Califórnia, eu sempre me interessei em
participar da Califórnia. Eu havia participado uma única ocasião,
de um festival, não me recordo bem em que ano, mas foi antes da
Califórnia que houve aqui na Televisão Gaúcha, quando ainda era lá
na Piratini. Ou melhor, na TV Piratini, nem era Gaúcha ainda, eu
participei de um festival. Meu parceiro naquela ocasião foi o César
Dorfmann. Eu tinha uma letra pretensamente com um tema regional, não
tinha palavreado regional nem nada, e o César fez uma música
praticamente urbana, também. Nós participamos daquele festival, e
naquele festival participou Teixeirinha, participou Airton Pimentel,
participou... uma série de nomes que eu ainda não conhecia, eu
estava ingressando naquilo ali. Depois, numa outra ocasião, num
festival que houve na SOGIPA, de novo eu participei com música
urbana porque o festival era aberto, mas naquele momento participaram
também o Marco Aurélio Vasconcelos e o Airton Pimentel. E o Airton
inclusive fez uma música que recebeu um dos prêmios, naquela
ocasião. Esses foram meus primeiros contatos com essa área.
Quando
apareceu a Califórnia, eu sempre tive interesse em participar da
Califórnia. Ocorre que eu sou um letrista, basicamente, e isto me
criava problemas porque eu não tinha parceria para me inscrever numa
Califórnia. Depois desses dois festivais, em 1980, essa música que
eu fiz com o César, que tinha participado desse Festival, nós
fizemos uma pequena adaptação na letra, e nós inscrevemos na
Califórnia. E ela foi classificada, mas ela também não foi
apresentada no festival, porque nosso intérprete, um grupo que se
chamava Saracura, na última hora roeu a corda, e não foi ao
festival. Pela primeira vez uma música foi classificada e não foi
apresentada. Quer dizer, foi uma frustração para mim, que há horas
estava querendo participar da bendita Califórnia.
Mas
em 81 eu conheci o Mário Barbará. Em 81, eu participei de um
festival, da Vindima, em Flores da Cunha, e ali foi o surgimento do
“Canto Livre”. E ali, nós ganhamos a Vindima, naquele ano.
Oitenta e um foi um ano muito marcante porque além de nós ganharmos
a Vindima, o Emílio Santiago gravou uma música minha, o que pra mim
foi um acontecimento. E eu fiz uma pequena cirurgia de varizes,
fiquei quinze dias imobilizado em casa, e aí escrevi um batalhão de
letras, entre as quais eu escrevi “Desgarrados”, e outras tantas.
Logo
depois houve um show do Saracura no Teatro Renascença, e eu fui
convidado para assistir, para tentar fazer uma parceria com o Nico,
com alguém lá dentro, e o Mário Barbará fazia uma participação
especial naquele show. Eu vi o Mário Barbará cantando, eu conhecia
o Mário Barbará só de nome, eu achava inclusive que ele era uma
pessoa mais idosa, e ele era um garotão. Eu vi o Mário cantar e
disse: esse cara tem de ser meu parceiro. Então eu fui procurar o
Mário. Naquela ocasião, eu estava iniciando, eu ia atrás das
pessoas, procurando: cacei o Hermes Aquino, cacei Fulano, Beltrano,
pra mostrar letras... Fui atrás do Mário, e deixei uma porção de
letras com o Mário, entre as quais “Desgarrados”.
Eu
estou contando essa história toda pra dizer que houve momentos em
que nós fizemos música, letra e música, sem a pretensão de ir pra
Califórnia, e houve momentos em que eu fiz letras com a pretensão
de ir pra Califórnia. Nunca me preocupei muito com fazer ou não
fazer. Muitas vezes chegava o momento de inscrição da Califórnia,
e eu procurava aquilo que eu achava mais condizente com o espírito
da Califórnia, e inscrevia, sem me preocupar muito se essas músicas
ou letras fossem muito regionais ou não.
—
O “x” da questão é se tu
achas que limita a criatividade ou não, o letrista que queira seguir
muito à risca o regulamento?
—
Se tu quiseres seguir muito à
risca o regulamento é capaz de limitar mesmo. Eu nunca me senti
limitado, em relação a isto aí. Eu mantive uma certa
independência. Não digo que eu não tenha... não sou assim um
Jerônimo Jardim, que fazia coisas bastante avançadas para a época,
colocava na Califórnia, criava problemas, de repente...
—
Tu não tinhas a pretensão de
quebrar...?
—
Tinha. Talvez não conseguisse,
mas tinha, sempre tive a pretensão de quebrar. Onde eu atuei sempre
tive a pretensão de quebrar. Procurei até fazer alguns
experimentos. Porém, como eu também, volto a dizer, sou um
letrista, fica complicado... Eu posso escrever uma letra eu que eu
tenha uma ideia de quebrar, mas por um motivo ou outro, eu pego um
parceiro que não quebra, e aí eu também não posso fazer milagre.
O Jerônimo faz música e letra. Ele pode fazer isso. Quem faz música
e letra, ele... ou quando se juntam duas pessoas que resolvem
quebrar, tu consegues fazer um trabalho nesse sentido. Agora, quando
tu estás com uma ideia... Eu, desde a época dos festivais, da
grande época dos festivais da Record, eu sempre de uma certa forma
procurei quebrar alguma coisa. Eu nunca foi um arrivista, no
sentido... aquele que quebrava tudo. Mas eu sempre tentei fazer
alguma coisa.
Eu,
num festival de 1969, quando isto ainda não existia na música
popular... eu participei aqui em 1968 ou 1969, num festival da RBS,
que tinha uma tradição de fazer festivais, eu participei com uma
letra minha e música do Paulo Dorfmann, em que eu descrevia uma
transa, um ato sexual. Claro, cheio de metáforas, eufemismos e
coisas... Mas, para as pessoas que perceberam o que eu estava
passando ali, foi um espanto. Porque as pessoas ficaram assim: “Tu
estás tentando dizer realmente isso aí, ou eu estou lendo errado?”
“Não, eu estou dizendo isso aí.” Depois, logo depois dessa
minha letra aí (claro que não tem consequência nenhuma), o Marcos
e o Paulo Sérgio Valle, e outro pessoal lá no Rio de Janeiro,
começaram a fazer letras meio com duplo sentido, em que exploravam
muito a sexualidade.
Bom,
eu também tentei fazer aqui, houve um determinado momento em que eu
pensei que se podia fazer uma letra declamada em cima de uma música.
Então escrevi uma letra, que era quase um poema, mais longo, e pedi
para um amigo meu, César Dorfmann, bolar uma música de tal forma
que aquilo pudesse ser meio cantado e meio interpretado, como se
fosse um jogral. Logo, pouco tempo depois, começaram a surgir
gravações que tinham músicas e as pessoas recitavam. Então houve
tentativas da minha parte de quebrar alguma coisa, de manifestar um
certo inconformismo, mas eu não conseguia ir adiante porque eu tinha
uma limitação.
Na
Califórnia, a minha preocupação nunca foi ser um “gaudério”,
nunca foi ser uma pessoa que mostrasse ou tentasse mostrar aquilo que
não era. Eu não tinha experiência de campo, eu não conhecia a
lide campeira, a não ser de observação, como eu disse, na fazenda,
então eu não tinha essa preocupação. Eu procurava me ater ao
regulamento, quer dizer, como na Califórnia existia uma linha... de
Projeção Folclórica, então eu me enquadrava via de regra na
Projeção Folclórica, onde eu tinha temas mais abertos. Eu usava um
que outro termo, nas minhas letras, gauchesco, mais regional, mas eu
não tinha preocupação de fazer uma letra tipicamente regional.
Tinha preocupação de falar de algum tema regional, o que é bem
diferente. Eu fiz uma letra que se chamava “Mala de Garupa”. E
mala de garupa é um apetrecho bem gaúcho, bem regional. Mas a minha
letra, falando sobre a mala de garupa, ela não tem nenhum termo
regional, mas ela fala exatamente daquele objeto ali. Essa música
participou duma Califórnia, também...
Então,
resumindo esse longo papo: pra mim, nunca um regulamento me cerceou,
ele não me balizou. Eu procurava fazer as coisas da forma como eu
gostava de fazer, sem ter aquela preocupação de atender
rigidamente. Claro, existiam algumas coisas com as quais eu não
concordava, por exemplo: não podia usar termos, palavras
castelhanas, isso constava do regulamento. Não podia ter um
intérprete que não fosse gaúcho. Até houve músicas que foram
desclassificadas por causa disso. Era uma coisa que incomodava porque
eu não via sentido. Não que eu me apresentasse, mas tu não podias
te apresentar que não fosse pilchado. Não podias usar determinado
tipo de instrumentos. Quer dizer, ficava um pouco limitada a
apresentação em si por causa do regulamento, isto sim. Alguns
ousavam um pouquinho, e se quebravam. Isso aí era uma coisa que eu
contestava. Contestei muito isso, lá, em debates, etc. Numa ocasião,
em 82, quando eu concorri com uma seleção de trabalhos que eu acho
que são os melhores com que eu participei da Califórnia (duas
músicas com o Mário Barbará, que foram “Campesina” e “Razões
de Cantar”; e uma música com Jerônimo Jardim, que é “Carreta”),
e nesse momento inclusive a crítica considerou que as minhas letras
foram as melhores da Califórnia, houve manifestações, etc. E em 82
eu fui vaiado. Fui vaiado na Califórnia, quando eu fui agradecer,
porque eu também não concordava...
—
Foi premiada “Campesina”?
—
Foi premiada “Campesina”, em
82, na linha de Projeção Folclórica. Eu tinha ganho com
“Desgarrados” em 81, e em 82 foi a “Campesina”. E eu fui
vaiado porque eu errei na forma de dizer, como eu comecei a minha
frase, e o pessoal entendeu mal de cara, e eu fui vaiado e não pude
continuar. Mas o que eu queria dizer naquele momento, basicamente,
era que eu não via diferença entre a música urbana e a música
regional. E aí a vaia veio abaixo. Eu não via diferença porque, se
uma música regional é boa, se uma música tradicionalista é boa,
de qualidade, tem uma boa letra e um [bom] arranjo, ela não pode
ficar presa num gueto, como se faz até hoje, que a música regional
só toca em determinadas rádios, e ela só toca nessas rádios em
determinados horários. São raros os intérpretes e cantores que
conseguem furar esse bloqueio. E eu queria colocar a minha
manifestação contrária a isso. Queria dizer que não via diferença
entre a música urbana e a música regional, no que se referia à
qualidade. Se a música regional fosse boa, ela obrigatoriamente
deveria tocar no espaço nobre de uma rádio, misturada com um Milton
Nascimento, com uma Gal Costa, até para fazer um paralelo. Se ela é
boa, toque-se junto com outras músicas. Não tem porquê, só porque
ela tem um sotaque acentuado, nós estamos cansados de ouvir sotaques
nordestinos e palavrório nordestino em letras e achamos que isso não
é regional. No entanto, isso é regional. Mas eu comecei assim: “Eu
penso que não existe diferença entre música urbana e regional...”
Bah! veio a plateia abaixo e eu não pude nem continuar. Então eu
contestava essa coisa do fechamento, sabe? Eu acho que a coisa tinha
que ser mais aberta. Eu achava... eu contestava essa coisa assim: tu
podias tocar bombo legüero, porque diziam que era um instrumento
“aculturado”, mas não podias botar teclado no palco. Por que não
podia? Bombo legüero não é um instrumento gaúcho, aliás, não
existe nenhum instrumento gaúcho.
—
Mas nem na categoria “Projeção
Folclórica”?
—
Não. Lá pelas tantas, mais
adiante, se começou a usar o piano, podia fazer gravações com
piano. Tu não podias usar bateria no palco. Só que, por exemplo,
tinha uma contradição enorme. “Os Serranos” estavam se
apresentando no palco da Califórnia, concorrendo na Califórnia, e
não podiam usar bateria. Aí, no dia seguinte, eles estavam fazendo
o baile da Califórnia, e estavam tocando o baile de bateria. Só
podia entrar gente pilchada no baile. Eram “Os Serranos” que
tocavam, mas eles estavam tocando com bateria e baixo elétrico. Era
uma coisa contraditória que eu não concordava. Questionei muito
isso aí. Então às vezes eu fazia uma letra pensando na Califórnia,
é verdade. Mas não era trabalho “dirigido” pra Califórnia. Era
dirigido num sentido, porque eu sabia que havia letras minhas que
absolutamente não passariam pela triagem. Então eu nem me
preocupava em mandar. Eu me preocupava em mandar aquelas que eu
achava que tinham alguma coisa a ver. Porque cada festival tem uma
linha. E é claro que eu penso, particularmente, que se tu vais
participar de qualquer tipo de concurso, um concurso de contos, de
novelas, há um regulamento, e esse regulamento te dá algumas
linhas. Que tu ficas limitado em forma, talvez, mas não no conteúdo.
Tu não limitas tua criação. Agora tem um concurso de “contos de
bom humor”. Então, claro: se é um concurso de contos de bom
humor, eu não vou mandar pra lá um trabalho que não tenha nada de
bom humor, porque é perda de tempo. Não vai adiantar nada. Então
eu vou procurar mandar um trabalho... O resto... Olha, só exigem que
tenha três páginas no máximo. Muito bem: se eu não tiver um conto
de três páginas, de bom humor, se eu tiver um de quatro ou de
cinco, não posso mandar. Não adianta, eu vou mandar e vai ser
anulado.
Então
eu me preocupava com essa coisa assim mais, quer dizer, com a linha
do festival. Pro Musicanto, poderia mandar qualquer tipo de música,
porque não tem problema, é um festival aberto. Pra Moenda, eu posso
mandar qualquer tipo de música, já mandei até samba-enredo pra lá,
porque é um festival aberto. Agora, pra Califórnia, ela tem seus
limites, eu sei. Então, eu mandava trabalhos que mais ou menos
estivessem dentro do espírito, sem me preocupar rigidamente com a
forma. Isso nunca me limitou.
—
Continuas participando ainda
eventualmente de algum festival?
—
Esporadicamente, de todos os
festivais. Eu acho que os festivais perderam o glamour, perderam a
importância, eles se... por um motivo ou outro eles não têm mais
aquela ressonância. Eu me recordo, em 81, quando eu ganhei com
“Desgarrados”, tinha uma polêmica enorme dentro da Califórnia,
e quando eu ganhei, na noite de domingo, a final, segunda feira eu
vim pra Porto Alegre. E na segunda-feira, tanto a Zero Hora quanto —
ainda existia naquele tempo — a Folha da Tarde, já tinham matérias
extensas, discutindo os premiados, essa coisa... Então havia isso
naquele tempo, em que o festival era uma coisa considerável. Eram
transmitidos, a imprensa divulgava. Hoje, os festivais acontecem, e
tu nem sabes que os festivais aconteceram. Não há uma divulgação
pela imprensa, não se sabe nem que festival vai acontecer em tal
final de semana, tu nem sabes quem é que ganhou o festival... parece
que não aconteceu.
Agora
mesmo eu... o Mário tem muita letra minha guardada ainda, daquelas
que a gente vai passando, ele não vai fazendo. E o Mário me ligou
no início do ano, que ele tinha feito, quer dizer, ele me ligou pra
saber se determinada letra ainda estava musicada, não estava, ele
musicou e inscreveu num festival, se não me engano o festival de
Santiago, ou de Rosário, não sei bem. E depois ele me ligou: “Olha,
fomos classificados.” Eu até agora não conheço a música ainda.
Fomos classificados. Absolutamente, não saiu em lugar nenhum na
imprensa, eu não sabia nem quando era o festival, nada. O festival
ocorreu nesse feriadão de 12 de outubro, eu estava viajando, nem
sabia de nada. Quando eu voltei na segunda-feira, de noite o Mário
me ligou: “Olha, tiramos o terceiro lugar no festival.” Então,
veja bem o seguinte, é uma coisa que não bate mais. Eu participei
de um festival, eu não conheço a música, foi o João de Almeida
Neto que cantou, um baita dum intérprete, pessoas que assistiram
acharam até que a música poderia ter tirado uma classificação
melhor... Mas não saiu a relação das músicas classificadas na
imprensa, não saiu nenhuma nota em nenhum jornal dizendo que o
festival se realizaria naquela data, não saiu o resultado do
festival em nenhum jornal. Então, a pergunta é a seguinte: existiu
o festival?
—
Sintoma disso é que a própria
Califórnia esteve ameaçada de não sair, este ano.
—
E o Musicanto não vai sair, esse
ano não sai. E depois também, eu acho que cumpriu-se um ciclo. Eu
participei ativamente de todos esses festivais, onde eu pude
participar, e foram os mais diversos. Eu me preocupava, eu gravava
meu trabalho, eu mandava, eu acompanhava, eu ia até lá, eu
assistia... mas de repente isso ficou cansativo. E eu não via mais
graça no negócio, entende? Aí fui parando, eu comecei a me dedicar
mais à literatura, mesmo, comecei a escrever. Não deixei de fazer
letra. Continuo. Talvez tenha umas 100 letras lá em casa, à
disposição de quem queira fazer a música. Então, quando me pedem,
eu envio, seleciono e envio, dependendo da pessoa que me pede. Aí
ela faz ou não faz, também não tem maiores problemas. Muitos meus
trabalhos estão sendo regravados agora. Há intérpretes que estão
me procurando, buscando músicas que eu tenha, feitas para gravar...
Então eu continuo. Música pra mim é fundamental.
Eu
gosto muito, e gostaria muitíssimo de poder dar um pulo, de poder
sair do Estado, de fazer outras tentativas. Já procurei fazer isso
aí com compositores, com músicos de outros Estados. Então não é
uma coisa assim que eu tenha deixado completamente de mão. Eu
continuo ainda trabalhando nisso. Estou fazendo agora um CD. Eu
peguei assim... vinil não existe mais, né? Então, eu tenho todo
esse material grande em vinil, que não está em CD, nunca vai ser,
porque são faixas esparsas de festivais, isso nunca vai ser colocado
em CD. Muita coisa minha de festival até tem saído, tem sido
remasterizado em antologias, tem saído por aí. Mas tem um lado meu,
de música urbana principalmente, que nunca apareceu muito. Então eu
resolvi selecionar esses trabalhos, remasterizei, estou com a matriz
pronta, e estou em tratativas para fazer um CD pra mim, como resgate
de memória. Pra ter um material, pra passar pra alguém: “Olha,
isso aqui, tal e coisa...” E pretendo, pro ano que vem, começar a
trabalhar num disco de música regional, também dessas coisas que
estão gravadas, pra resgatar isso aí como memória, não como...
não tenho objetivo comercial, é mais uma coisa pra deixar.
Então,
eu continuo me envolvendo, continuam meus parceiros se inscrevendo em
festivais, passa ou não passa... Tem o “Status” com quem eu fiz
muita coisa, voltou a trabalhar, pediu letra, fizemos vários
trabalhos agora, ultimamente. Então eu continuo ainda trabalhando
nisso aí, mas assim, muito light. Porque meu objetivo é outro, já
não é isso aí.
Ah,
eu acho que tem uma coisa interessante, já que tu falaste em
cerceamento pelo regulamento. Uma ocasião eu tive uma letra minha
censurada na Califórnia. E no Musicanto também, parece mentira. Na
Califórnia, foi uma música com o Mário Barbará, uma letra em que
eu falava de prostituição, uma das quadras fazia um comparativo
entre uma sinhazinha na fazenda e uma prostituta. A música foi
classificada, e os caras me ligaram de lá, se eu podia suprimir
aquilo ali, ou mudar, ou qualquer coisa. E eu ponderei que não, que
eu não gostaria de mudar, fiz um arrazoado do porquê daquilo ali, o
que eu tinha colocado não era nada ofensivo, era uma coisa muito
light. Tá, não houve problema, a música foi apresentada daquela
forma, sem problema nenhum.
E
lá no Musicanto, eu tinha uma letra em que eu estava falando...
porque eu morei muito tempo em Santa Rosa, praticamente me criei em
Santa Rosa, minha família morava lá. Então eu fiz uma letra em que
eu colocava minha vivência lá em Santa Rosa, algumas lembranças
lá. E eu colocava, lá pelas tantas da letra, que “a primeira
coca-cola”, parafraseando a coca-cola da Panair, do Milton
Nascimento e Fernando Brant, “a primeira coca-cola foi na Praça da
Bandeira”, que é a praça lá. E os caras não gostaram que a
primeira coca-cola fosse lá, tive que trocar para “o primeiro
mate”. Tipo de coisa, assim, que é uma coisa muito pobre, acho.
Mas houve. Não sei se isso aconteceu com outras pessoas, nunca tive
conhecimento, mas houve isso aí.
—
Foi proposto como condição para
tua participação que alterasses a letra?
—
Não, não. A música tinha sido
classificada. Só que eles achavam que não pegava bem, falar em
coca-cola, quem sabe botava um mate, chimarrão... Uma coisa assim
que não tem porquê. Primeiro porque eu nunca tomei meu primeiro
chimarrão naquela praça, e nem tomo chimarrão, a não ser
eventualmente quando me oferecem. Não tenho o hábito. Então,
jamais eu poderia colocar “o primeiro chimarrão na Praça da
Bandeira” porque não era. E realmente a primeira coca-cola foi lá
na praça, quando eu morava lá e era guri. Isso só para fazer uma
referência. Então, tem dessas coisas em festival.
E
não se pense que é em festival aqui do Rio Grande do Sul. Isso
existe em festival nacional também. Uma ocasião, num festival em
que eu participei, não foi comigo isso aí, foi... aquele último
festival da Rede Globo, que ganhou a Tetê Espíndola... Globo-Shell,
uma coisa assim.
—
Ganhou com “Escrito nas
Estrelas”.
—
Exatamente. Eu estava
participando com uma música, com o Canto Livre, e eu me recordo que
o Vítor Ramil também tinha se inscrito, e o Vítor Ramil é um
compositor, ou naquela ocasião pelo menos ele ainda era um
compositor bastante hermético. Inclusive bastante experimental. E
ele foi solicitado... eles gostaram muito do trabalho dele, mas
pediram para o Vítor mandar uma música mais... “aberta”,
digamos assim, pra poder participar do festival. E o Vítor não
concordou em fazer, e não participou do festival. Então tem essas
coisas, por detrás, que não aparecem, mas existem, nesses festivais
da vida.
Fonte:
Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da
Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em
Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.
Acesso
em 22/06/2017