domingo, 24 de junho de 2018

A’ MARGEM DO REGIONALISMO – JOÃO PINTO DA SILVA¹


O nosso regionalismo é fértil em conteurs e paizagistas. Seus reflectores fócam os assumptos, parcel’.adamente, por zonas, em episodios avulsos e fragmentarios. Ha situações e typos que se repetem, com frequencia. Pouco differem, de um livro a outro livro, os scenarios, a mise-en-scéne. E’ indisfarçavel, por isso mesmo, a monotonia que, ás vezes, de muitas de suas melhores paginas se evola.
Esse perpassar de identicos truques, em torno de personagens que quasi nada variam, dá, afinal, a impressão falsa de que o Rio Grande é pobre de aspectos physicos e moraes. Falta-nos, em verdade, um romance, uma novella, pelo menos, que apanhe, por exemplo, no seu raio de acção, mediante opportuna série de paineis retrospectivos, as varias faces da evolução da nossa vida rural, a physionomia typica do periodo de transição que atravessamos, iniciado logo após a revolução de 1893.
A fixação esthetica, - indirecta, portanto, - deste instante historico especial, de tão radicaes transformações, mostrar-nos-ia não gaúchos mais ou menos phantasmaticos e sim homens vivos, criaturas que a civilização mechanica tentou eliminar ou pôr á margem, sem o conseguir; porque o gaúcho se converteu, graças a um phenomeno surprehendente de plasticidade mental, em instrumento dynamico de progresso.
Certos autores, daqui e do Prata, descrevem o gaúcho á semelhança de materia inorganica, inassimilavel. E’ um erro, oriundo da contemplação excessiva do passado. Contra isso impõe-se um movimento de reacção. Há os inadaptaveis, certamente, mas esses são diminuta minoria.
O que o homem dos nossos campos, tanto o estancieiro quanto o mais humilde trabalhador rural, offerece de impressionante a qualquer observador meticuloso, é justamente a sua capacidade de renovação, a presteza da sua activa e intelligente adaptação ás exigencias novas da vida.
Poucas industrias já soffreram, aqui, tão largas modificações como a pastoril. Sob a suggestão do exemplo de dois ou tres extrangeiros corajosos, fizeram-se os gaúchos, elles proprios, sem relutancia, orgãos propulsores da implantação de todos os methodos modernos de criação e pastoreio.
Affeitos á evocação do gaúcho anterior á estrada de ferro, ao Ford e á introducção do Hereford e do Durban, para a cruza dos rebanhos creoulos, não comprehendemos, por via de regra, a mutação. E só vislumbramos destroços, precisamente onde se forjam e articulam os materiaes do nosso rejuvenescimento.
O homem que alguns dos nossos regionalistas surprehendem, decepcionados, no interior, a guiar, com pericia, um automovel, a marcar o gado com o auxilio do bréte, a estabular reproductores de puro sangue, a expedir novilhos, tranquillamente, em vagões ferro-viarios, para as xarqueadas e os frigorificos, está por certo bem longe do typo lendario que a imaginação delles, imaginação poetica e, em geral, livresca, idealizava.
Póde não ser o seu gaúcho, mas é o gaúcho, com as linhas psychologicas raciaes intactas.
Não é o xiripá, não é a indumentaria o essencial á sua caracterização, como o não é, tampouco, o modo exterior de se conduzir na vida, que perdeu em theatralidade o que ganhou em efficiencia.
Vestido á européa, a pé ou a cavallo; derrubando touros ou extendendo aramados; ouvindo as operas do Colon, de Buenos Aires, por intermedio do radio, em vez da ancestral cordiona, o que dá physionomia historica ao gaúcho, o seu vinco de differenciação, em summa, é a franqueza, nas attitudes e nas palavras; o narcisismo; a bravura quichotesca; a instantaneidade impulsiva das resoluções; a vehemente vocação cívica; a altaneria; o bom humor, mesclado a irreprimiveis explosões sentimentaes e fatalistas.
Taes virtudes e defeitos constituem o fundo permanente, immutavel, do seu caracter. Por isso, não variam com as condições materiaes, ou moraes, de vida. Exprimem uma postura ideal e typica de alma. São os traços distinctivos da estirpe.
Esses defeitos e virtudes identificam, soldam, espiritualmente atraves do tempo, o gaúcho de hontem ao de hoje.
Acóde-me, a proposito, á lembrança, o caso de Frederico de Ahumada, o Zogoibi, do admiravel romance do sr. Enrique Larreta. E’ um gaúcho europeizado, quasi deslocado no pago, depois das suas viagens e aventuras. No entanto, por debaixo daquelle verniz parisiense, o que lateja são as qualidades positivas e negativas da raça, o instincto especifico da grei.
Confrontemol-o, por exemplo, com o D. Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes. Fica este, por certo, muito mais proximo, apparentemente, das nossas fontes originarias. E’ um ser quasi primitivo, na sua vivacidade elementar, agitando-se num ambiente agreste.
Será um neto de Martin Fierro? não o será, antes, de Viscacha?
Talvez de ambos...
Examinem-se-lhe detidamente, entretanto, os actos e as intenções. Ver-se-á, no intimo, que é um typo convencional. Nada obstante as exterioridades circumstanciaes e as preocupações symbolicas, é bem menos expressivo do Pampa do que o heróe semi-desenraizado de Zogoibi.
Não é um gaúcho, rigorosamente, mas um moujik.
Acompanhae-o nas suas sentenças e attitudes, no mysterio das suas origens e propositos. No fundo, é mystico e melancholico. E’ uma personagem de Gorki, extraviada no Pampa.
Vêde! E’ Konovalov a cavallo...
¹ Grafia original.
Fonte: O Rio Grande do Sul em Revista, p. 115. OF. GRAF. DA LIVRARIA DO GLOBO. Porto Alegre: 1930.

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Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

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