O desejo procura a queda porque ela é o impulso que temos para ser diferente de nós mesmos, diferente do que fomos até agora. Talvez seja por isso que entramos em relação
Vladimir Safatle
Eu sempre quis começar um texto perguntando-me por que livros de ética
normalmente são tão ruins. Não falo apenas dos livros para grande
público, normalmente repletos de descrições edificantes sobre virtudes
que parecem feitas para animar palestras motivacionais de grandes
empresas ou exortações morais que dificilmente escondem seu tom
claramente redutor. Como se houvesse algo da ordem de palavras
encantatórias que quanto mais repetidas mais teriam o dom de simplificar a existência e seus caminhos. Mesmo quando tais livros começam com um tom de ruptura e de rebeldia, é apenas para chegar a alguma digressão mágica sobre felicidade
ou algum produto congênere da mesma família. Melhor seria se eles
começassem por se perguntar por que a felicidade tornou-se
historicamente, ao mesmo tempo, impossível e imoral para nós; por que
ela deve começar por ser recusada se quisermos ainda permanecer fiel a
seu impulso inicial. Parafraseando Kafka, dizer que há felicidade, mas
não para nós, seria uma maneira de começar por lembrar que a verdadeira
decisão ética aqui consiste em recusar qualquer compromisso com a
permanência de uma situação histórica fundada na infelicidade de muitos.
Mas, se voltarmos os olhos aos livros que circulam no mundo acadêmico na
área que chamamos normalmente de “filosofia moral”, encontraremos uma
terra devastada não muito distinta. Difícil não perceber como eles estão
entre os mais esquemáticos. Alguém deveria começar por lembrar que não
se fala de posições éticas sem definir as fronteiras de suas limitações
históricas. Como se fosse possível falar de virtudes da mesma forma que
Aristóteles, quando nem sequer fazia sentido a distinção entre as
virtudes do cidadão (porque se trata de um problema de homens) e as
virtudes privadas, já que o horizonte social de fundamentação da vida
ética não era passível de questionamento. Ou melhor, só era questionado
como ruína e catástrofe nos momentos mais dilacerantes do teatro, como vemos por exemplo em Antígona, de Sófocles.
Mas poderíamos continuar este estranhamento em relação ao
apagamento da situação histórica de enunciação nos perguntando sobre o
erro de falar de dever como na época de Kant,
quando a crença na forma procedural e universalizante do julgamento
ético podia ainda aparecer como um ganho de racionalidade em relação à
vinculação local dos costumes e tradições, quando a exortação a agir por
amor ao dever podia ainda ser um contraponto à consolidação da redução
de nossas motivações para a ação ao quadro calculador da maximização dos
interesses individuais. Não perceber que a história dessa crença na
universalização foi também a história de uma desafecção catastrófica em
relação a contextos, de uma abstração que trazia no seu bojo as marcas
das piores violências seria, mais uma vez, tomar a filosofia pela arte
da descrição de estrelas imaginárias, ou seja, descrição de entidades
aparentemente imutáveis que existem apenas nos olhos de quem as
descreve.
No fundo, todas essas estratégias, e elas são
múltiplas, partilham ao menos um erro fundamental: o erro de acreditar
que uma reflexão sobre ética seria a melhor forma de alimentar nosso
desejo de invulnerabilidade e de inviolabilidade. A ética como uma
forma, talvez a mais astuta, deste estranho desejo humano de
inviolabilidade. Pois se soubéssemos nos orientar de forma segura na
dimensão moral seríamos invioláveis, andaríamos em um solo firme, mesmo
se nossas certezas morais produzissem continuamente equívocos e
fracassos. Ou seja, a ética como a versão secularizada da procura por
uma segurança ontológica. Por trás de suas questões do tipo “como quero
ser?” ou "o que devo fazer?” haveria sempre este desejo por um último
amparo, pela crença de que nada nos retirará do domínio de nós mesmos.
Que este desejo esteja dirigido ao nosso vínculo aos deuses ou a nossa
pretensa capacidade de julgar e avaliar nossas próprias ações e as ações
de outros, isto não muda um dado fundamental, a saber, haveria uma
segurança ontológica a me guiar. Nietzsche costumava dizer que nunca nos
desvencilharemos de deus enquanto acreditarmos na gramática. Ele tinha
razão, e poderíamos ainda acrescentar que nunca nos desvencilharemos de
deus enquanto desejarmos nossa invulnerabilidade. E nós sabemos o quanto
nossas regressões sociais periódicas estão vinculadas às formas do
desejo de imunidade, do estar em possessão de si mesmo, do pertencer a
si mesmo, do destruir tudo que me retire de tal possessão de si mesmo.
Por isso, talvez a única posição ética à altura de nosso
tempo deveria partir da procura em assumir uma insegurança ontológica
fundamental. Nesse sentido, poderíamos mesmo dizer que a ética tornou-se
para nós um aprendizado sobre como cair e como se quebrar. Há certos
momentos em que fica claro como o mais importante é saber como cair,
como se quebrar. Pois fomos feitos para nos quebrarmos.
Em uma de suas raras declarações sobre educação (que ele julgava uma tarefa impossível), Sigmund Freud
afirmava que toda educação estava fadada ao fracasso porque ela partia
do aprendizado da norma, das situações ideais, dos princípios. Mas um
princípio é o que é, ou seja, apenas algo que aparece no princípio,
nunca um resultado. Melhor seria, dizia Freud, se ensinássemos as
situações concretas e essas, bem, essas mostram coisas muito diferentes.
Melhor seria se nos disséssemos desde o início: “prepare-se porque um
dia você irá se quebrar, você irá se trair”. Você irá se deparar com
aquilo que não se submete ao seu controle, aquilo que o tira da
jurisdição de si mesmo, aquilo que o desfaz em suas identidades, aquilo
que desorienta a ação e o julgamento.
Nessas horas, faz
toda a diferença saber como cair, como cair de outra forma. Não com a
expectativa de restaurar o sentimento de estar intacto, não com esta
fúria projetiva que procura jogar para outros a causa de nossas quedas,
não com esse desejo mórbido de esconder nossa vulnerabilidade pregando o
evangelho da culpabilidade e da punição para os que se afogaram. Mas
cair com a solidariedade com os que caíram e cairão, com a consciência
da falibilidade de nossa ações e da violência de nossos trajetos. Cair
perguntando-se por que se quis cair, o que quis de fato realizar, mesmo
que de maneira desesperada. Isso poderia mudar de forma significativa
nossa forma de relação a si e ao outro.
As quebras são nosso destino porque somos seres em relação.
Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos
com tempos distintos, ritmos distintos, desenvolvimentos idem. Corpos
que nos atravessam. Há uma relação fundamental entre desejo e queda, mas
não devido à ladainha cristã da culpa por desejar o que não se deveria
desejar. A melhor maneira de nos livrarmos dessa teologia travestida de
psicologia moral é ressignificando todos os seus significantes. O desejo
procura a queda porque ela é o impulso que temos para ser diferente de
nós mesmos, diferente do que fomos até agora. Talvez seja por isso que
entramos em relação.
Mas isso é indissociável da
descoberta de uma violência imanente às relações, uma violência
seguramente inextirpável. Só mesmo uma ilusão liberal para acreditar que
a diferença vem sob a forma pacificada da tolerância, e não sob a forma
agonística da explosão. Menos Locke e mais Francis Bacon
(o pintor, não o filósofo) seria útil. Nesse sentido, um erro
contemporâneo clássico consiste em tentar reduzir à figura da opressão
todas as formas de violência imanente às relações. Quando conseguirmos
eliminar as relações de opressão (e nós um dia conseguiremos), ainda
restarão essas violências que nos quebram quando estamos em relação. Mas
estamos em relação desde o início e até o fim. Talvez uma verdadeira
reflexão ética deveria partir disso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário