domingo, 9 de janeiro de 2022

Meu Tio Zé - Paulo Vieira

 Meu Tio Zé - marido de Tia Vera- morreu. Vim no velório e, pra não ficar só chorando, trago a cobertura.


Primeira treta: Tio Vardo quer colocar uma garrafa de pinga dentro do caixão: - Nós combinamos um dia que quem ficasse vivo ia botar uma garrafa de pinga no caixão do outro! - Mas ele virou crente depois, Tio! -PROMESSA É PROMESSA! EU VOU BOTAR!!! confusão. viúva passa mal.


ERA CRENTE MAIS NÃO SEGUIA, ASSIM DIREITO NÃO! BEBI COM ELE ESSES DIAS! ERA UM CRENTE MUITO DO SAFADO!” visitantes chocados que minha família fala mal do morto na cara do morto mas o argumento foi bom resultado: tá lá a garrafa de pinga. vai com ele


Agora eu fico pensando no meu tio chegando no céu, BEM CRENTE QUE É CRENTE, e Deus fala: - E essa garrafa de pinga aí? Meu tio - QUÊ?! NÃO É MINHA! BOTARAM NA MINHA BOLSA PRA ME INCRIMINAR! É tipo botar um 38 escondido na mala de quem vai passar no raio X


Eu vim, atendendo a todas as expectativas da minha família, bem famoso, bem de preto, casaco e óculos. Minhas primas tão tudo de SHORTÍNEO jeans e rasteirinha. o look de churras e velório é o mesmo aqui em casa. Amo.


Num raro silêncio, o telefone do meu primo tocou. Era o chefe dele. Atendeu bem solene: - Ô seu Clovis, eu tô aqui no velório do meu pai… imediatamente toda família começou a gritar Ô MENTIRA, TAMO AQUI BEBENDO CERVEJA! PARA DE MENTIR E CHAMA ELE PRA COMER CARNE ASSADA!


Vovó chegou com a perna nova e ENZO, meu primo demônio, tá dando birra porque quer botar a perna da minha vó nele.

Tô escrevendo esse fio pro meu irmão @ze_vitorio que não conseguiu vir. Esse fio é tudo que a gente ia tá comentando nos canto.


Fim do café. Vou lá velar, chorar e falar “quem fica é quem sofre”. próximo café eu volto.


Minha vó: “QUANDO EU MORRER EU QUERO QUE MEU CAIXÃO RODE A CIDADE TODA TOCANDO DI PAULLO E PAULINO”


ENZO dependurou no caixão. Minhas primas foram reclamar com a minha prima mãe do ENZO. No mesmo prazo, as crianças dessas mães que foram reclamar do ENZO derrubaram as coroas de flores brincando de pique-pega. MÓ BARULHÃO


Rolou um feirão da surra própria onde umas quatro mães se revezaram pra bater numas 25 crianças. Foi a única hora que as crianças se emocionaram. MEU DEUS COMO TEM CRIANÇA NESSA FAMÍLIA!


Rolou um almoção. Eu não como em velório (pq tenho nojo), mas meu primo comeu praticamente em cima do caixão então pude ver o cardápio: ARROZ FEIJÃO FRANGO DE MOLHO E MACARRÃO GROSSO (SABE AQUELE DA GROSSURA DE UM CANUDO DO BOBS? É O BRABO!)


deu problema pq minha prima Flaviana chegou só 2H da tarde, bem de óculos, bem arrumada, bem banhada, bem fresquinha, bem contrastando com todas as outras primas suadas e destruídas pelo sofrimento; Chegou cheirosa, olhou pra cara de todas e disse “UAI, NINGUÉM FEZ ALMOÇO?”


Eu já vi muita gente chegar fazendo inimizade, mas assim, com TODO MUNDO AO MESMO TEMPO NA PRIMEIRA FRASE é só pra grandes gênios do caos como minha prima Flaviana! No candy crush da inimizade, ela na primeira jogada explodiu toda doçura da família e ouviu DELICIOOOOOOUS


FLAVIANA CONSTRUIU A CASA DELA EM CIMA DE UM CEMITÉRIO INDÍGENA E NUNCA MAIS TEVE PAZ! Só se falava nela, só se apontava pra ela. - se for pensar bem, ela quem matou titio de raiva! (uma prima mais raivosa tentou emplacar essa fakenews)


MARGINALIZADA, DESAPLAUDIDA, FLOPADA… VIROU O CAIM BRASILEIRO COM A MARCA MALDITA. Tava todo mundo chorando, se Flaviana chorava todo mundo parava de chorar pra julgar: “Ó QUE BIXA FALSA! SE GOSTASSE ASSIM DO ZÉ TINHA VINDO DE MADRUGADA E NÃO 2 DA TARDE…ATRÁS DE ALMOÇO….”


MOMENTO CLÁSSICO NO INTERIOR: O carro de som (o mesmo da pamonha) sai pelo bairro anunciando o velório, o que traz um monte de desconhecido falando “VI O ANÚNCIO E VIM VER SE EU CONHECIA”… - Ele morou aqui mesmo? - Muitos anos. Ficava muito naquele bar alí - é… CONHEÇO NÃO


Chegou um senhor meio ofegante. Era bem velho, esguio, tava soado e com a calça suja de terra pra dentro das botas. Parecia ter largado a inchada no chão e corrido pra lá. Tirou o chapéu e botou no rumo do peito. Fui receber: - O senhor conheceu? - Era meu melhor amigo.


Esse senhor me quebrou demais pq se tem uma coisa que é importante pra mim é isso. Fiquei pensando nos meus amigos enquanto ele falava do tio que eu não conhecia: “quando a gente era solteiro…” “aí quando ele conheceu a Vera nóis fez a primeira casa que ele morou”


aí o mais velho dele nasceu e eu fiquei no bar na porta do hospital esperando. Ele me xingou tudim pq eu não entro em hospital nem…” “ele chegou e falou ‘compadre, vou mudar pro tocantins’ e eu disse se vai ser melhor então vai” “ele toda vez que vinha batia lá na chácara”


gostava de uma jurubeba lerda! ia lá em casa e cabava com um vidro só numa sentada” “falou que quando sarasse ia lá em casa tomar uma” “veio se tratar e eu fui lá no hospital ver ele, quando eu entrei no quarto ele chorou até. Eu chorei também que é muitos ano de amizade”


e aquele homem podia montar sozinho o quebra-cabeça da vida do meu tio Zé... confirmei: A AMIZADE É O MAIOR DE TODOS OS SENTIMENTOS.


Era dia de reis. Meu tio era palhaço de folia de Reis. Inclusive é a primeira lembrança que eu tenho dele: Rezando atrás da casa antes de botar a máscara. Este senhor com quem eu conversava era a dupla dele na folia. Ou como ele chamou: Na irmandade.

Mesmo crente convertido, meu Tio nunca largou a folia de reis (Tio Vardo tinha razão), o amigo tirou de uma sacola a bandeira da folia e estendeu no caixão.


Teve quem foi perguntar pra tia Vera se não era falta de respeito, ela sempre sábia: “JÁ TEM PINGA NO CAIXÃO… NÃO VAI SER SANTOS REIS PIOR QUE UMA PINGA, DEIXA BOTAR”


Estávamos lá ouvindo o barulho da chuva “chiiiiiiiiiiii” quando ele começou a se ritmar “chi chi chi// chi chi chi” o som que faz quando um cabo de vassoura com tampinha de cerveja amassada na ponta bate no chão e entrou um tambor uma sanfona viola e palhaços a folia


só um palhaço de folia de Reis poderia ter um funeral tão nobre no melhor sentido da palavra nobre não nobre como ouro nobre como abraço de amigo não nobre como talheres de prata nobre como as flores de chita na bandeira do divino nobre como um aboio nobre de verdade


Enquanto via o salão comunitário e o caixão da prefeitura se transformarem, respectivamente, na capela sistina e na cama de um rei; Olhei pros meus parentes e pensei: Nessa família falta muita coisa, mas sempre sobra alimento pra minha alma.


Obrigado por sua existência, Tio


Fonte: Twitter @PauloVieiraReal 06 jan 2022

Acesso 09/01/2022

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