terça-feira, 15 de março de 2022

Cinco horas no Castelo (Diário de Cecília, 1927)

 

Segunda-feira, 26 de setembro


Choveu e trovejou toda a noite. Dormi mal, com medo que o Seu Chico Macedo não viesse por causa da chuva. Mas o coitado, sempre fiel, veio às seis menos um quatro.


Eu estava pronta, de chapéu e luvas.


Na estação, o Seu Chico Macedo comprou os jornais. Lemos o programa do Partido Democrático Nacional, o discurso do Papai sobre esse programa e a circular do Borges, apresentando os nomes do Getúlio Vargas e do João Neves da Fontoura, para futuros presidente e vice-presidente do Rio Grande do Sul.


Nas estações por onde passávamos o povo caía em cima do vendedor de jornais do trem.


O tempo se manteve encoberto e de vez em quando chuviscava. Mesmo assim estavam lindos aqueles campos.


Quando subíamos a rampa de Pedras Altas havia uma cerração tão fechada como no dia em que o Chimango passou para inaugurar o marco de Aceguá.


Esperavam-nos na porteira a Vitalina e um filho do Faustino Pinto, com um auto pintado de encarnado.


A cerca de lídias que havia na entrada não existe mais, senão um pequeno trecho do lado das oliveiras. Foi substituída por horrível cerca de arame farpado.


Os pinheiros da pista estão magníficos. Agora cobrem com seus galhos todo o caminho, formando um túnel verde, meio escuro em alguns lugares.


Ao entrar no jardim estranhei ver árvores que de tão altas escondem a casa.


O pé de cânfora, que deixei como arbusto, está uma linda árvore, de uns cinco metros.


A laranjeira da entrada apresentava-se coberta de flores.


Os “cupressus lambertiana” estão mais altos que a sotéia da sala de música.


Começou a chover, tive de entrar em casa.


A nossa porta está cheia de inscrições de admiradores do Papai. Há também a assinatura do comandante do 17º Corpo Auxiliar da Brigada Militar, com a data da ocupação pelas forças governistas.


Encontramos o pobre hall muito feio, com as cadeiras alinhadas só de um lado e a mesa coberta com estopa.


O piano ficou russo, com o verniz todo rachado, nem parece de madeira, está com aspecto enferrujado.


Vi a janela do hall que os chimangos arrombaram. Quebraram quatro vidros e arrebentaram a trava de aço com uma alavanca. Também via a cadeira de couro que eles cortaram. Andei em todos os quartos, por toda parte há vestígios dos chimangos.


Não há uma gaveta em que não tenha mexido.


No quarto da Maninha e Carolina a Vitalina mostrou as camas e disse:


Era aqui que os tenentes da Brigada dormiam”.


Fiquei mais triste quando vi o meu quarto, tão remexido, não encontrando uma porção de quadrinhos e outros tarecos de estimação que eu tanto queria.


O álbum de figurinhas que eu colecionava desde que ganhei a Graflex estava com os retratos descolados e arrancados. Que destino terão levado meus pobres retratinhos?


Havia fotografias do dr. Osório e do Capistrano, gente que nunca mais poderei substituir.


O Papai tem razão quando diz que Pedras Altas é um templo profanado.


A minha escrivaninha, que deixara cheia de papéis, está quase vazia. Levaram até os palitos feitos pelo Papai, que eu juntava.


A chiffonière da Mamãe foi arrombada, com o emprego de alavanca.


Também no escritório do Papai tudo remexeram. Quebraram o vidro do retrato do Mitre.


Achei nossa bandeira no armário das armas, como um trapo amarrotado.


Estava junto com uma bandeira inteiramente encarnada (que eu nem sabia que existia), da qual cortaram pedaços e amarraram nos candelabros, em cima da lareira. Dobrei a nossa bandeira e guardei-a numa gaveta, com o retrato do Mitre.


Não tive tempo de ir à biblioteca, porque volta e meia chegavam visitas, que não me largavam um momento.


As cinco horas que passamos em Pedras Altas voaram. Retornamos a Bagé pelo trem da tarde.


Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p.159/160/161.




Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.

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