domingo, 7 de abril de 2024

‘Algumas’ notas do subsolo de Dostoiévski

 (…) é no desespero que acontecem os prazeres mais intensos, especialmente quando você já percebe muito fortemente que sua situação não tem saída.

(…) o produto direto, imediato e legítimo da consciência é a inércia, isto é, o ficar-sentado-de-braços-cruzados conscientemente.

(…) todos os indivíduos e homens de ação diretos são ativos precisamente porque são obtusos e limitados. Como isso se explica? Da seguinte maneira: em consequência de sua tacanhez, tomam os motivos mais próximos e secundários como se fossem os motivos originais e, assim, eles se convencem mais rápida e facilmente do que as outras pessoas de que encontraram um fundamento irrefutável para a sua causa, e então ficam tranquilos. Isso é o mais importante. Pois, para se começar a agir, é preciso que antes se esteja completamente calmo e totalmente livre de dúvidas. E como eu, por exemplo, me tranquilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nas quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental, e, em consequência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí afora, até o infinito. Essa é precisamente a essência de toda consciência e reflexão. Portanto, novamente já estamos falando das leis da natureza. E, finalmente, qual é o resultado? O mesmo, ora. Lembrem-se: há pouco falei sobre a vingança (os senhores, na certa, não se aprofundaram no assunto). O que eu disse foi: o homem se vinga porque acha que está fazendo justiça.

(…) em toda minha vida nada consegui começar nem terminar. Está bem, está bem. Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho, como todos nós. Mas que se há de fazer se o único e evidente destino de todo homem inteligente é tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?

Penso até que a melhor definição para o homem é: um ser bípede e ingrato. Mas isso ainda não é tudo, esse não é o seu pior defeito: seu defeito mais grave é sua constante má conduta. Sim, constante, desde o dilúvio universal até o período schleswig-holsteiniano dos destinos da humanidade. A má conduta e, por consequência, a falta de bom senso (…)

Em suma, tudo se pode dizer da história universal, tudo que possa ocorrer à imaginação mais perturbada. Só uma coisa não se pode dizer: que ela seja sensata. Os senhores engasgariam na primeira palavra. E vejam até o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas tão corretas e sensatas, tão sábias e amantes do gênero humano que assumem como seu objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possível para, por assim dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que é possível de fato viver neste mundo de maneira correta e sensata. E daí? Sabe-se que muitos desses amantes do gênero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns já no fim da vida, traíram a si mesmos, dando margem a anedotas, algumas até bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de características tão estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que há na Terra, mergulhem-no de cabeça na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam à superfície; deem-lhe tal bem-estar econômico, de modo que não lhe reste nada mais a fazer, além de dormir, comer (…)

Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós… eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a bater com os pés (…)

Redução Jesuítica de São Nicolau

Fonte: Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881. Notas do subsolo (recurso eletrônico); tradução do russo de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. Recurso digital – Coleção L&PM POCKET v. 670.



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