As últimas viagens de trem
Dos pampas gaúchos ao Pantanal de Mato Grosso, passando pelas alturas de Minas Gerais, eles ainda circulam sua imponência. Mas estão acabando
Reportagem de Henrique Koifman
Fotos de Armando França
São 22h25min. Na plataforma da estação Diretor Pestana, em Porto Alegre, o movimento é caótico. Carregadas de malas e agasalhos, dezenas de pessoas embarcam na grande composição azul e branca. Nas portas dos carros, os agentes de trem, impecavelmente uniformizados, conferem as passagens e indicam os lugares dos passageiros. Exatamente às 22h30min, Agenor de Oliveira Fernandes, 58 anos, chefe do trem, leva seu apito à boca e sinaliza com uma lanterna em direção à locomotiva. Ouve-se uma grave buzina. Já com os pés nos degraus do carro bagageiro, seu Agenor torna a sinalizar. Após mais uma grave e ressonante resposta, lentamente, o trem começa a se deslocar. Muitos acenam da plataforma. Ganhando velocidade, a composição mergulha na noite. É uma das últimas representantes de uma era – a era do trem de passageiros no Brasil. MANCHETE percorreu mais de 6.000 km de trilhos, neste e em outros 11 trens da RFFSA, em regiões tão diferentes como a Serra do Mar e o Pantanal. Com exceção das linhas turísticas, a tendência é de que estas viagens, em mais alguns anos, deixem de existir – vitimadas por seus altos custos operacionais, crise econômica e saturação da malha ferroviária, preferencialmente destinada à carga. Enquanto isso não acontece, tome seu lugar e embarque com a gente.
NO PARANÁ, UMA VIAGEM ECOLÓGICA AO PARAÍSO DA MATA ATLÂNTICA
Inaugurada em 1885, a ligação ferroviária de Curitiba a Paranaguá impressiona por sua beleza. O trabalho da comissária Sueli é servir lanche aos turistas. Seu colega, Gilberto Leal, maquinista, prefere a litorina aos trens de carga. “É bem mais confortável.”
NO SUL, TRENS CONVENCIONAIS E TURÍSTICOS CORTAM O PAMPA E A SERRA
Poucos minutos após deixar Diretor Pestana, o trem prefixo RPA-01 para na pequena estação de Canoas, Rio Grande do Sul. Esta será a rotina de toda a viagem até Santa Maria. Paradas de menos de um minuto em dezenas de localidades. Nomes como Fanfa, Pederneiras, Estiva e Arroio do Só aparecerão pintados em grandes placas amarelas, onde também figuram a posição quilométrica e a altitude da estação. Nesses lugares, com a temperatura oscilando entre 12º e 15º em maio, sonolentos e agasalhados em seus ponchos, os gaúchos sobem no trem para, agrupados dentro dos carros, tomar seu chimarrão fumegante e conversar. Durante o dia, as famílias se reúnem, tomam o mate e comem charque com farinha. Os de mais posses dirigem-se ao carro-restaurante, onde é servido o prato comercial – bife a cavalo, batata frita, feijão, arroz e salada.
Ao amanhecer, o trem já está em Santa Maria, ponto de partida para as linhas de Livramento (fronteira com o Uruguai) e Uruguaiana (fronteira com a Argentina), cada uma delas servida três vezes por semana, alternadamente, por estes noturnos. Em ambas as direções, a paisagem se assemelha bastante. As imensas pradarias do pampa gaúcho, povoadas por rebanhos de gado e de ovelhas, emas, gaviões, chupins – pequenos pássaros pretos que, em bando, pontilham as plantações – e até mesmo lebres são a constante. De vez em quando, bosques replantados de eucaliptos quebram a continuidade do relevo.
Andando de carro em carro para conferir os bilhetes, Francisco Roli Cunha, 52 anos, há 32 trabalhando nos trens do Sul – que quando ele começou ainda pertenciam à extinta VFRGS (Viação Férrea Rio-Grandense), e seus dois agentes, Walternai Pereira e José Dornelles são bem rigorosos. “Sempre aparece alguém querendo viajar de graça”, diz Seu Francisco. “Já apareceu até foragido armado, escondido pela composição. De um modo geral, nós conseguimos resolver tudo na base da conversa.”
Quando alguém é descoberto sem o bilhete, tem duas opções: pagar o valor da passagem ao agente, acrescido de uma multa de 25% do valor normal, ou descer na parada mais próxima, e resolver o caso com o chefe da estação e com a polícia. “Por via das dúvidas, o chefe de trem sempre carrega um revólver” – diz o agente, apontando para um 38 na cintura. “Afinal, nunca se sabe”.
Já em Bento Gonçalves, capital italiana do vinho gaúcho, todos os domingos animados grupos de turistas embarcam em uma composição ainda mais tradicional. Uma locomotiva Mikado, fabricada nos EUA em 1941, puxa, com a força de seu vapor, quatro carros de madeira, descendo a serra até Jaboticaba. São 48 km, percorridos em 2h45min, atravessando grandes vinhas, túneis e pontes. Um grupo folclórico anima o passeio com danças e músicas típicas.
Em Santa Catarina, na cidade de Tubarão, outra Mikado 1941 faz, quinzenalmente, uma viagem de ida e volta até Imbituba, a 56 km de distância. Lá a paisagem é completamente diversa. Grandes dunas de areia e uma vegetação tipicamente litorânea margeiam a linha. Por ali é escoado todo o carvão extraído de Criciúma e que, além de ser exportado, serve para alimentar uma grande usina termoelétrica. Foi justamente esta fartura de carvão que fez com que a RFFSA mantivesse em Tubarão 24 máquinas a vapor – das quais 12 ainda estão em serviço. Mostrando que a idade não diminui sua eficiência, a velha locomotiva chega a atingir durante o percurso pouco mais de 60 km/h.
Bem mais moderna é a litorina que, três vezes por semana, liga Curitiba à cidade de Morretes e ao Porto de Paranaguá, cortando a maior reserva de mata atlântica do país, em plena Serra do Mar. São 2h50min de viagem, pontuados por exclamações maravilhadas de turistas de todas as partes do mundo. Apesar desta verdadeira babel, Marlene Perkowski, 23 anos, comissária, não tem maiores dificuldades para se entender com por seus passageiros. Ela avisa, por um sistema de som, quando os pontos mais bonitos se aproximam. Serve biscoitos e guaraná. Esclarece, quando possível, as dúvidas de todos. Orgulhosa ela diz que, apesar de estar há dois anos no trecho, ainda se encanta com cada viagem. “Esta é a linha mais bonita do Brasil.”
O TREM CORTA O PAMPA E CRUZA PONTES ENTRE VERDES LINDOS E ESPANTANDO BICHOS
Este trem sai à noite de Porto Alegre e chega de dia a Uruguaiana, entre muitos bois e bandos de emas, que fogem espantadas. No caminho, várias pontes típicas como esta (embaixo) são cruzadas. E, enquanto a noite corre, a plebe rude dorme – guardando a garganta para o amanhecer, hora do fumegante chimarrão. A viagem é pontilhada de paradas em várias estações.
EM MINAS, OS TRENS CONTAM A HISTÓRIA. MAS NEM TUDO É MUSEU OU TURISMO
Poucos lugares do mundo estão tão intimamente ligados à ferrovia como Minas Gerais. São raros os recantos do Estado que não são ou não foram, em alguma época, servidos pelo trem de ferro. Esta intimidade é patente no uso da própria palavra tem que, em Minas, é o substantivo mais polivalente do vocabulário – podendo designar qualquer objeto ou, até mesmo, fato.
Em São João del Rey, funciona há sete anos o Museu Ferroviário. Entre grandes pátios, oficina, uma rotunda – tipo de garagem circular para locomotivas – e uma grande estação, mais de uma dezena de marias-fumaças sobrevive ao tempo. Destas, cinco ainda se revezam no percurso turístico de 12 km, entre a cidade e Tiradentes. Todos os finais de semana, Mário Antônio Braga, 38 anos, regula e azeita todos os mancais e peças móveis das velhas Baldwins da década de 10. Ele é um dos quatro mecânicos do museu.
“Não existe nenhum curso de formação para este tipo de máquina. Como todos, aprendi tudo por curiosidade. Hoje, podemos consertar qualquer defeito e, até mesmo, fazer qualquer peça nas oficinas.” A linha São João – Tiradentes é a única de bitola 0,76 m ainda funcionando no país. Inaugurada em 1881, a antiga EFOM – Estrada de Ferro Oeste de Minas – chegou a ter 700 km de linhas nesse padrão. Hoje, as pequenas composições circulam a 25 km/h, transportando grandes grupos de turistas. “No verão, os trens passam a ser diários”, conta José Francisco de Freitas, 53 anos, agente de estação há 34, que acumula as funções de chefe de estação, vendedor de bilhetes, zelador e todas as outras na estação de Tiradentes. “Ainda hoje, a cada viagem, tenho que me comunicar com São João por telégrafo, conforme o regulamento.”
Esta tradição é também mantida em Ouro Preto, de onde, aos domingos, parte um trem turístico para Mariana. Neste trecho, o agente de trem José Figueiredo, 67 anos, trabalha desde 1943 e não tem queixas: “O nível dos passageiros é muito bom, é raro eu ter problemas com eles.”
Saindo de Belo Horizonte todos os sábados, à 19 h, uma grande e concorrida composição segue até Montes Claros e, em seguida, Monte Azul, na divisa com a Bahia, num total de 770 km. Este é um dos últimos grandes trens de passageiros de Minas e corta todo o nordeste do estado, justamente a mais pobre, onde começa o polígono das secas. O preço da passagem – que custa menos da metade da rodoviária – e a possibilidade de transportar até mesmo parte de pequenas colheitas atraem centenas de passageiros. De Montes Claros a Monte Azul, a composição se transforma em mista, levado vários vagões com os frutos da agricultura local. Ironicamente, se algum passageiro quiser seguir de Monte Azul para Iaçu, a 300 km de Salvador, para onde semanalmente se dirige uma composição mista, terá que esperar uma semana inteira na cidade. O trem de Belo Horizonte chega no domingo à noite e o para a Bahia sai na sexta à tarde.
O TREM ROMPE A AURORA DO CERRADO E RECEBE CORES NOVAS ANTES DE PENETRAR NO PANTANAL
O PANTANAL É UM MAR QUE O TREM DERROTA. GAVIÕES VÊM COMER NA MÃO DOS MAQUINISTAS
Para se fazer de trem, uma viagem de São Paulo até Corumbá é preciso pegar duas composições diferentes. Uma sai da capital paulista e vai até Bauru, pertencendo à Fepasa. A outra faz a segunda e maior parte do trajeto de cerca de 1.600 km e é operada pela RFFSA. Na primeira etapa, o trem corre sobre trilhos de bitola 1,60 m e é puxado por uma locomotiva elétrica. Até a estação de Jundiaí, onde fica a primeira parada, leva-se uma hora, durante a qual a paisagem, com raras exceções, é exclusivamente de casas e indústrias. Pouco depois, começam a aparecer pequenas plantações e pastos – que serão a constante até os arredores de Bauru, interrompidos apenas pelas ricas cidades do interior paulista, como Americana e São José do Rio Preto.
A chegada em Bauru é às 15h30min. Uma hora mais tarde, puxado por uma locomotiva diesel-elétrica e com seus 13 carros – quatro de primeira classe, quatro de segunda, um bagageiro, um restaurante e três dormitórios – e correndo sobre uma bitola de um metro, o trem para Corumbá parte quase lotado. São pequenos agricultores, vendedores, boias-frias, turistas e até mesmo famílias inteiras de mudança. Desde minutos após a partida, o carro-restaurante fica cheio de gente. Tira-gostos e cerveja – sempre servida pela metade do copo, para não derramar – animam a conversa. Lá fora, o cerrado vai sendo engolido pela noite.
Às 11h20min do dia seguinte, o trem está em Campo Grande. Nesta estação, uma grande quantidade de passageiros desce e outros tantos embarcam. Os traços indígenas estão presentes na maioria dos rostos. Os carros são reabastecidos de água e a equipagem – agentes de trem, faxineiros e a dupla maquinista/auxiliar – é substituída. Em 20 minutos a composição já está em movimento.
Em janeiro e fevereiro, ela é acrescida por dois ou três carros especiais, alugados em Bauru por grupos de turistas, seduzidos pela farta pesca do Pantanal. Na viagem de ida à Corumbá, o trem passa pela parte inundada do Pantanal à noite. É na volta que se pode realmente apreciar a paisagem. Um verdadeiro mar, dos dois lados da linha – que funciona como uma ponte virtual entre várias cidades e o resto do estado, cerca as casas, árvores e pequenas colinas. A impressão que se tem é de estar viajando de barco, e nunca por uma ferrovia. Durante mais de duas horas de viagem, não se avista um só ponto seco acima da lâmina d’água, a não ser a copa das árvores, alguns telhados e a ponta dos mourões das cercas.
O controle das estradas é rigoroso. O maquinista não pode dormir
O tráfego entre as estações é controlado com rigor para evitar acidentes: há máquinas staff, comunicação por telefone, autos de linha. Em Ouro Preto, o chefe de estação telegrafa a próxima parada.
“A ferrovia é uma verdadeira cachaça”, diz Romeu Maxwell, agente de trem recém-aposentado, depois de 27 anos de trabalho nas linhas do Rio Grande do Sul. Ele define bem um sentimento forte que encontramos na maioria dos funcionários das estradas de ferro, nos mais diversos lugares. Todos têm muitas histórias e gostam de contá-las. “Só parei mesmo porque meu médico disse que a friagem estava acabando com minha saúde”, continua Seu Romeu. “Fiz centenas de amigos e, se pudesse, continuaria”. Não são raros os casos de funcionários como o agente José Figueiredo, 67 anos, há 45 trabalhando nos trens de Minas e que simplesmente não consegue se imaginar fazendo outra coisa. Extremamente disciplinados, eles fazem questão de manter seus uniformes impecáveis, quase nunca dispensando o chapéu quando vão posar para uma foto.
Já nas locomotivas, a média de idade é mais baixa. Em todas as linhas do Brasil, com exceção das litorinas, sempre trabalham um maquinista e um auxiliar. Josemar Freitas da Silva, 26 anos, é um destes auxiliares. Ao pegar uma guia em uma das várias estações do percurso Porto Alegre – Livramento, ele lê, em voz alta, as instruções para seu colega, o maquinista Eroni Costa: “Livre até Guará, manutenção na linha, na altura do quilômetro tal...” Ele conta que, para trabalhar como maquinista auxiliar, fez um curso de um mês, na própria RFFSA. Para entrar, passou por testes e exames psicotécnicos. Seu serviço é, além de pegar as guias – às vezes com o trem em movimento – observar a composição e a linha, avisando ao colega sobre qualquer problema. Eroni, de 38 anos, é maquinista há 17 anos, trabalhando em trens de carga e de passageiros. “O principal na minha função é conhecer bem o trecho da linha na qual trabalho”, diz ele, enquanto mantém a composição andando em 50 km/h. “Cada vez que um maquinista muda de trecho, é obrigado a fazer 90 dias de praticagem para conhecer bem seu novo trajeto. Trilhos, curvas, passagens de nível, tudo é muito importante.” O trabalho em duplas, nas locomotivas, tem como principal função aumentar a segurança das viagens. Além de suas atribuições técnicas, maquinista e auxiliar têm quase que a obrigação de conversar, boa parte do tempo, para evitar o sono. Contra ele, trabalha também a imensa locomotiva diesel-elétrica que, além de ser extremamente desconfortável para quem a conduz – seus assentos são mínimos, possui um dispositivo que apita, de tempos em tempos, obrigando o maquinista a fazer uma série de movimentos, com os pés e mãos. Caso contrário, a composição é freada automaticamente por um sistema de ar comprimido.
Na maioria da malha ferroviária nacional, o sistema de controle de tráfego entre as estações é o de bastões. Em cada estação, por menor que seja, existe um aparelho de staff, ligado por cabos telefônicos às outras duas estações, uma em cada direção da linha. Um maquinista só tem permissão para atravessar um determinado trecho se estiver de posse do bastão correspondente, entregue pelo chefe daquele trecho. Os bastões ficam travados no aparelho de staff, que só os libera, um a um, quando recebe um impulso elétrico vindo da estação seguinte. Este impulso é produzido por dínamos, como nos antigos telefones de campanha. Para isso ocorrer, o chefe daquela estação deverá introduzir um outro bastão, recebido das mãos do último maquinista que percorreu aquele trecho. Desta maneira, é muito difícil que duas composições atravessem o mesmo trecho ao mesmo tempo. Salvo em caso de descontrole de uma locomotiva ou algo parecido. Ainda assim, se um trem passa por uma estação ou ponto de controle sem parar, ainda existe a possibilidade de deter o outro, pois os horários são elaborados para que exista uma certa margem de manobra. Estes aparelhos foram todos fabricados na Inglaterra e funcionam há mais de 60 anos, desde os primeiros tempos da ferrovia. Quando não são usados, o sistema é o das guias ou papeletas. Para serem expedidas, elas seguem o mesmo princípio dos bastões.
Outro aspecto típico da ferrovia é o seu vocabulário específico. Palavras como carro e vagão, por exemplo, que para os leigos podem significar a mesma coisa, para quem trabalha nos trens designam objetos bem diversos. Vagão, é o nome dado ao veículo que transporta carga sobre os trilhos. Carro, ao que transporta passageiros. Nunca chame um carro de vagão, pelo menos em frente de um agente de trem. Ele certamente responderá, indignado que, no vagão, viajam, no máximo, bois, vacas e clandestinos.
Revista MANCHETE, Ano 1988, Ed. 1893, p. 36
Disponível: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=004120&pagfis=252002
Acesso 25/08/2025