As
ruas do Marais estão, nessa época, longe de serem as de um bairro
da moda e altamente cobiçado em que hoje se transformaram. Um pouco
mais tarde, quando o jovem Victor Hugo buscar um alojamento módico
para ele e sua família, escolherá uma casa na Place des Vosges…
Esse hoje renovado e prestigiado bairro, que se desenvolveu no início
do século XVII, é então o bairro dos lojistas, dos artesãos, dos
funcionários públicos, dos que vivem com pequenas rendas. Estudante
e depois escrevente de procurador, o jovem Balzac saltita por essa
grande cidade de ruas estreitas, barulhentas, bastante sujas, da qual
descobre, no escritório do seu patrão, as pequenas questões de
casamento e herança, os conflitos comerciais, as comédias e os
desastres.
A
Paris do início do século XIX oferece uma fisionomia bastante
diferente da que conhecemos e que é, para muitos, o legado de
Haussmann.
A
não ser pela Notre-Dame e a parte mais antiga do Louvre, mais ou
menos cercadas de casebres, assim como o Panthéon (que a Restauração
chama novamente de igreja Sainte-Geneviève) e os Invalides,
construídos no reinado de Louis XV, nenhum dos pontos de referência
que estruturaram a Paris de hoje está presente. A cidade se
estabelece entre os grandes bulevares do norte e, ao sul, na margem
esquerda do Sena, os traçados dos atuais Boulevard de l’Hôpital,
Saint-Marcel e de Montparnasse até os Invalides. Fora desses limites
já estão os faubourgs, a
periferia. Há terrenos
baldios no que se chama a planície de Grenelle, Vaugirard é um
vilarejo, veem-se hortas no
atual 11º distrito. As grandes artérias como o Boulevard
Saint-Michel ou Sébastopol não existem. O centro de Paris é um
entrelaçamento de ruelas estreitas, frequentemente insalubres,
das quais Restif de la Bretonne e Louis-Sébastien Mercier, antes e
durante a Revolução Francesa, nos deixaram quadros surpreendentes.
Um
elefante reina no meio da Place de la Bastille, maquete de gesso e
ferro de um monumento projetado durante o Império. Hugo situará nas
entranhas desse elefante um episódio célebre de Os
miseráveis.
A
cidade possui mais água limpa desde que Napoleão abriu o canal de
Ourcq para revitalizá-la. O cunhado de Balzac, Surville, marido de
Laure, que é engenheiro, participa de sua manutenção. Como todos
os grandes soberanos, Napoleão havia sonhado em transformar Paris e
ordenou obras de embelezamento das quais restam projetos, titânicos
aliás, que não teve tempo de levar a cabo, o que talvez seja bom. O
imperador deixará em Paris apenas algumas pontes marcadas por um N.
O Arco do Triunfo está sendo
construído e não é a monarquia restaurada que vai se apressar para
impulsionar os trabalhos…
A
Concorde, já ornada de prédios grandiosos de Gabriele, que datam de
Louis XV, é um terreno baldio. Murmura-se que os animais de tração
bufam ao passar pelo local da guilhotina de tanto que a terra,
naquele lugar, impregnou-se de sangue. A Champs-Elysées é um
passeio arborizado onde se vai durante o dia tomar ar fresco e
assistir a números de saltimbancos, mas
que é evitada à noite: o lugar não é muito seguro, e a
prostituição impera. A atual Avenue Montaigne chama-se então “o
caminho das viúvas”, o que diz muita coisa.
Em
1815, é nessa mesma área que os cossacos russos estabelecem seus
quartéis, o que marcará por
muito tempo a memória dos parisienses.
É
que a história está em ebulição. Certamente não se ouvia no
colégio dos Oratoriens o deslocamento dos exércitos e o estrondo
dos boletins de vitória. Nessa época, Honoré tudo assiste dos
camarotes. Não resta dúvida de que a família preocupa-se com os
acontecimentos políticos: a situação do sr. Balzac lhe impõe que
seja bem visto pelo poder, esteja
este nas mãos de quem estiver. A desastrosa e terrível expedição
a Moscou marcou, no Império, o início do fim. Depois
de anos de uma guerra atroz, impiedosa, ainda a Espanha escapou do
domínio da águia. Os ingleses se estabeleceram em Portugal.
Em 1813, a coalizão formada
por Prússia, Rússia, Alemanha, Inglaterra e Áustria inflige ao
imperador uma derrota em Leipzig. Então é possível vencê-lo?! No
ano seguinte, face aos adversários decididos a acabar com ele, as
forças francesas lutam no seu próprio território. Champaubert,
Montmirail, Château-Thierry… Os amadores de estratégias militares
afirmam que o gênio do pequeno tenente corso nunca foi tão
brilhante. Talvez, mas morre-se por nada, e de agora em diante os
franceses o sabem. Ainda mais as francesas, a quem o Ogro tomou os
irmãos, os maridos e, agora, os filhos.
Em 31 de março, os Aliados estão na
capital. Napoleão abdica em 6 de abril. Louis XVIII, que aguardava
os acontecimentos na Bélgica, volta a Paris.
Menos
de um ano depois, enganando a segurança dos navios e espiões, o
Ogro consegue deixar a ilha de Elba. Desde a sua chegada no
continente, é saudado pelo mesmo povo que o vaiava alguns meses
antes. As coligações se
multiplicam. O marechal Ney, que enquanto isso havia se aliado à
monarquia, volta atrás e se joga aos pés do Imperador. O rei Louis
XVIII foge. Napoleão retoma as rédeas. Tentativa vã: cem dias
depois, em Waterloo, o Imperador é esmagado. Esse último retorno
custaria ainda alguns milhares de vidas humanas à Europa…
Dessa vez, trata-se de colocar a
França em ordem. Pensa-se até em dividi-la em duas, criando um
reino distinto no Sul, que teria Toulouse por capital. O duque de
Angoulême, sobrinho do rei, ocuparia o trono.
Os
Aliados tomam novamente Paris. É difícil imaginar o trauma que isso
significa para os franceses. Desde sempre a cidade venera Santa
Genoveva, que dizem ter desviado as tropas de Átila da capital com
as suas preces. Homem algum se lembra de Paris tomada jamais! Um
pouco mais tarde, sob Louis-Philippe, se buscará dotar a cidade de
novas defesas: aquelas famosas fortificações, os fortifs,
que cederão o espaço necessário, depois de 1960, à construção
da perimetral.
Esse
é o ambiente no qual se desenrola a adolescência de Honoré de
Balzac. O império desmoronado deixa uma França militarmente
vencida, profundamente dividida depois de 25 anos de perturbações.
Mais de um milhão de franceses morreram em vinte anos nos campos de
batalha. Vive-se em meio a uma guerra civil. Os acertos de contas, as
delações, os processos sumários se multiplicam. Dumas situará
nesses momentos de distúrbio o seu grande romance, O conde
de Montecristo.
São
os tempos do Terror Branco, que foi, aliás, menos sistemático do
que se costuma afirmar: o velho Louis XVIII, depois de ter passado
boa parte de sua vida no exílio (exílio esse que não foi, de modo
algum, sempre dourado), aspira à tranquilidade e esforça-se, com
relativo sucesso, para refrear o espírito revanchista de uma pequena
parte de seu entorno, a começar pelo seu irmão, o conde de Artois,
que reinará um pouco mais tarde, com o nome de Charles. Diz-se que
Louis XVIII era egoísta, medíocre, prudente até a covardia: o que
é, sem dúvida, verdade, mas é graças a esses defeitos que ele
presta serviços à França, que, então, precisa de tudo, menos de
um provocador. Será o
primeiro a conseguir fazer funcionar nesse país um regime de tipo
burguês e parlamentar. Esse que os franceses chamam de “porcão”
traz, ao menos, a paz.
Ao
longo desses vinte anos, aconteceram muitas coisas que seriam
impensáveis durante a velha monarquia. Filhos de artesãos
tornaram-se marechais do Império e têm títulos pretensiosos, os de
uma nova e falsa nobreza, recuperada
em toda a Europa: duque de Elchingen, duque de Otrante ou príncipe
de Moskowa! Camponeses fizeram fortuna; burgueses desconhecidos,
vindos das províncias, votaram
a morte do descendente de São Luís. Todos aqueles que tinham boas
razões para temer uma Restauração foram os sustentáculos mais
zelosos da ditadura imperial. Durante mais de quinze anos, os
produtos franceses tiveram mercado em toda a Europa. Os fornecedores
dos exércitos ganharam milhões. A velha nobreza, na maioria dos
casos, está arruinada.
Se
Napoleão soube organizar a França depois do período revolucionário
e dar-lhe uma estrutura administrativa e legislativa da qual diversos
aspectos ainda permanecem em vigor, ele deixa para trás uma França
demográfica e politicamente fraca, que irá semear as futuras
paixões nacionalistas. O
triste sr. de Metternich, o cínico sr. de Talleyrand é que vão
assegurar à Europa quase meio século de paz. Mas
a preferência popular é injusta: Napoleão permanece o ídolo do
povo francês, especialmente entre a geração mais jovem.
Capa:
Projeto gráfico – Ed. Gallimard
Retrato
anônimo de Balzac. Rue des Archives/The Granger Collection NYC.
Extrato do manuscrito O lírio do vale.
Fonte:
Taillandier, François, 1955-. Balzac. Tradução de Ilana Heineberg.
Porto Alegre: L & PM, 2006. Coleção Biografias L & PM
Pocket, vol. 556, p. 25/29