sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Último parágrafo (antes da conclusão) da teoria das emoções de Sartre (1939)

 

Junto à emoção, uma consciência reflexiva pode sempre se dirigir. Nesse caso a emoção aparece como estrutura da consciência. Ela não é qualidade pura e indizível, como é o vermelho cor de tijolo ou a impressão pura de dor – e como ela deveria ser segundo a teoria de James. Ela tem um sentido, ela significa alguma coisa para minha vida psíquica. A reflexão purificadora da redução fenomenológica pode compreender a emoção na medida em que ela constitui o mundo sob a forma mágica. “Acho-o detestável porque estou furioso.” Mas essa reflexão é rara e necessita motivações especiais. Geralmente, dirigimos junto à consciência emotiva uma reflexão cúmplice que percebe, certamente, a consciência como consciência, mas enquanto motivada pelo objeto: “Estou furioso porque ele é detestável”. É a partir dessa reflexão que a paixão vai se constituir.

Capa: Projeto gráfico de Néktar Design

Foto da capa: Jean-Paul Sartre, 1951. Foto de Philippe Halsman (Magnum Photos)

Fonte: Título original: Esquisse d’une théorie des émotions. Primeira edição na Coleção L & PM Pocket Plus, agosto de 2006. Sartre, Jean-Paul, 1905-1980. Esboço para uma teoria das emoções. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L & PM, 2013, p.89

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Paris, 1800 (François Taillandier)

 

As ruas do Marais estão, nessa época, longe de serem as de um bairro da moda e altamente cobiçado em que hoje se transformaram. Um pouco mais tarde, quando o jovem Victor Hugo buscar um alojamento módico para ele e sua família, escolherá uma casa na Place des Vosges… Esse hoje renovado e prestigiado bairro, que se desenvolveu no início do século XVII, é então o bairro dos lojistas, dos artesãos, dos funcionários públicos, dos que vivem com pequenas rendas. Estudante e depois escrevente de procurador, o jovem Balzac saltita por essa grande cidade de ruas estreitas, barulhentas, bastante sujas, da qual descobre, no escritório do seu patrão, as pequenas questões de casamento e herança, os conflitos comerciais, as comédias e os desastres.

A Paris do início do século XIX oferece uma fisionomia bastante diferente da que conhecemos e que é, para muitos, o legado de Haussmann.

A não ser pela Notre-Dame e a parte mais antiga do Louvre, mais ou menos cercadas de casebres, assim como o Panthéon (que a Restauração chama novamente de igreja Sainte-Geneviève) e os Invalides, construídos no reinado de Louis XV, nenhum dos pontos de referência que estruturaram a Paris de hoje está presente. A cidade se estabelece entre os grandes bulevares do norte e, ao sul, na margem esquerda do Sena, os traçados dos atuais Boulevard de l’Hôpital, Saint-Marcel e de Montparnasse até os Invalides. Fora desses limites já estão os faubourgs, a periferia. Há terrenos baldios no que se chama a planície de Grenelle, Vaugirard é um vilarejo, veem-se hortas no atual 11º distrito. As grandes artérias como o Boulevard Saint-Michel ou Sébastopol não existem. O centro de Paris é um entrelaçamento de ruelas estreitas, frequentemente insalubres, das quais Restif de la Bretonne e Louis-Sébastien Mercier, antes e durante a Revolução Francesa, nos deixaram quadros surpreendentes.

Um elefante reina no meio da Place de la Bastille, maquete de gesso e ferro de um monumento projetado durante o Império. Hugo situará nas entranhas desse elefante um episódio célebre de Os miseráveis.

A cidade possui mais água limpa desde que Napoleão abriu o canal de Ourcq para revitalizá-la. O cunhado de Balzac, Surville, marido de Laure, que é engenheiro, participa de sua manutenção. Como todos os grandes soberanos, Napoleão havia sonhado em transformar Paris e ordenou obras de embelezamento das quais restam projetos, titânicos aliás, que não teve tempo de levar a cabo, o que talvez seja bom. O imperador deixará em Paris apenas algumas pontes marcadas por um N. O Arco do Triunfo está sendo construído e não é a monarquia restaurada que vai se apressar para impulsionar os trabalhos…

A Concorde, já ornada de prédios grandiosos de Gabriele, que datam de Louis XV, é um terreno baldio. Murmura-se que os animais de tração bufam ao passar pelo local da guilhotina de tanto que a terra, naquele lugar, impregnou-se de sangue. A Champs-Elysées é um passeio arborizado onde se vai durante o dia tomar ar fresco e assistir a números de saltimbancos, mas que é evitada à noite: o lugar não é muito seguro, e a prostituição impera. A atual Avenue Montaigne chama-se então “o caminho das viúvas”, o que diz muita coisa.

Em 1815, é nessa mesma área que os cossacos russos estabelecem seus quartéis, o que marcará por muito tempo a memória dos parisienses.

É que a história está em ebulição. Certamente não se ouvia no colégio dos Oratoriens o deslocamento dos exércitos e o estrondo dos boletins de vitória. Nessa época, Honoré tudo assiste dos camarotes. Não resta dúvida de que a família preocupa-se com os acontecimentos políticos: a situação do sr. Balzac lhe impõe que seja bem visto pelo poder, esteja este nas mãos de quem estiver. A desastrosa e terrível expedição a Moscou marcou, no Império, o início do fim. Depois de anos de uma guerra atroz, impiedosa, ainda a Espanha escapou do domínio da águia. Os ingleses se estabeleceram em Portugal. Em 1813, a coalizão formada por Prússia, Rússia, Alemanha, Inglaterra e Áustria inflige ao imperador uma derrota em Leipzig. Então é possível vencê-lo?! No ano seguinte, face aos adversários decididos a acabar com ele, as forças francesas lutam no seu próprio território. Champaubert, Montmirail, Château-Thierry… Os amadores de estratégias militares afirmam que o gênio do pequeno tenente corso nunca foi tão brilhante. Talvez, mas morre-se por nada, e de agora em diante os franceses o sabem. Ainda mais as francesas, a quem o Ogro tomou os irmãos, os maridos e, agora, os filhos.

Em 31 de março, os Aliados estão na capital. Napoleão abdica em 6 de abril. Louis XVIII, que aguardava os acontecimentos na Bélgica, volta a Paris.

Menos de um ano depois, enganando a segurança dos navios e espiões, o Ogro consegue deixar a ilha de Elba. Desde a sua chegada no continente, é saudado pelo mesmo povo que o vaiava alguns meses antes. As coligações se multiplicam. O marechal Ney, que enquanto isso havia se aliado à monarquia, volta atrás e se joga aos pés do Imperador. O rei Louis XVIII foge. Napoleão retoma as rédeas. Tentativa vã: cem dias depois, em Waterloo, o Imperador é esmagado. Esse último retorno custaria ainda alguns milhares de vidas humanas à Europa…

Dessa vez, trata-se de colocar a França em ordem. Pensa-se até em dividi-la em duas, criando um reino distinto no Sul, que teria Toulouse por capital. O duque de Angoulême, sobrinho do rei, ocuparia o trono.

Os Aliados tomam novamente Paris. É difícil imaginar o trauma que isso significa para os franceses. Desde sempre a cidade venera Santa Genoveva, que dizem ter desviado as tropas de Átila da capital com as suas preces. Homem algum se lembra de Paris tomada jamais! Um pouco mais tarde, sob Louis-Philippe, se buscará dotar a cidade de novas defesas: aquelas famosas fortificações, os fortifs, que cederão o espaço necessário, depois de 1960, à construção da perimetral.

Esse é o ambiente no qual se desenrola a adolescência de Honoré de Balzac. O império desmoronado deixa uma França militarmente vencida, profundamente dividida depois de 25 anos de perturbações. Mais de um milhão de franceses morreram em vinte anos nos campos de batalha. Vive-se em meio a uma guerra civil. Os acertos de contas, as delações, os processos sumários se multiplicam. Dumas situará nesses momentos de distúrbio o seu grande romance, O conde de Montecristo.

São os tempos do Terror Branco, que foi, aliás, menos sistemático do que se costuma afirmar: o velho Louis XVIII, depois de ter passado boa parte de sua vida no exílio (exílio esse que não foi, de modo algum, sempre dourado), aspira à tranquilidade e esforça-se, com relativo sucesso, para refrear o espírito revanchista de uma pequena parte de seu entorno, a começar pelo seu irmão, o conde de Artois, que reinará um pouco mais tarde, com o nome de Charles. Diz-se que Louis XVIII era egoísta, medíocre, prudente até a covardia: o que é, sem dúvida, verdade, mas é graças a esses defeitos que ele presta serviços à França, que, então, precisa de tudo, menos de um provocador. Será o primeiro a conseguir fazer funcionar nesse país um regime de tipo burguês e parlamentar. Esse que os franceses chamam de “porcão” traz, ao menos, a paz.

Ao longo desses vinte anos, aconteceram muitas coisas que seriam impensáveis durante a velha monarquia. Filhos de artesãos tornaram-se marechais do Império e têm títulos pretensiosos, os de uma nova e falsa nobreza, recuperada em toda a Europa: duque de Elchingen, duque de Otrante ou príncipe de Moskowa! Camponeses fizeram fortuna; burgueses desconhecidos, vindos das províncias, votaram a morte do descendente de São Luís. Todos aqueles que tinham boas razões para temer uma Restauração foram os sustentáculos mais zelosos da ditadura imperial. Durante mais de quinze anos, os produtos franceses tiveram mercado em toda a Europa. Os fornecedores dos exércitos ganharam milhões. A velha nobreza, na maioria dos casos, está arruinada.

Se Napoleão soube organizar a França depois do período revolucionário e dar-lhe uma estrutura administrativa e legislativa da qual diversos aspectos ainda permanecem em vigor, ele deixa para trás uma França demográfica e politicamente fraca, que irá semear as futuras paixões nacionalistas. O triste sr. de Metternich, o cínico sr. de Talleyrand é que vão assegurar à Europa quase meio século de paz. Mas a preferência popular é injusta: Napoleão permanece o ídolo do povo francês, especialmente entre a geração mais jovem.


Capa: Projeto gráfico – Ed. Gallimard

Retrato anônimo de Balzac. Rue des Archives/The Granger Collection NYC. Extrato do manuscrito O lírio do vale.

Fonte: Taillandier, François, 1955-. Balzac. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: L & PM, 2006. Coleção Biografias L & PM Pocket, vol. 556, p. 25/29

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Livro – “Porto Alegre De Todos Os Tempos”

 

e-book – grátis!
Uma bela e gratuita oportunidade de conhecer o livro Porto Alegre de Todos os Tempos.
O livro já está esgotado, foi lançado em 2017 e segunda edição em 2018, é um passeio por Porto Alegre seus personagens, histórias e curiosidades.
Reunidas em Porto Alegre de Todos os Tempos são 26 histórias, que incluem nomes como Gilda Marinho, Teresinha Morango, Miguel KGB, Nega Lú, e também lugares inesquecíveis, como o A Esquina Maldita, o Ao Belchior, Bar João, Zé do Passaporte, e muitos outros resgates de um Porto Alegre provavelmente mais legal que a atual.
Pesquisador por hobby que virou paixão, Paulo Palombo Pruss foi fundo para buscar fatos e detalhes que são pouco conhecidos do público, obtidos, também, através da colaboração de seus milhares de leitores na rede social, cujos alguns depoimentos também são relatados no livro tal qual foram escritos.
É isso, espero que gostem, opiniões são bem vindas. 
Abraços
Paulo Palombo Pruss

Fonte: livrospaulopruss@gmail.com

terça-feira, 7 de maio de 2024

sábado, 27 de abril de 2024

Destaques de Dois Irmãos (MIlton Hatoum)

(...) as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em isenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, (…)

Cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos.

(…) a vingança é mais patética que o perdão.

Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos.

Fonte: Hatoum, Milton. Dois irmãos. São Paulo: EDITORA SCHWARCZ LTDA/Companhia das Letras, 2000, epub.


domingo, 14 de abril de 2024

Canções antecedentes ao Coral Santa Cecília (Adair Philippsen)

 

Eram cantos de exaltação a deus, à maneira de oração, cientes do ensinamento de santo Agostinho sobre a importância da oração na vida cristã:

Quem canta reza duas vezes.”

Entre os cantos-orações, destacavam-se, em alemão:

Großer Gott (talvez o primeiro do repertório);

Maria zu lieben, e

Heilige Geist; e, em latim,

Laudate dominum, de Mozart.

Mas também cantavam seu amor à natureza e à pátria brasileira, suas tradições e nostalgia dos ancestrais e dos lugares de outrora, como

Wie die Schwalben ziehen fort sie kehren wieder her¹, canção entoada pelos primeiros imigrantes vindos da Alemanha.

¹Quando as andorinhas partem, elas retornam novamente.


Fonte: Philippsen, Adair. Um século de encanto. Breve histórico do Coral Santa Cecília de Santo Cristo. Santa Rosa: Public Gráfica e Gravadora, 2016, p. 13

Cancioneiro de Otto Brod (Adair Philippsen)

 

Estabelecido em Linha Taquaruçu (f. 1973). Privilegiada voz de baixo e pessoa muito divertida, mantinha rico repertório de canções alegres, na maioria pouco conhecidas, pois sem publicações em textos. Passou-os para seu sobrinho, padre Ivo Bersch, que os organizou no cancioneiro Recordar é Viver. Entre elas:

Das ABC

Die Modendamen

S’war mal ein kleiner Mann

Ein Soldat in einer Schenke

Holadiri

Klein, klein dar sie nicht sein

Bei Kaiserin Phylomine

Der Flöh Fang


Fonte: Philippsen, Adair. Um século de encanto. Breve histórico do Coral Santa Cecília de Santo Cristo. Santa Rosa: Public Gráfica e Gravadora, 2016, p. 18

Dialeto (Adair Philippsen)

 

(…) os cantores, no dia a dia, falavam o Hunsrückish, variedade linguística de Hunsrück¹, mas que sofreu o “aportuguesamento” nas colônias devido ao reduzido contato com falantes de português, agravado pela falta de oferta do ensino oficial nas áreas interioranas.

Surgiu então o Hunsrückisch Platt, verdadeiro símbolo da cultura teuto-brasileira, contudo marcado por palavras estranhas ao Hochdeutsch², donde a inicial dificuldade de compreensão, como destaca Roque Danilo Bersch, resultou em variante linguística pouco estudada.

¹O Hunsrück é uma serra de montanhas baixas, às margens do Rio Reno e Mosela, no oeste da Alemanha, região de onde partiram centenas de famílias para o Brasil no começo do século XIX, impulsionadas pelo sonho de um mundo melhor nas selvas do Brasil.

²Variante oficial (standard ou padrão) do alemão.


Fonte: Philippsen, Adair. Um século de encanto. Breve histórico do Coral Santa Cecília de Santo Cristo. Santa Rosa: Public Gráfica e Gravadora, 2016, p. 24

Cubiertos (Causo do Maestro Guido por Adair Philippsen)

 

Encontro de dois dias em Monte Caseros, Argentina. No convite, a observação:

- Por favor, traigan cubiertos.

Desde os doze anos, com seu irmão Ivo, Guido cantava música de Miguel Aceves Mejia, guarânias, boleros e tangos. Julgava-se pós-graduado em espanhol e por isso recomendou aos coralistas:

- É fim de inverno, vamos mais ao Sul, em campo aberto, na margem do rio, pode ser frio. Levemos, pois, cobertores.

Na primeira noite os anfitriões serviram boi assado com couro e pelo, bastante alho e outros temperos. Muitos pedaços com mais pelo do que carne – o Kuno Bieger (in memoriam), na viagem de retorno, ainda cuspia pelos de boi…

No segundo dia almoçaram na sede da gendarmeria na beira do rio Uruguai. Na entrada pediram:

-¿Trajeron los cubiertos?

Só então descubriram que cubiertos são talheres!

E o ônibus abarrotado de cobertores.


Fonte: Philippsen, Adair. Um século de encanto. Breve histórico do Coral Santa Cecília de Santo Cristo. Santa Rosa: Public Gráfica e Gravadora, 2016, p. 52

Último parágrafo (antes da conclusão) da teoria das emoções de Sartre (1939)

  Junto à emoção, uma consciência reflexiva pode sempre se dirigir. Nesse caso a emoção aparece como estrutura da consciência. Ela não é qu...