domingo, 9 de abril de 2017

Mercedes Sosa - Uma Voz de Guerra e Paz (Entrevista)

Entrevista ________________________________________________________

Mercedes Sosa
Uma voz de guerra e paz


Presente há poucas  semanas  ao  2º  Musicanto  Sul-Americano  de  Nativismo,  em Santa Rosa, Mercedes Sosa encheu um estádio e a alma de um povo que se  identifica  com o  seu  trabalho. “La Negra” veio participar e contar como viu, da França onde estava, as mudanças  políticas  na  Argentina,  o  país  que ama e do qual teve que se exilar para não “desaparecer”.

Dizendo que acredita em Alfonsín porque ele representa a recuperação de coisas muito importantes para os argentinos, Mercedes falou muito nessa entrevista, abordando os assuntos que prefere: música, política e América Latina.

Reafirmou o seu comprometimento com a realidade do continente e do planeta “com muitas dores, muitos problemas, muitas torturas e muita morte”. Acha que tem sorte em poder cantar e se classifica apenas como “uma mulher que passa e vê o que acontece em redor”.
         
            MATIZES

            “Não se reconhece a paz sem ter passado pela guerra, como não se reconhece a democracia sem ter passado pela ditadura”, diz Mercedes Sosa, lembrando de uma só vez, a nova Argentina e os ainda amordaçados Chile e Paraguai. Estendendo essa lembrança pelo resto da América Latina, reconhece que, apesar das aparências, não há um verdadeiro governo democrático no Continente. “O que existe é uma relativa tranquilidade de expressão verbal na maioria dos países latino-americanos”.

            Dentro da mesma generalização, Mercedes enquadra a violência que, para ela, tem várias formas de ser exercida: “Muitas vezes somos nós mesmos o seu eixo, pois a atual sociedade competitiva vai gerando uma múltipla quantidade de necessidades que fazem com que o homem fique cada vez mais egoísta e violento”. Mas faz uma ressalva: “Entretanto, o seu exercício para reprimir outras formas como se apresenta, é pior do que o ato em si. Existe a violência entre os que estão lutando por uma posição civil e outra, mais dura, dos que detêm o poderio militar e que não sabem parar no momento devido: ninguém tem o direito de sequestrar, torturar e matar filhos e netos de revolucionários”.

            Surpreendentemente, Mercedes Sosa diz que há pouco tempo ficou sabendo dos “desaparecidos” em seu país e ao fato classificou de “violência redobrada” por considerar que, como ela, muita gente está sofrendo agora por saber de coisas que ignorava, “coisas essas que trarão trágicas e dolorosas lembranças e consequências por muitos anos”.

            Comentando os casos específicos de Cuba e da Nicarágua, onde seus povos somente chegaram a um estado de relativa paz depois de uma longa e penosa luta armada (com a Nicarágua ainda às voltas com mercenários, criminosos e aventureiros armados pelos Estados Unidos), diz Mercedes: “Quando um povo tenta se libertar, não existe violência. A paz conquistada de cabeça baixa, através da submissão, também é perigosa. Custa muito caro a liberdade conquistada com um levante popular, como no Vietnã. Este foi um país que esteve apagado do mapa depois de devastado. Quem o ajudou a erguer? Quem lembra agora que a sua estabilidade custou o martírio de gerações inteiras de seus filhos? Este silêncio mundial é um tácito acordo para silenciar alguma coisa que não é muito interessante para quem está no poder deste lado do mundo”.

            FORMOSO BUARQUE

            A formação de uma consciência de arte latina é uma das preocupações de Mercedes Sosa. E para atingir este objetivo, ela só vê um caminho: o da autenticidade. Na sua opinião, os artistas não podem ser dirigidos pela simples razão de serem donos da sua criação. Ela exige apenas uma coisa: “eles têm que ser cultos”. E explica: “Um homem não pode entender só de dança e outro só de música. Quem entende só de partitura musical é um idiota. O artista tem que conhecer tudo sobre a coisa mais importante do seu povo que é a cultura”.

            É grande a sua simpatia pelo Brasil. Tem um carinho todo especial por Milton Nascimento, de quem gravou “Cio da Terra”, Chico Buarque e todos aqueles que são solidários com a América Latina. Caetano Veloso é classificado como “bem arejado”e no Sul suas preferências vão para Kleiton e Kledir. Lembra ainda Raul Ellwanger, a quem acha “um bom compositor” e de quem vai gravar “Pialo de Sangue”. Participa na gravação castelhana de K & K, para o seu disco trouxe “Semeadura”, da dupla com o Fogaça e quer levar os dois para gravar “Vira-Virou”.

            A propósito, Mercedes Sosa acredita que os gaúchos devem abrir mais espaços no resto do Brasil “porque os caminhos fechados são perigosos”. Mas é de Chico Buarque , com quem gravou “São Vicente”, que faz o seu melhor comentário: “Ele é formoso e o mais completo dos compositores, poetas e dramaturgos. É o exemplo que eu tenho no mundo para música popular. É um homem muito importante para o povo deste continente”.

            CONSUMISMO

            É difícil, quase impossível à nova geração de músicos argentinos chegar ao Brasil. Mercedes acha isso “estranho”, pois mesmo os novos compositores e cantores ingleses e norte-americanos são conhecidos por aqui. Ao mesmo tempo em que facilita a explicação deste fato sugerindo que tudo pode ser por imposição das gravadoras, lembra, entretanto, que os seus conterrâneos encontram grandes dificuldades para atravessar a fronteira em função da grande concorrência que devem enfrentar aqui.

            Admite que mesmo na Argentina as coisas não estão fáceis por causa do consumismo de discos brasileiros e norte-americanos, ao contrário do que se passa com a música da Colômbia, Paraguai e Equador, quase esquecida. Mercedes se rebela contra isso: “Nenhum povo se auto-abastece em comida e em arte. Todos os povos do mundo devem se abrir. Eu, por exemplo, amo a música árabe que também não chega até a Argentina. Cantar é ser universal. O homem é universal. Tem os mesmos sentimentos de dor e prazer em todas as partes do mundo”.


            “DESPACITO”

            Analisando o atual momento artístico no Brasil, Mercedes Sosa nota que a passagem da opressão para a democracia produz muita coisa. Principalmente mau gosto e pornografia. Contemporiza: “Mas depois tudo passa. As coisas têm que acontecer, suavemente, sem modismos”. Chegando à condescendência, admite: “A gente está condicionada a que nos digam até o que devemos vestir. É natural que se compre aquilo que era mistério e que agora não está mais proibido. Deve-se é ter mais maturidade, ser mais sereno para identificar os inimigos e avançar “despacito”.

            Fundamental para Mercedes é a identificação, por parte do artista, da situação em que vive um povo e da determinação de dar a este povo o que ele está precisando em matéria de expressão artística. E exemplifica com a própria atuação: “Quando voltei à Argentina não cantei a dor nem procurei golpear o país. Cantei “Maria, Maria” porque achei que era disso que o povo estava precisando. Encontrei amor diante de tudo o que ia acontecendo no dia-a-dia. Era uma coisa sinistra. Se eu cantasse a dor o povo ia se armar. E precisamos de paz e não de mais guerra para construirmos alguma coisa”.

            SOLDADINHOS

            Atualmente, os jovens cantores argentinos estão cantando a volta da democracia de uma maneira muito particular. Mercedes citou um exemplo: “Eu, quando era pequena, brincava com os soldadinhos de chumbo; depois, minha mãe me levava para ver o desfile militar nas ruas. Meu coração batia forte cada vez que os militares passavam, desfilando. E que orgulho eu sentia de pertencer a um regime militar e aplaudir os militares. Isso é passado. Hoje eu não sinto o mesmo. Somente voltarei a sentir o coração bater mais forte quando tivermos um exército popular”.

            É uma tremenda letra. Existe muita identificação com o povo que primeiro viu “os soldadinhos” usarem porretes e depois armas mortíferas contra os seus irmãos. A gente espera que nunca mais façam isso. Queremos ter orgulho dos soldados que passam no desfile. Caso contrário, é melhor que não voltem a passar nunca mais.

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO I – Nº 4

*****














Nenhum comentário:

Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul (Livro)

 Inventário das Estações (1874 - 1959) Downloads - 014 Livro Patrimônio Ferroviário no RS (4 partes em PDF) http://www.iphae.rs.gov.br/modGe...