sexta-feira, 21 de abril de 2017

O CANTO PARINDO FUNDO (Luiz Sérgio Jacaré Metz)



“A arte não nasce arte de massa, sê-lo-á através de muito esforço...”
                                                                                                      MAIAKÓVSKY
   

Por natureza, por essência, por definição e postura o artista é um cidadão incomum e iluminante. Deriva de sua agudíssima sensibilidade esse posicionamento diferenciado. O artista é, na prática, difícil de reunir, impossível de redomonear, instável de conviver; enxerga os absurdos antes dos demais, sente as transformações sociais primeiro e privilegiadamente e isso, não raro, o coloca em permanente estado de alarme e angústia. Expressa-se de forma precisa sobre seu tempo e, por dialogar através de imagens, símbolos e metáforas – que são sínteses transformadas e transformadoras da realidade, às vezes é chamado de “absurdo”, “hermético” e, ainda pejorativamente, de “visionário”, “complexo”, “obscuro”.

Mas todas essas alcunhas (todo esse trabalho ardoroso de rebaixar o talento criador) são inócuas, vãs, tardias. Toda tentativa de cooptar um criador de sons e um artífice de poemas, principalmente de cooptá-lo para a ideologia arcaica de atual domínio em nosso meio cultural, já nasce pretérita. Domam-se mil potros, encilham-se os mil, mas a alguém que mereça ser chamado artista não se põe qualquer xergão, por mais morto de fome que possa viver, por mais fundo que seja o fosso onde se encontrar. Ali, nessa fome e nesse fosso, é que ele recria o som e revive a palavra.

Fruto dessa disciplina férrea e invisível, solidificados na disposição de produzir, em razão da arte, por seu povo, é que surgem os grandes gênios. E a preocupação com o surgimento deles (processo complexo que o tempo dimensiona), é trabalho de todos aqueles que, mesmo por diletantismo, se ocupam do fazer artístico. Criar essas condições para que as obras possam ser veiculadas requer, de parte dos interessados nessa divulgação, uma sensibilidade aguda, um respeito profundo e um conhecimento básico amplo. Retirando essas condições, toda a boa vontade se anula, toda a intenção se perde. E, quando houver essa base ao trabalho criativo, certamente surgirão, ao público, no momento presente, grandes criações da arte local.

Isso feito, isso estabelecido, pode-se iniciar a discussão aberta e aclaradora. Opinar, criticar, rever, ajudar. Posicionar-se frente aos trabalhos, fundamentalmente, sem preconceitos ou narcisismo tacanho, que só ajudam para confundir os conceitos de popular e original, normalmente transladando-os para o terreno do grotesco e do ultrapassado. Com essas ressalvas, gostaria de dizer que a assimilação ou repulsão de uma obra advém, também, de um outro tipo de trabalho, qual seja o de difundir com insistência as obras importantes que foram rotuladas de “não ao gosto popular”. Trabalhar no aprimoramento da sensibilidade de um povo é tarefa que dignifica os que acreditam ter a arte o poder de reduzir o obscurantismo, a barbárie, a selvageria nas relações humanas.

O “1º Musicanto Sul-Americano de Nativismo” deu o clima ao artista. E isto basta e bastou. Quem o organizou teve, como primordial respeito, a sensibilidade e a solidariedade. O “Musicanto” rastreou, perscrutou, intuiu, averiguou, medrou e entregou – a todos – um palco e um público, um júri e uma cidade que se abrem para o futuro da canção latino-americana. Por forte irmandade entre organização e senso artístico, o “Musicanto” nasce queimando etapas. E isso, sem precipitação, o compara à “Califórnia da Canção Nativa” que caminha, há treze anos, em busca de rumos ao canto gaúcho. Comparar o “Musicanto” à “Califórnia” não desmerece a última, nem reduz o primeiro. Os dois festivais são, de certa forma, irmãos que não cabem na mesma casa: seus objetivos diferem na concepção da latinidade (geográfica e humana) do cantar.

NO SANGUE DA TERRA NADA SOLIDÁRIA

Ao iniciar este comentário, escolhi as palavras de Maiakóvsky em primeiro lugar pelo seu conteúdo perfeitamente aplicável a música “No sangue da Terra Nada Guarani”, de Nelson Coelho de Castro. Em segundo, por ser Maiakóvsky um poeta militantemente solidário. Como “a arte não nasce arte de massa”, isto é, a arte necessita ser veiculada e discutida para ser plenamente assimilada (e não há heresia em dizer – e repetir aqui – que consideramos trabalhar a sensibilidade do povo, alienado da sua cultura pelas grandes produções sonoras massificantes), é que o trabalho de Nelson requer (mas não prescinde) a nossa solidariedade. Fugir de sua letra e de sua música é, e será para quem for do ramo um retorno fatal na concepção criativa musical e poética. E, sinto e devo dizer, muitos e importantes artistas em nosso meio fugiram à responsabilidade de serem solidários ao novo e claro canto do “Sangue da Terra Nada Guarani”.

Isso aconteceu também, julgo, com a composição do Rillo e Barbará, “Era Uma Vez”, que apontava na 8ª Califórnia, um caminho a ser bem melhor aproveitado. Voltando ao tema solidariedade: é irrespirável, autofágico, um meio artístico que se mede por classificações em festivais (porque isso rebaixa a criação, quando não a anula, e afere ao júri um papel decisivo na produção, que ele não tem, nem terá). Ao contrário de minimizar a importância ou rotular a composição de Nelson (resolvida com talento por Berê), devemos ouvi-la como alimento substancial à energia do movimento artístico gaúcho. Toda a tramoia de ranço e choradeira, euforia e puxação-de-saco dos festivais, passa dois dias após. O que não passa é a “coragem que vem por dentro parindo/vem parindo feio...” E, mal parafraseando a canção, acrescento que não se amansa a descaso ou a ignorância uma grande obra e seu criador.

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO I – Nº 00

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