A Nova Democracia - Ano VI, nº 40, fevereiro de 2008
Henrique Júdice
Magalhães
Hay os que
cantam desditas de amores,
por
conveniência, agradando senhores.
Mas os que
vivem a cantar sem patrão
tocam nas
cordas do seu coração.
(Cenair Maicá, Canto dos Livres)
Cenair Maicá (1947-1989) foi o
responsável por inscrever estes e outros versos na história do Rio Grande do
Sul. Do cantor e compositor nascido em Águas Frias, no atual município de
Tucunduva (então distrito de Santa Rosa) em 3 de maio de 1947, disse o grande
poeta Jayme Caetano Braun:
Outro é o
Cenair Maicá
do canto
bárbaro e doce,
que com
certeza extraviou-se
da flor do
caraguatá.
Com sua voz encorpada e ao mesmo
tempo suave, Cenair gravou indelevelmente também seu nome entre os grandes da
arte popular gaúcha. Homem e artista da melhor extração missioneira, colocou
sempre sua voz e seu talento a serviço de sua terra e de sua gente. A exemplo e
ao lado dos outros "troncos missioneiros" (seus parceiros e amigos
Noel Guarany, Jayme Caetano Braun e Pedro Ortaça), personificou a identidade
histórica e cultural de sua região. Também junto a eles, foi responsável por
inserir as Missões no mapa histórico e cultural oficial do estado,
desencadeando a redefinição de uma identidade gaúcha até então calcada quase
exclusivamente na exaltação dos senhores feudais da região da campanha.
Dupla histórica
Músico desde os 10 anos de idade
- quando começou a se apresentar em público ao lado de seu irmão Adelqui,
Cenair faria sua entrada triunfal na história da música gaúcha ao vencer o 7º
Festival do Folclore Correntino em 1970, em Santo Tomé, na Argentina com “Fandango na Fronteira”. Na apresentação, Cenair dividiu o palco com quem a havia
composto: Noel Guarany (ver AND 33). Foi a consagração de ambos e de cada um
como artista e também dos esforços iniciados pelos dois e por Ortaça em 1966,
quando lançaram um manifesto reivindicando a herança guarani e anunciando a
intenção de criar, a partir dela, uma nova arte missioneira. O espírito da
iniciativa é bem representado por estes versos de Cenair:
Sou seiva pura
de uma raça que não morre;
meu sangue
corre através das gerações,
a força viva e
secular do nativismo
no atavismo deste
povo das missões.
A vitória no festival rendeu a
Cenair e Noel a gravação de um disco compacto, Filosofia de Gaudério (1970).
Apenas em 1978, porém, viria o disco solo de Cenair, Rio de Minha Infância.
Solo talvez não seja a palavra adequada: a produção e a direção couberam a
Noel, autor, também, de quatro das dez músicas que o integram.
Da terra e da gente
O resultado é um dos discos mais
bonitos da música brasileira. A harmonia entre letras, interpretação e arranjos
é tamanha que o ouvinte chega a sentir que navega nas águas do Uruguai enquanto
vê, refletido em suas águas, o sol que ilumina a terra missioneira - ainda que
não tenha a mais vaga ideia de onde ela fica.
Um dos pilares da identidade
missioneira, o rio Uruguai é o mote do disco. Mas seu universo temático não se
resume à paisagem da região. Tanto ou mais do que sua terra e suas águas,
Cenair retrata, sob vários prismas, sua gente e a relação que ela mantém com o
meio que a circunda. O tom intimista da canção que dá nome ao disco, de sua
autoria, convive com a descrição do trabalho e do cotidiano dos homens que
vivem nele em Balseiros do Rio Uruguai, de Barbosa Lessa.
Seria, contudo, um grande erro
deduzir da singeleza das letras e da aparente despretensão do universo temático
que se está diante de um artista despolitizado ou ingênuo. Isto nem seria
possível nas Missões, onde a dimensão do cotidiano e a da história se
entrelaçam. Cenair, a exemplo dos outros missioneiros, sabia exatamente o que
estava fazendo. O compositor que recorda, saudoso, o rio de sua infância é o
mesmo que escreve, um pouco depois, em Homem Rural, que "enxada em terra
alheia nunca traz dia melhor".
Servir ao povo
Os propósitos de Cenair e o grau
de consciência que ele tinha do que estava em jogo no momento histórico que lhe
coube viver no Rio Grande do Sul ficam muito claros em várias de suas
entrevistas.
"Eu acho que o músico, além
de cantar as coisas alegres, a paisagem, a história, tem o dever de ser útil ao
povo com o qual convive no dia-a-dia. Então eu procuro, dentro da minha música,
dizer alguma coisa que possa motivar ou sensibilizar pessoas no sentido de
resolver certos problemas de nosso povo. Porque nós, os artistas, temos uma
força na mão, que é o instrumento, e temos a oportunidade de nos comunicar com
o povo através dos canais de divulgação. Então temos o dever de ser útil ao
povo" — declarou ao Jornal Cotrifatos, da Cooperativa Tritícola de Santo Ângelo
(Cotrisa), em agosto de 1983.
Foi certamente esta preocupação
que inspirou várias de suas letras, como Homem Rural e Balaio, Lança e Taquara,
em que fala das agruras que atravessava a gente simples do interior gaúcho:
camponeses, balseiros, índios... Ou João Sem Terra, na qual satiriza a política
habitacional do regime de 64 descrevendo as agruras imaginárias de um conhecido
passarinho:
Ainda bem que
o João Barreiro não precisa de alvará:
não paga o BNH
e usa o barro brasileiro.
Mas te cuida,
João Barreiro,
que os 'hôme' vão te pegar...
Cenair sabia também dos
obstáculos que existiam no caminho que escolheu. O enfrentamento com os
monopólios fonográficos fazia parte de suas preocupações. "As
multinacionais do disco infiltravam a música norte-americana" - recordou
em outra entrevista, realizada em 1982 no Museu Antropológico Augusto Pestana -
"mas nós tínhamos um compromisso de manter a cultura missioneira".
Nisto, como em muitas coisas, comungava das mesmas ideias de seu parceiro Noel
Guarany.
Missões sem
fronteiras
Outro aspecto que Cenair e Noel
compartilharam foi o fato de terem passado parte da juventude na Argentina,
mais precisamente na província de Misiones. Aos três anos, Cenair cruzou a
fronteira com sua família para viver em acampamentos de extração de madeira às
margens do Uruguai.
Este dado foi decisivo para a
formação de sua personalidade musical. Criado no meio de madeireiros, balseiros
e pescadores, absorveu desde cedo a musicalidade de suas formas de expressão.
Com os peões argentinos e paraguaios que trabalhavam com seu pai, Cenair
aprendeu os primeiros acordes da guitarra. Em Rio Ibicuí, lembraria o ambiente
dos acampamentos:
E de volta ao
acampamento passa o trago,
corre o chimarrão.
Contam causos,
proeza, alegria.
Lindas melodias
brotam do coração.
Esta convivência despertaria nele
outro traço comum aos troncos missioneiros: a postura fraternal para com os
países vizinhos. "A história missioneira não pertence somente ao Rio
Grande do Sul, mas também à Argentina e ao Uruguai" - pode-se ouvi-lo
dizer na entrevista gravada no Museu Antropológico Augusto Pestana.
A biografia de Cenair tem também
um outro aspecto - este de cunho trágico - em comum com a de seu grande amigo.
Como Noel, Cenair viveu pouco. Uma infecção hospitalar contraída durante a
colocação de uma prótese femural levou-o embora aos 41 anos, em 2 de janeiro de
1989.
Longa é a arte
Sua arte, porém - transcorridos,
agora, tantos anos desde sua morte quantos se passaram entre sua consagração no
Festival de Santo Tomé até ela - permanece viva, confirmando o dito de
Hipócrates.
Cenair Maicá é, hoje, uma
referência para todos aqueles que se propõem defender o patrimônio natural,
histórico, cultural, econômico e, principalmente, humano do Rio Grande do Sul.
Um episódio que ilustra bem sua importância é narrado pela cantora Maria Luiza
Benitez, que o homenageia no CD Ouro Azul. Uma noite, ela sonhou que Cenair lhe
dizia: "grava um disco só com canções de rio, porque canções e rios unem
os povos". "Acordei às 4 horas da manhã e anotei as músicas" -
conta.
(Cenair
Maicá)
Pelos Caminhos
que me levam a meu povo,
quero chegar
nas torres de São Miguel.
Olhar ao
longe, beber dos horizontes,
cruzar os
rios, campos e montes num tropel.
Sentir nos
ventos que sopraram em outros tempos
a história
viva dessa raça-guarani:
traço de união
simbolizando essa verdade.
A mesma casa,
o mesmo pão a dividir.
Que Deus me
guie ao bravo povo de Sepé
e junto
olharmos para o céu com igualdade
e ver que o
sangue derramado nesta luta
regou na terra
semente da liberdade.
Pois na
memória de seus filhos vive ainda
os mesmos
caminhos que trilharam outros pés.
Pelas noites,
entre o brilho das estrelas,
reluz de guia
o lunar do índio Sepé.
Pela noite,
entre o brilho das estrelas,
reluz de guia
o lunar de São Sepé.
Valdir Lima (Pertônico) e Cenair Maicá
Crédito Foto: http://artevidaeculturaportalfm.blogspot.com.br/2010/06/26062010-programa-sobre-cenair-maica.html
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