Por MARCO
MARQUES e ADRIANO REISDORFER
LAURA GUARANY é filha de um dos
maiores nomes da música e cultura popular gaúcha, o músico e compositor
são-luizense Noel Guarany (1941-1998).
Quando o pai percorria o Rio Grande e países da América Latina levando a arte
da música missioneira, ela ainda era uma criança que adorava cantar. Convivendo
junto aos amigos de Noel, em ensaios e rodas de música na casa da família,
Laura foi se apegando desde cedo ao estilo missioneiro de cantar.
No começo de sua carreira, competindo em
festivais, a música e a poesia missioneira estavam inerentes em sua formação,
tanto que ela, mesmo ainda “meio crua”, resolveu assumir ser cantora. Mais
tarde, após muita pesquisa sobre a obra de Noel, Laura começou a cantá-la em
seus shows. Hoje, ciente das cobranças que virão por conta do nome, ela está
convicta de que jamais poderia escapar ao desígnio de cantar as músicas do pai.
E as composições dos
chamados “Quatro Troncos Missioneiros” – Noel Guarany, Cenair Maicá, Pedro
Ortaça, e Jayme Caetano Braun – formam a base do repertório do show, onde
Laura, com a voz firme e afinadíssima, dá novas roupagens a clássicos da música
gaúcha como “Destino de Peão”, “Balseiros do Rio Uruguai”, “Romance do Pala
Velho” ou “Na Baixada do Manduca”, que são intercaladas com as de artistas do
folclore latino, como Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui.
Da entrevista participou
Neidi Fabrício da Silva, mãe de
Laura e viúva de Noel Guarany, que falou de passagens da vida do “Condor
Missioneiro”, do período em que viveu na Argentina, das viagens pelo interior
do Estado e América Latina e das perseguições que ele sofreu da ditadura.
O Nheçuano – Laura, quais
as recordações que tu guardas de teu pai, Noel Guarany? Lembras dele cantando e
tocando?
Laura Guarany – Das lembranças que tenho de meu
pai, desta parte musical dele, shows, etc., eu não lembro muito, eu ainda era
muito criança. Quando eu era mais mocinha e começava a cantar e a me interessar
mais por música, ele já estava encerrando a carreira, adoentado. De minha infância,
devia ter uns 7, 8 anos, eu lembro mais dessas músicas caseiras, das rodas de
música com os amigos e dos ensaios com os parceiros musicais e compositores que
frequentavam a nossa casa, eu estava sempre ali, junto deles. Mas,
pessoalmente, não tive muito contato com a parte musical do pai, isso se deu
através dos seus discos e gravações.
ON – Nessa época tu já ouvias as músicas dele? E quando foi que tu começaste
a cantar?
Laura – Sim, eu sempre gostei de todo tipo
de música, sempre ouvi de tudo. As músicas dele eram tranquilas, de uma
simplicidade, eram fáceis de cantar. Mas quando eu despertei pra música, foi
uma coisa assim, muito rápida. Em qualquer festa ou lugar em que estava, as pessoas
me viam e diziam: “Olha, é a filha do Noel, e ela gosta de cantar...” E então, lá
ia eu pra cantar. Mas eu ainda não estava pronta pra ser cantora. Então de
certa forma isso até me atrapalhou, porque na verdade eu ainda não sabia
cantar, e também já não tinha uma escola em casa, precisei buscar fora.
Primeiro eu me retraí, mas depois eu resolvi ir adiante.
“Eu
sempre vi a música missioneira que o pai
e os
outros cantavam como algo grandioso”
ON – O que te levou a seguir em frente e assumir a carreira de cantora? E
qual é o critério para a escolha do repertório que interpretas?
Laura – Isso é meio engraçado. Porque
quando a gente sente que tem um dom aquilo fica ali, como uma pulguinha atrás
da tua orelha, e tu não consegues esquecer. Eu várias vezes me desviei,
tentando não ir adiante, isso até atrapalhava minha vida, até que resolvi
encarar. No começo, interpretava todo tipo de música regional, até porque eu
sempre gostei de frequentar bailes e eventos gaúchos. Mas em certo momento eu
me decidi a cantar a nossa música, seguir esta linha. Eu sempre vi a música
missioneira que o pai e os outros artistas de nossa terra cantavam como algo
grandioso. Não cantar por cantar, tens que conhecer. Conhecer a História, o
porquê da elaboração daquela música. Porque, às vezes, uma música considerada
simples, por ter mais acordes e ser mais elaborada, é mal vista. E ela pode ter
vários significados, é até uma questão de literatura. Então eu comecei a ver
por este lado, comecei a pesquisar a música do pai, procurei conhecê-la melhor,
primeiro. Quando eu vi, estava totalmente envolvida, convites para
participações em CDs, em tributos ao Noel Guarany. Fui me adequando aos poucos,
mesmo estando “meio crua”. Até que chegou um momento em que decidi que deveria
assumir: sou filha do Noel Guarany, vou continuar com o meu trabalho, mas vou
cantar as músicas dele, não posso fugir disso.
ON – Ser a filha do Noel facilita ou dificulta? Tens preferências por
algumas canções dele?
Laura – Olha, primeiro facilita, porque tu
acabas tendo muitos contatos a partir deste fato. Acabo entrando em meios que,
se não fosse filha dele, seria difícil. Mas, por outro lado, dificulta, e
muito, porque a cobrança é muito grande. Por exemplo, tem músicas do pai que eu
não interpreto, que não combinam comigo e que às vezes as pessoas insistem para
que eu cante. Eu apenas canto se estiver à vontade. Cantando uma música,
defendo alguma coisa, não canto apenas por cantar. Gosto em especial de algumas
canções dele, como “Meu Quaraí-Mirim” que não consigo cantar porque me emociono
muito; “Destino Missioneiro”, que fala da raça, da cor; “Milonga da Chuva”, e “Filosofia
de Gaudério”, que é a autobiografia do pai.
ON – Qual a tua opinião sobre a falta de espaço na mídia para alguns estilos
musicais – como o missioneiro – que não se “enquadra” por não ter apelo popular
e não vender muito?
Laura – É muito difícil. A maioria dos músicos
tem que optar em seguir uma determinada linha. Ou tu fazes uma linha mais
popular, por gosto, pra vender, ou opta em seguir um ideal e batalhar por
aquilo. Às vezes, seguir este ideal é meio complicado. É difícil pro bolso, e a
aceitação do público é difícil. Por outro lado, o artista pode optar em fazer
de tudo e acaba não fazendo nem uma coisa nem outra. No meu caso, eu não posso
dizer que linha vou seguir por enquanto, estou apenas começando minha carreira.
Eu não sei o que será daqui pra frente, gosto de tantas coisas. Mas a princípio
a minha linha musical é esta, da música missioneira e de folclore latino
americano, é o que eu gosto, é o que eu conheço e é o que eu posso fazer no
momento.
ON – E tu gostas de ouvir e de cantar outros estilos, além do missioneiro e
latino?
Laura – Lógico, não tenho preconceito com
nenhum tipo de música, ouço de tudo. Sou jovem, moro em uma cidade
universitária (Santa Maria), vou a baladas, curto outros estilos, não tenho
nada contra. E nas brincadeiras, nas rodas, eu canto qualquer coisa, mas não
faria um trabalho dirigido para isso. Eu canto o que eu gosto, não me importo
se vou agradar ou não. Claro que sempre faço de tudo para agradar, porque a
gente depende do público. Gosto muito de folclore argentino, de artistas como
Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui. Então, nos meus shows, sempre procuro fazer
uma mistura, canto uma música missioneira alternada com outra do folclore.
Alguns clássicos que canto são mais conhecidos, outros nem tanto, não chegam ao
popular. Mas procuro fazer uma mistura que agrade a maioria.
“Hoje,
parece que o simples não agrada mais”
ON – Atualmente, algum artista da nova geração segue o estilo dos grandes da
música missioneira como Noel Guarany, Cenair Maicá, Pedro Ortaça ou Jayme
Caetano Braun?
Laura – Olha, eu acho que existe a herança
natural dos filhos, que é meu caso. Tem Anahy e Karaí Guedes (filhos de Jorge
Guedes), Patrício (filho de Cenair Maicá), Gabriel (filho de Pedro Ortaça), mas
eu não consigo pensar em ninguém no momento, afora os já consagrados, como Luiz
Carlos Borges e Jorge Guedes, por exemplo. Temos ótimos artistas que
representam bem a nossa música, mas que não seguem exatamente essa linha
missioneira. Os “Quatro Troncos Missioneiros” (Noel, Cenair, Ortaça e Jayme)
foram únicos, são ícones da música missioneira que viveram em outra época.
Hoje, além de nossa música de raiz estar mais marginalizada por questão de
mercado e mídia, a simplicidade daqueles tempos foi um pouco esquecida. Hoje, a
música dita de raiz, do campo, que vende discos, tem temas bem diferentes
(castração de gado, doma de cavalos, etc.). Naquela época, os temas eram bem
mais simples, singelos, como, por exemplo, as canções “Romance do Pala Velho”
ou “Destino de Peão”, do pai, onde ele cantava a sua indumentária, a sua
vivência. Hoje, parece que o simples não agrada mais.
ON – No seu auge, nas décadas de 1970/80, em plena ditadura militar, o Noel
teve muita dificuldade para mostrar o seu trabalho, em função das perseguições
e da censura imposta pelo regime. Isso de alguma forma prejudicou a sua
carreira?
D. Neidi – Com certeza atrapalhou a sua
carreira, porque ele era muito visado. Naqueles tempos, não se podia fazer
nada, qualquer reuniãozinha com meia dúzia de pessoas era controlada. E as
pessoas tinha muito medo, podiam sumir de repente que ninguém daria satisfação.
Não havia registro das prisões, a polícia alegava não saber de nada e as
pessoas simplesmente desapareciam. Foi um período muito difícil, não sei como
ele não foi preso. Mas como ele tinha muitos amigos, antes de o DOPS ou a PF encontrá-lo,
ele era avisado, dava um jeitinho e escapava. A PF convocava ele no mínimo uma
vez por mês para se “apresentar”.
Laura – As coisas eram complicadas, mas ele
não tinha medo, ele era muito topetudo, gostava de cutucar e não media as
palavras. Por exemplo, no CD “Destino Missioneiro”, gravado em 1979, entre uma
canção e outra ele discursava contra a ditadura, provocando os “milicos” e os
que apoiavam a repressão. Ele assumiu uma postura de enfrentamento ao regime
militar. (NE: Neste show histórico – gravado na época em que ocorriam as greves
do ABC paulista – entre uma música e outra, Noel ironizava a polícia política
da ditadura: “Agora dizem que eu estou na lista. Andam me chamando de
comunista, de socialista, elitista... Na verdade, eu sou nacionalista, no
sentido literal da palavra”).
ON – Consta uma lenda, no outro lado do rio Uruguai, na Argentina, que
quando o Noel morou por lá, em 1968, além de tocar e cantar, trabalhou cortando
cana para sobreviver...
D. Neidi – Não é lenda, é verdade. Além de
cortador de cana, foi transportador de balsa (balseiro) no rio Uruguai, na fronteira
com a Argentina, plantador de arroz no Mato Grosso. Ele fez tudo o que vocês
imaginam. Onde estava, tinha que trabalhar para arranjar dinheiro e sobreviver,
porque da música não saía nada. Se hoje é difícil, imagina naquela época, em
que o músico era considerado um vagabundo. As músicas que ele gravou em
1974/75, ele já as tinha prontas na cabeça desde 1968/69. Na época, em 1968,
ele foi cantor de tango, na Argentina, e foi só quando voltou para o Brasil que
ele gravou todas essas músicas. Lá, não tinha condições de gravar ou registrar
nada, só guardou na sua memória.
ON – E a questão dos direitos autorais das centenas de composições de Noel.
Hoje, a família recebe algum retorno financeiro da enorme reprodução de suas
canções nas rádios e das vendas de CDs?
Laura – Bah, nós estamos ricos, nadando no
dinheiro... Eu até nem preciso mais cantar... (risos)
D. Neidi – O que aconteceu foi o seguinte: o
Noel, na sua ingenuidade e boa fé, pensava que registrando suas canções garantiria
o direito sobre elas. Só que as gravadoras eram muito sacanas. Além do contrato
para gravar seus discos, faziam ele assinar uma autorização, um termo de cessão
de direito das suas composições, e se apossavam dos direitos autorais. Têm mais
ou menos umas trinta músicas do Noel, entre elas os seus maiores sucessos, que
há muito tempo não são mais dele, essas gravadoras tomaram posse. Então, quando
alguém vem pedir autorização para gravar alguma música dele, primeiro temos que
ver se ela ainda realmente pertence ao Noel.
ON – Noel Guarany foi um dos pioneiros na pesquisa e defesa da causa
indígena. Em 1975, propôs a construção de uma estátua em homenagem ao líder
guarani, Nheçu...
D. Neidi – O Noel não teve estudo. Ele cursou
apenas até o terceiro ano primário, mas era um autodidata que amanhecia em cima
dos livros. Ele lia muito, pesquisava muito, tinha contato direto com a
população e usava isso como inspiração para compor. E viajava bastante
(Paraguai, Argentina, Bolívia), buscando sempre um maior conhecimento popular e
sobre a questão indígena. Buscou conhecimento junto a grandes nomes da música
latina como Oswaldo Sosa Cordero, Aníbal Sampayo, Argentino Luna, Raulito Barboza
(argentinos) e outros do Uruguai e Paraguai (onde aprendeu a língua guarani).
Em 1974/75, foi ao Paraguai e trouxe de lá um grande harpista para tocar com
ele no Brasil. Chamava-se Lucio Martines, que morou conosco por mais de um ano.
Em 1972, Noel foi um pioneiro ao andar de bombacha e alparagatas, o que, na
época, era motivo de chacota. Sempre correu atrás de conhecimento, apesar das
enormes dificuldades financeiras e falta de apoio. Ele tinha que se virar com
seus próprios meios.
ON – Laura, tu tens ideia de gravar um CD só com músicas do teu pai, Noel Guarany?
Laura – Tenho. Aliás, eu já devia e
gostaria de tê-lo gravado. E com toda essa fortuna que recebemos de direitos
autorais não sobra um troco pra gravar o CD, né? (risos). Na verdade a minha
vida é um pouco agitada, o meu tempo é escasso. Mas este trabalho eu quero
fazer muito bem feito, muito bem elaborado, justamente pela cobrança que virá.
Provavelmente o repertório será um apanhado de toda a carreira do pai. Não sei
se gravarei alguma canção inédita, porque a gente ficou com alguns rascunhos de
músicas, a maioria era incompleta. As composições inéditas que tínhamos e já
estavam prontas, já cedemos para outros artistas gravarem.
Fonte: JORNAL "O
NHEÇUANO" - NÚMERO 7 -
ABRIL/MAIO 2011
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Crédito
Fotos 2º Encontro Fronteiriço de Artes (Itaqui/RS – 29/08/2015): Anderson
Vargas https://www.facebook.com/media/set/?set=oa.1083323085012890&type=3
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