terça-feira, 10 de julho de 2018

LUIZ CARLOS BARBOSA LESSA - Entrevista (Álvaro Santi)


AS — O senhor participa, ou participou alguma vez, de festivais nativistas de música? De que maneira?

LCBL — Quando começaram as Califórnias eu não morava aqui, morava em São Paulo. Eu tive notícias. Ao voltar, em setenta e quatro, eu cheguei a participar duma Califórnia, com uma música afro-riograndense. Eu achava que pudesse abrir a temática, não ficar apenas naquela temática campeira tradicional, eu resolvi concorrer com o Bambaquererê.

— Em que ano foi isso?

— Tenho a impressão de que foi em setenta e cinco. Inclusive o pessoal que foi interpretar, que era o grupo Tempero, vieram vestidos com uma roupa de rito afro, tipo de uma bata branca, e eu sei que isso escandalizou alguns companheiros. Alguns velhos tradicionalistas que já participavam dessas Califórnias se espantaram muito que eu estava... até algum deles disse que eu estava querendo fazer música de jangadeiro, o que não era o caso, “de jangadeiro”, mas pela maneira com que se apresentaram. Foi uma tentativa minha de abrir um pouco.

Quanto a participar de festivais nativistas, eu fui convidado para participar como jurado desses festivais. O último em que eu estive foi em São Lourenço do Sul, e pouco depois eu abro a Zero Hora um dia, e está lá uma fotografia, com destaque, do entrevistado, que era um músico nativista, dizendo com todas as letras que jamais participaria de um festival se de antemão soubesse que na comissão julgadora estava o Barbosa Lessa, e dava mais um ou dois nomes. Ora, aquilo me assustou um pouco porque afinal eu estava com um espírito puramente de colaboração, não estava querendo a glória por ser um integrante do festival. Então, por este motivo eu me retirei dos festivais, até mesmo como integrante das comissões julgadoras.

Um último dado que eu tenho que dar: Eu tenho, devido a minha formação campeira, numa cidadezinha pequena — depois andei correndo esse mundo, como profissional — mas eu gosto muito do silêncio, uma oportunidade de falar como eu estou falando contigo aqui. E tu sabes melhor do que ninguém que num ambiente de festival nós jamais poderemos trocar ideias, ou num fandango, porque estão tamanhos decibéis lá que é impossível o diálogo. Esse foi um outro motivo pelo qual eu me afastei não só dos festivais, mas também dos fandangos pela impossibilidade de a gente conversar com os companheiros.

— Entre os acontecimentos que resultaram na fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, e o fenômeno dos festivais nativistas, vinte anos mais tarde, uma das diferenças é que a intenção de recolher, estudar e preservar a tradição foi substituída pela tentativa de criação artística tomando como base aquela tradição. O senhor concorda com esta afirmação? Que outras diferenças existem? Os dois momentos históricos eram semelhantes? Por quê?

— Isso aí eu, conforme te disse não tenho acompanhado, não posso analisar o que houve. Posso é dar depoimento. Quando no ginásio, aos doze anos de idade, em Pelotas, eu vinha do interior do município de Piratini, com mais três colegas conterrâneos, Germano, o Clair e o Juvenal, aliás, não era o Juvenal, era o irmão dele o Vidal, eu resolvi, dei a ideia que foi muito aprovada, de nós fundarmos um grupo pra músicas gaúchas, com um repertório de músicas gaúchas. Tinha gaiteiro, violão e tudo o mais. Formamos então o grupo “Os Minuanos”. Eu tinha doze anos de idade, em mil novecentos e quarenta e dois. “Os Minuanos” durou mais ou menos uns três meses pelo simples fato de não haver cancioneiro gaúcho. Não havia música gaúcha. Nós começamos a cantar música sertaneja, a tocar tango, mas não tínhamos vibração praquilo, e paramos totalmente.

Depois, quando Paixão e eu iniciamos, fizemos um levantamento das danças gaúchas, chegamos a selecionar e completar aquelas danças nossas, não havia em Porto Alegre nenhum estúdio e nenhum cantor de música gaúcha. Nós precisávamos gravar para divulgar, e quem é que podia sair: o Paixão era funcionário da Secretaria da Agricultura, eu era jornalista free-lancer. Free-lancer aqui ou free-lancer lá era a mesma coisa, e eu tive de me mudar para São Paulo para ver se lá eu conseguia quem cantasse, quem gravasse, porque aqui não havia estúdio nem cantor. Então, com Inezita Barroso eu consegui um apoio, e com a Editora Irmãos Vitale também, e a etiqueta Copacabana.

Vê como era difícil aqui, com tu dizes, a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho: nós não tínhamos nem cantores, nem estúdio, nem nada. A grande diferença que eu vejo nessa fase, vinte anos mais tarde é que já se começou com um público, que antes não havia público. Então, quando um cantor foi na I Califórnia e abriu o peito, ele já tinha um público propiciado pelo próprio CTG, promotor da Califórnia, e dali foi indo pra outros e outros e outros... Eu acho que a grande contribuição do MTG foi essa, essencial, que é o público. Não foi mais preciso aos cantores nativistas passar por aquele desafio, aquele sacrifício que eu próprio passei de ter que me mudar do Rio Grande do Sul, pra tentar conseguir lá fora um intérprete e um estúdio. Hoje, mais do que vinte anos passados, qualquer guri que queira se iniciar no movimento, ele já tem uma série de festivais que ele possa conhecer, mais perto do município dele, ele pode ir de ônibus... Mas o essencial que ele tem agora e que não havia no início do movimento é o público. A ponto de ter formado já um mercado autossuficiente.

O que eu acho uma das deficiências do Movimento Nativista é se voltar única e exclusivamente para o mercado interiorano do RS. Excepcionalmente chega até Lajes mas ao Uruguai não chega, São Paulo nem pensar, e Rio de Janeiro muito menos. O MTG através dos CTGs continuou se espalhando pelo Brasil afora e até por outros países, e o Nativismo ainda está muito amarrado ao mercado consumidor local.

— Mas chega [o Nativismo] muito àquelas regiões onde o MTG está espalhado, no Paraná, Mato Grosso...?

— Sim. Onde o MTG chegou, e realiza fandango, aí tem que comparecer o tocador de gaita, o cantador, a fim de animar o fandango. Se não houvesse lá os CTGs representando o MTG, seria bem mais difícil. Mas não são os cantores, exclusivamente são mais os tocadores de fandango.

— Em que medida os festivais, e a posterior apropriação pelos meios de comunicação de massa do seu produto — a canção nativista ou gauchesca — serviram para popularizar o MTG e seus ideais?

— Eu acho que a parte musical é uma parte... A música nativista, ou gauchesca ela faz parte do Movimento Tradicionalista geral. Ela se apropriou da parte musical, da parte de danças, tocando como uma parte desse movimento como um todo. Hoje, se botar uma bomba na sede do MTG, e acabar com o MTG, eu acho que não será o fato de desaparecer a sigla MTG que vai [fazer] desaparecer o Movimento Tradicionalista, ou qualquer nome, a “Tendência Tradicionalista”. E os meios de comunicação ainda... tá muito relativo. A não ser que sejam emissoras voltadas para a música nativista, ainda aqui no RS é muito difícil...

— Em que medida essa popularização é um “mal necessário”, isto é, provoca a distorção ou diluição da tradição original?

— Não, acho que não. Nunca houve uma rigidez de princípios no MTG. Não é uma seita dogmática como alguns companheiros dão a entender. O próprio Luiz Coronel já se referiu alguma vez nesse sentido. Mas não há esse dogmatismo na tradição. E se houvesse esse dogmatismo, é óbvio que ele não teria se difundido tanto. Imagina se lá em Roraima, se lá no Japão, se em Los Angeles alguém queira se aproximar de um fogo de chão, queira tomar o seu chimarrão, e tenha que seguir dogmas tradicionalistas do MTG do Brasil, não sai nenhum. Nenhum. No entanto, cada mês são novos CTGs que estão sendo fundados, exatamente por essa liberdade de atuação. Não existem donos da verdade no Movimento Tradicionalista.

E veja bem, uma pessoa como eu, que me afastei um tanto do movimento por causa do som demasiado. Agora que nós estamos conversando, eu sinto... eu te convide para chegar perto da janela porque eu fumo. E nos últimos anos, eu tenho sentido inclusive por parentes chegados, uma grande restrição à minha pessoa pelo fato de eu fumar. Eles alegam que eu largando essa fumaça eles estão sendo forçados a respirar essa fumaça, exatamente é o que eu sinto, é a sensação de agressão que eu sinto quando eu vou a um fandango, a um festival, e até mesmo a reuniões tradicionalistas informais, onde eu sou obrigado a assistir a um som que é totalmente contra a minha feição, e segundo estudos da Dinara Paixão, este alto som, para quem frequenta habitualmente, no caso, músicos, etc. tende a levar a surdez, além de um estado de depressão bem sério. Então, vê bem, o cigarro... me deixa eu fumar o cigarro. E deixem os outros tocarem bem alto. Agora, me deem a liberdade de não participar dessas reuniões. Dançar, eu gostaria de dançar.

— Os festivais também foram eventualmente um espaço de polêmica e contestação ao MTG e à tradição. Isto teve consequências para o movimento? Quais?

— Ora, como eu estou um tanto afastado da lida habitual e rotineira do MTG, e do Movimento Nativista, devido aquela quase que solicitação do compositor nativista que não entraria num festival onde eu estivesse na comissão, eu não sou uma pessoa atualizada para falar. Mas eu não tenho sentido uma maior influência — assim, de quem está aqui fora! — do tradicionalismo na música nativista, como também não vejo influência da música nativista no tradicionalismo. Cada um tá seguindo os seus rumos, com plena liberdade, e não vejo choques maiores. Agora, às vezes, fazer uma agitação, um agito, promover discussões é interessante pra animar, pra esquentar o ambiente. Mas eu não, ao longo de todo esse tempo, eu não vi maior influência de um sobre o outro.

— Não houve... uma abertura? O senhor colocou que não existe dogma, não existe rigidez... As polêmicas que foram desencadeadas nas primeiras Califórnias, principalmente, não tiveram alguma influência nisso?

— Não, eu sempre vejo se complementando, muito mais um auxiliando o outro do que entrando em disputa, entrando em discussões teóricas... Na prática, eu acho que se complementam. Não tenho sentido nunca. Eu vi o movimento nativista da nossa música crescendo duma maneira impressionante, como também o MTG crescendo duma maneira impressionante, sem um atrapalhar o outro. Eu acho que eles se complementam. Agora, tu e outros estudiosos que estão mais voltados para a questão poderão perceber coisas que eu não percebo.

(29/09/1998)

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

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