AS
— O senhor participa, ou participou alguma vez, de festivais
nativistas de música? De que maneira?
LCBL
— Quando começaram as Califórnias eu não morava aqui, morava em
São Paulo. Eu tive notícias. Ao voltar, em setenta e quatro, eu
cheguei a participar duma Califórnia, com uma música
afro-riograndense. Eu achava que pudesse abrir a temática, não
ficar apenas naquela temática campeira tradicional, eu resolvi
concorrer com o Bambaquererê.
—
Em que ano foi isso?
—
Tenho a impressão de que foi em
setenta e cinco. Inclusive o pessoal que foi interpretar, que era o
grupo Tempero, vieram vestidos com uma roupa de rito afro, tipo de
uma bata branca, e eu sei que isso escandalizou alguns companheiros.
Alguns velhos tradicionalistas que já participavam dessas
Califórnias se espantaram muito que eu estava... até algum deles
disse que eu estava querendo fazer música de jangadeiro, o que não
era o caso, “de jangadeiro”, mas pela maneira com que se
apresentaram. Foi uma tentativa minha de abrir um pouco.
Quanto
a participar de festivais nativistas, eu fui convidado para
participar como jurado desses festivais. O último em que eu estive
foi em São Lourenço do Sul, e pouco depois eu abro a Zero Hora um
dia, e está lá uma fotografia, com destaque, do entrevistado, que
era um músico nativista, dizendo com todas as letras que jamais
participaria de um festival se de antemão soubesse que na comissão
julgadora estava o Barbosa Lessa, e dava mais um ou dois nomes. Ora,
aquilo me assustou um pouco porque afinal eu estava com um espírito
puramente de colaboração, não estava querendo a glória por ser um
integrante do festival. Então, por este motivo eu me retirei dos
festivais, até mesmo como integrante das comissões julgadoras.
Um
último dado que eu tenho que dar: Eu tenho, devido a minha formação
campeira, numa cidadezinha pequena — depois andei correndo esse
mundo, como profissional — mas eu gosto muito do silêncio, uma
oportunidade de falar como eu estou falando contigo aqui. E tu sabes
melhor do que ninguém que num ambiente de festival nós jamais
poderemos trocar ideias, ou num fandango, porque estão tamanhos
decibéis lá que é impossível o diálogo. Esse foi um outro motivo
pelo qual eu me afastei não só dos festivais, mas também dos
fandangos pela impossibilidade de a gente conversar com os
companheiros.
—
Entre os acontecimentos que
resultaram na fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, e o
fenômeno dos festivais nativistas, vinte anos mais tarde, uma das
diferenças é que a intenção de recolher, estudar e preservar a
tradição foi substituída pela tentativa de criação artística
tomando como base aquela tradição. O senhor concorda com esta
afirmação? Que outras diferenças existem? Os dois momentos
históricos eram semelhantes? Por quê?
—
Isso aí eu, conforme te disse
não tenho acompanhado, não posso analisar o que houve. Posso é dar
depoimento. Quando no ginásio, aos doze anos de idade, em Pelotas,
eu vinha do interior do município de Piratini, com mais três
colegas conterrâneos, Germano, o Clair e o Juvenal, aliás, não era
o Juvenal, era o irmão dele o Vidal, eu resolvi, dei a ideia que foi
muito aprovada, de nós fundarmos um grupo pra músicas gaúchas, com
um repertório de músicas gaúchas. Tinha gaiteiro, violão e tudo o
mais. Formamos então o grupo “Os Minuanos”. Eu tinha doze anos
de idade, em mil novecentos e quarenta e dois. “Os Minuanos”
durou mais ou menos uns três meses pelo simples fato de não haver
cancioneiro gaúcho. Não havia música gaúcha. Nós começamos a
cantar música sertaneja, a tocar tango, mas não tínhamos vibração
praquilo, e paramos totalmente.
Depois,
quando Paixão e eu iniciamos, fizemos um levantamento das danças
gaúchas, chegamos a selecionar e completar aquelas danças nossas,
não havia em Porto Alegre nenhum estúdio e nenhum cantor de música
gaúcha. Nós precisávamos gravar para divulgar, e quem é que podia
sair: o Paixão era funcionário da Secretaria da Agricultura, eu era
jornalista free-lancer. Free-lancer aqui ou free-lancer lá era a
mesma coisa, e eu tive de me mudar para São Paulo para ver se lá eu
conseguia quem cantasse, quem gravasse, porque aqui não havia
estúdio nem cantor. Então, com Inezita Barroso eu consegui um
apoio, e com a Editora Irmãos Vitale também, e a etiqueta
Copacabana.
Vê
como era difícil aqui, com tu dizes, a fundação do Movimento
Tradicionalista Gaúcho: nós não tínhamos nem cantores, nem
estúdio, nem nada. A grande diferença que eu vejo nessa fase, vinte
anos mais tarde é que já se começou com um público, que antes não
havia público. Então, quando um cantor foi na I Califórnia e abriu
o peito, ele já tinha um público propiciado pelo próprio CTG,
promotor da Califórnia, e dali foi indo pra outros e outros e
outros... Eu acho que a grande contribuição do MTG foi essa,
essencial, que é o público. Não foi mais preciso aos cantores
nativistas passar por aquele desafio, aquele sacrifício que eu
próprio passei de ter que me mudar do Rio Grande do Sul, pra tentar
conseguir lá fora um intérprete e um estúdio. Hoje, mais do que
vinte anos passados, qualquer guri que queira se iniciar no
movimento, ele já tem uma série de festivais que ele possa
conhecer, mais perto do município dele, ele pode ir de ônibus...
Mas o essencial que ele tem agora e que não havia no início do
movimento é o público. A ponto de ter formado já um mercado
autossuficiente.
O
que eu acho uma das deficiências do Movimento Nativista é se voltar
única e exclusivamente para o mercado interiorano do RS.
Excepcionalmente chega até Lajes mas ao Uruguai não chega, São
Paulo nem pensar, e Rio de Janeiro muito menos. O MTG através dos
CTGs continuou se espalhando pelo Brasil afora e até por outros
países, e o Nativismo ainda está muito amarrado ao mercado
consumidor local.
—
Mas chega [o Nativismo] muito
àquelas regiões onde o MTG está espalhado, no Paraná, Mato
Grosso...?
—
Sim. Onde o MTG chegou, e realiza
fandango, aí tem que comparecer o tocador de gaita, o cantador, a
fim de animar o fandango. Se não houvesse lá os CTGs representando
o MTG, seria bem mais difícil. Mas não são os cantores,
exclusivamente são mais os tocadores de fandango.
—
Em que medida os festivais, e a
posterior apropriação pelos meios de comunicação de massa do seu
produto — a canção nativista ou gauchesca — serviram para
popularizar o MTG e seus ideais?
—
Eu acho que a parte musical é
uma parte... A música nativista, ou gauchesca ela faz parte do
Movimento Tradicionalista geral. Ela se apropriou da parte musical,
da parte de danças, tocando como uma parte desse movimento como um
todo. Hoje, se botar uma bomba na sede do MTG, e acabar com o MTG, eu
acho que não será o fato de desaparecer a sigla MTG que vai [fazer]
desaparecer o Movimento Tradicionalista, ou qualquer nome, a
“Tendência Tradicionalista”. E os meios de comunicação
ainda... tá muito relativo. A não ser que sejam emissoras voltadas
para a música nativista, ainda aqui no RS é muito difícil...
—
Em que medida essa popularização
é um “mal necessário”, isto é, provoca a distorção ou
diluição da tradição original?
—
Não, acho que não. Nunca houve
uma rigidez de princípios no MTG. Não é uma seita dogmática como
alguns companheiros dão a entender. O próprio Luiz Coronel já se
referiu alguma vez nesse sentido. Mas não há esse dogmatismo na
tradição. E se houvesse esse dogmatismo, é óbvio que ele não
teria se difundido tanto. Imagina se lá em Roraima, se lá no Japão,
se em Los Angeles alguém queira se aproximar de um fogo de chão,
queira tomar o seu chimarrão, e tenha que seguir dogmas
tradicionalistas do MTG do Brasil, não sai nenhum. Nenhum. No
entanto, cada mês são novos CTGs que estão sendo fundados,
exatamente por essa liberdade de atuação. Não existem donos da
verdade no Movimento Tradicionalista.
E
veja bem, uma pessoa como eu, que me afastei um tanto do movimento
por causa do som demasiado. Agora que nós estamos conversando, eu
sinto... eu te convide para chegar perto da janela porque eu fumo. E
nos últimos anos, eu tenho sentido inclusive por parentes chegados,
uma grande restrição à minha pessoa pelo fato de eu fumar. Eles
alegam que eu largando essa fumaça eles estão sendo forçados a
respirar essa fumaça, exatamente é o que eu sinto, é a sensação
de agressão que eu sinto quando eu vou a um fandango, a um festival,
e até mesmo a reuniões tradicionalistas informais, onde eu sou
obrigado a assistir a um som que é totalmente contra a minha feição,
e segundo estudos da Dinara Paixão, este alto som, para quem
frequenta habitualmente, no caso, músicos, etc. tende a levar a
surdez, além de um estado de depressão bem sério. Então, vê bem,
o cigarro... me deixa eu fumar o cigarro. E deixem os outros tocarem
bem alto. Agora, me deem a liberdade de não participar dessas
reuniões. Dançar, eu gostaria de dançar.
—
Os festivais também foram
eventualmente um espaço de polêmica e contestação ao MTG e à
tradição. Isto teve consequências para o movimento? Quais?
—
Ora, como eu estou um tanto
afastado da lida habitual e rotineira do MTG, e do Movimento
Nativista, devido aquela quase que solicitação do compositor
nativista que não entraria num festival onde eu estivesse na
comissão, eu não sou uma pessoa atualizada para falar. Mas eu não
tenho sentido uma maior influência — assim, de quem está aqui
fora! — do tradicionalismo na música nativista, como também não
vejo influência da música nativista no tradicionalismo. Cada um tá
seguindo os seus rumos, com plena liberdade, e não vejo choques
maiores. Agora, às vezes, fazer uma agitação, um agito, promover
discussões é interessante pra animar, pra esquentar o ambiente. Mas
eu não, ao longo de todo esse tempo, eu não vi maior influência de
um sobre o outro.
—
Não houve... uma abertura? O
senhor colocou que não existe dogma, não existe rigidez... As
polêmicas que foram desencadeadas nas primeiras Califórnias,
principalmente, não tiveram alguma influência nisso?
—
Não, eu sempre vejo se
complementando, muito mais um auxiliando o outro do que entrando em
disputa, entrando em discussões teóricas... Na prática, eu acho
que se complementam. Não tenho sentido nunca. Eu vi o movimento
nativista da nossa música crescendo duma maneira impressionante,
como também o MTG crescendo duma maneira impressionante, sem um
atrapalhar o outro. Eu acho que eles se complementam. Agora, tu e
outros estudiosos que estão mais voltados para a questão poderão
perceber coisas que eu não percebo.
(29/09/1998)
Fonte:
Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da
Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em
Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.
Disponível
em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/93345
Acesso
em 22/06/2017
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