LC
— No ano de 1970 houve uma Califórnia, eu não estive presente, em
que ganhou a música do Colmar, que já era uma música que tinha uma
postura nova em relação ao regionalismo. Em 71, com “Gaudêncio
Sete Luas”, eu diria que foi um momento muito “estopim” da
Califórnia (eu não estou fazendo elogio de boca própria, que é
desaforo). Mas, vamos dizer assim, até que ponto isto acendeu, até
que ponto isto representou...
Eu
diria que Gaudêncio Sete Luas naquele ano foi uma música de
impacto. Impacto na medida em que rompia muito a letra, rompia muito
a narrativa linear, ficava com versos soltos. Eu próprio não tinha
nem consciência do que estava fazendo, eu deixei embaixo da [porta
da] casa do Marco Aurélio [Vasconcelos] uma letra... Ele leu e
disse: “Que letra gozada aquilo, não entendi coisa com coisa mas
achei engraçado... Gostei.” E fez a música do Gaudêncio, foi o
Leopoldo [Rassier] a Lúcia Helena e o Marco Aurélio [que defenderam
a música no festival], a música é do Marco Aurélio. E a música
causou um grande espanto e agradabilidade, mas, vamos dizer assim,
dentro da “cúpula” da Califórnia foi uma música inaceitável.
O próprio vice-presidente da Califórnia disse: “se essa música
vencer a Califórnia eu me retiro da Califórnia.” A esposa dele
até disse para mim: “essa música é um chocalho, não diz coisa
com coisa”.
Então,
vamos dizer assim, houve um primeiro estopim de rompimento de
tradição formal. Esse movimento de tradição formal, eu diria que
ele avança até a VI Califórnia, VII, e depois acontece
esporadicamente. Eu diria que até a VII Califórnia o que existiu de
mais glorioso desse movimento tradicionalista aconteceu ali, que foi
a presença de um mosaico múltiplo de várias pessoas que tentavam,
através dessa qualidade essencial da arte, que é o estilo, tentavam
propor trabalhos completamente diferenciados. Então tinha Marinho
Barbará com Aparício Silva Rillo; Marco Aurélio e Luiz Coronel;
Kleiton, Kledir e Fogaça; Jerônimo Jardim; o grupo “Os Angüeras”
de lá de São Borja...
AS
— Os Tapes...
—
Os Tapes, mais outro grupo
também, aquele pessoal de lá da própria cidade [Uruguaiana],
fazendo músicas que definiam um mosaico, uma multiplicidade de
propostas. E o festival apresentava essa maravilha de coisas
completamente diferenciadas. E a coisa vai disparando, vai disparando
de uma forma incontrolável.
Até
que um dia, numa apresentação da Califórnia, — e eu te diria que
“Seis da manhã” de Jerônimo Jardim, “Piquete do Caveira”,
“Coto de Vela”, pra te dar alguns exemplos, foram músicas que
trouxeram... Eu te diria que aquilo foi uma maravilha, foi um ciclo
maravilhoso do festival... Até eu te diria que eu ganhei a III
Califórnia com “Canto de morte de Gaudêncio [Sete Luas]”, e foi
um trabalho extremamente conservador, que ganhou vamos dizer assim
pela força temática, pela interpretação da Rosa Maria, mas que
estaria até marginal dentro desse movimento de profunda renovação
formal do festival.
Hoje
eu faço essa visão.
E
aquilo ali vai indo, vai indo... E há uma espécie de tentativa de
enquadramento da música de temática regional gaúcha no grande
filão da música popular brasileira. Há uma reapresentação de
músicas regionais no Teatro São Pedro, e o Paixão Cortes (que é
uma pessoa que eu amo e admiro), umas quatro filas atrás de mim, eu
me lembro que ele gritou: “E a velha gaita do Rio Grande?”
Simbolicamente
eu coloco esse momento como o momento em que as coisas param de ser
proponentes para ser conservadoras. A partir daquele momento, embora
o Paixão não seja um homem conservador, as coisas se tornaram
extremamente conservadoras. Houve uma espécie dum recuo conservador
dentro do movimento dos festivais, e aquilo que era essencial para a
vitalidade do movimento regionalista, que era a convivência do
proponente e do retrospectivo, passa a ser apagado, porque não há
mais lugar para o proponente.
—
Isso tem uma data...?
—
Daria pra [situar] em 77, 78 isso
aí. Depois, as coisas proponentes e novas vão ser esporádicas, mas
como tese, elas são recusadas. Passa a haver assim uma defesa da
tradição, da velha ideologia do épico, nostálgico e romântico,
uma espécie dum canto da valentia e da bravura, ou seja, se
desdobram... Atolam o pé no mito do gaúcho heroico, na eleição do
passado como paraíso perdido.
E
a partir daí o movimento não consegue mais voar. Acontecerão
coisas maravilhosas, como a música do Nico Fagundes, que é uma
música muito bem sucedida, do Alegrete; acontecerão coisas
fantásticas, eu acho, lindíssimas, como, do Napp, “Desgarrados”;
mas como regra geral, a temática está presa numa nostalgia
passadista, e os espaços para abertura formal, para adaptação e
conciliação da música às grandes linhas da música popular
brasileira ficaram barrados.
Então
nós chegamos, já no fim dos anos 70, a uma dramática situação em
que, tu vês, num festival, nada mais parecido com a quinta música
que a quarta, nada mais parecido com a quinta música do que a
sexta... As músicas eram todas feitas dentro duma única narrativa.
Em vez da inovação, se juntavam cada vez vozes mais altissonantes e
eloquentes. A criação musical perdendo espaço, a criação poética
sendo completamente confinada nessas linhas do tradicional e do épico
repetitivo. E eu tenho a impressão que o festival fica valioso como
mercado de trabalho; fica valioso como expressão de defesa da
cultura regional; fica como peça de resistência contra o domínio
cultural das grandes metrópoles, num estado que tem uma tradição
de resistência; mas de qualquer forma esteticamente deixa de ser um
produto cultural valioso, na medida em que passa a não ter condição
de ser uma bela arte, uma arte residente, e que ganha espaço, e que
nós mesmos nos encantemos. Se torna uma coisa...
Essa
cultura dos festivais cria uma verdadeira cultura de layouts. Nós
temos mais de mil layouts e pouquíssimas artes finais. Poucas coisas
ganham forma de arte final, como é o caso da música “Vento
Negro”, de Fogaça, como é o caso de uma música própria minha,
Cordas de Espinho, que foi gravada pela Fafá [de Belém]. Há poucos
episódios de alguma gravação valiosa em termos de arte final.
Cria-se uma grande cultura de layouts, sem acabamento.
Então,
tu estás falando com uma pessoa que tem de um lado a defesa e um
encantamento de ter participado e de participar desse movimento de
valorização da cultura gaúcha, mas também tem a frustração de
ver trancado o rumo mais criativo e mais livre, porque o movimento
não soube como conciliar o proponente com o retrospectivo.
—
Não seria natural, tu achas que
não teria uma limitação de tempo, digamos, para a inovação, ou
seria possível continuar inovando sempre?
—
Foi muito breve o ciclo inovador.
O ciclo tem trinta anos, dez inovadores e vinte repetitivos. Vamos
dizer, eu tenho dois terços de cansaço e um terço de vitalidade.
—
Isso seria por que houve uma
apropriação, vamos dizer, pelo conservadorismo, pelo
tradicionalismo, de um movimento que não era...
—
Há uma coisa muito estranha
nisso. O festival é um encontro que tem suas próprias regras. A
música que se ouve num festival, a música que triunfa num festival
não é a música que tu gostas em casa. Não é a música que
gostarias de ouvir em rádio. O festival monta, o impõe com o tempo
suas próprias regras: dois, três versos a menos e um verso
vibrante... Parece que a vitalidade cênica se impõe sobre a própria
qualidade. Os cantos meigos, uma música como por exemplo: “Milongas
tristes, milongas...” jamais vai ganhar um festival, e se tu fores
ouvir em casa, vais dizer que é uma música mil vezes melhor que
muitas vencedoras de festivais. Porque o festival impõe uma
grandiloquência operística, que não tem nada a ver com qualidade.
As regras do festival impuseram uma grandiloquência operística que
nada tem a ver com qualidade estética, ou possibilidade de
sensibilizar, ou riqueza poética das canções.
—
Que tem a ver talvez com o tipo
do gaúcho, com o estereótipo?
—
Não. Tem a ver tipicamente com o
evento “festival”. Se tu tens ali um público, aí tu vais ouvir
geralmente de madrugada, porque já houve show, já houve não sei o
quê, vai ser acordado por grandes gritarias, e jamais por coisas...
Esse ano, eu fui a um festival, ganhei o prêmio “melhor letra”.
Uma música que era um encanto, mas não foi nem conhecida no
festival! Os jurados lá deram o prêmio de melhor letra. Porque ela
era meiga. As coisas meigas não terão lugar. Essa fusão, essa
componente lírica portuguesa nossa, não tem lugar em festival. Tem
momentos, assim, de coisas minhas que assombraram no espaço do
festival, e estavam fora da estrutura épica, mas são coisas
excepcionais, como aquele “Quando morre um menino”, que o Lênin
cantou ali na Moenda. Foi um caso excepcional, parou o festival.
Então tem um cara falando da morte de um menino... Mas são coisas
raras. Geralmente não ganham espaço as coisas meigas. Então é
difícil dizer, eu ter essa balança aí, o que teria de ser feito.
Teria de ser feita uma grande arte final desse produto cultural, já
que é, como eu disse, uma cultura de layouts.
E
o grande problema é essa cultura de jurados. Essa história de
jurados, das pré-seleções, essa história dos donos do festival, o
que eles querem, que propostas eles têm. Dono de festival não tem
que ter proposta nenhuma, que tem que ter proposta é artista, com
sua liberdade de criar arranjos, de criar músicas, de criar versos.
Não se respeitou o poder de impacto da arte, para se abrir, para se
criar uma grande valorização da acomodação. E essa é a crise dos
festivais.
—
Então isso seria a restrição
da liberdade criativa?
—
É, criou-se uma ideologia
acomodada. Os caras já vão atrás da... Os músicos já vão atrás
da ajuda de custo, que já faz parte da sua forma de viver, já fazem
aquelas coisas tudo parecidas, sem... Aí, daqui a pouco, um cara
fura o bloqueio, e faz alguma coisa realmente de qualidade estética,
mas a qualidade estética é exceção, não é a virtude permanente
da música dos festivais. Ao passo que, se tu ouvires as músicas da
primeira década, tu vais ver que ali tinha, ali acontecia isso. A
Ciranda, um festival em que aconteciam coisas gostosas, a Ciranda de
Taquara, se tu fizeres uma revisão dos discos da Ciranda, tinha
muita coisa valiosa, não é? E por incrível que pareça, uma
contradição aí...
—
Uma universalidade maior.
—
É. Teve uma universalidade na
medida em que procurava abrigar a cultura alemã, teve uma abertura
maior. Enquanto [a Tertúlia de] Santa Maria, uma cidade
universitária, que era para ser um centro criativo, se tornou o
festival mais conservador do Rio Grande do Sul, porque havia um CTG
conservador, que impôs ordens e disciplina na criação. Então
Santa Maria, que poderia ter desempenhado um papel de estopim
criativo, passou a ser um freio nas definições de criação da
música do Rio Grande do Sul. E hoje quem está realizando um
festival mais aberto, por incrível que pareça, é a Moenda, e o de
São Lourenço. São esses dois que estão assim meio... sem dogma,
sem muita coisa, permitindo que entrem coisas mais livres.
Houve
uma tentativa também muito boa, que foi aquela de Santa Rosa. Aí,
por exemplo, o Pampa e Luz do Pery com o Luiz de Miranda, um grande
momento da criação da música do Rio Grande do Sul. Faltou talvez a
complementação de tudo isso, uma reapresentação de vencedoras no
final do ano em Porto Alegre, uma arte final desse trabalho.
Faltou
Porto Alegre realizar um grande festival de música do Rio Grande do
Sul, em que coubesse o regional e o não-regional, numa convivência
muito saudável, porque nada briga com nada em arte. Eu sou um cara
mais adepto da sulinidade que do regionalismo. Acho que as coisas são
mais sulinas que regionais.
—
Tu participavas do Movimento
Tradicionalista Gaúcho, antes dos festivais? Ou participaste em
algum momento?
—
Não, nunca participei, não sou
filho de tradição rural. Sou nascido em cidade do interior, morei
em campanha, morei no posto, como é que se chamava..., Posto de
Puericultura em Piratini, onde eu ia de charrete levar minha mãe no
posto. A Dona Amelinha do Posto, como chamavam... Conheci um
pouquinho da campanha.
Mas
ninguém cobra do Érico Veríssimo que ele tenha usado chiripá e
sido domador de cavalo. Pra conhecer o Rio Grande do Sul não precisa
nada disso. Eu não gosto de ter participado disso. Até, eu tenho
alguns amigos, como o poeta Paulo [Roberto] do Carmo, que dizem que
de todo esse trabalho meu, que já é um trabalho grande, com vinte e
cinco livros, talvez as melhores coisas, segundo a visão dele, que
eu teria escrito, seriam esses cantos de Gaudêncio, de Leontina, dos
Retirantes do Sul (que é um escrito em cima do “Morte e Vida
Severina). Então eu sou um dos muitos participantes do festival, mas
com esta visão.
Por
isso eu estive muito, eu estive mais de dez anos absolutamente
retirado do festival. Aí eu fiz um regresso, um regresso muito
vitorioso, quase tudo que eu fiz no meu regresso venceu: Pai; Campo
não sonha, floresce; Coração ferido da América...
Quase
todas as coisas que eu fiz depois do meu regresso, do fim dos anos 80
até aqui saiu vitorioso. Então isso aí me credencia a dizer que eu
falo como visão cultural, não como nenhum... A esta altura da minha
vida seria muito pequeno colocar qualquer rancor ou descontentamento.
Não, eu falo como movimento cultural, e essa coisa... O festival não
poderia ter perdido pessoas como Geraldo Flach. Não podia ter
perdido pessoas como... músicos de primeira grandeza que tem aí,
que foram se afastando: Toneco...
—
O próprio Jerônimo.
—
Jerônimo. Perdeu porque foram
ficando tão conservadores que as pessoas não sentiam espaço mais
nisso aí.
—
Sobre a tua maneira de trabalhar:
fazes eventualmente o poema para o festival... em relação às
regras mesmo, às “linhas”?
—
Eu devo dizer que em matéria de
regionalismo eu estou no INPS. Eu só voltei a escrever regionalismo
para o livro “Pampa Gaúcho – A Terra e o Homem”, que eu não
encontrei poemas que falassem sobre determinados assuntos, e criei
poemas sobre os assuntos. E até para mim foi uma surpresa porque eu
senti que ainda dava para escrever, que os versos ainda me
contentavam. Mas eu não escrevo mais sobre o regionalismo.
Rarissimamente escrevo. Escrevi o que? Uma letra depois que eu li o
livro Lavoura Arcaica, que me deixou uma letra na cabeça. Estou mais
ligado num outro trabalho, sobre amor, sobre política, sobre o
país... Como é o caso de Um Girassol na Neblina.
Estou
fazendo uma antologia e revisão de toda a obra, reunindo tudo isso
num livro. Estou no caminho de fazer o CD “Paulo José interpreta
Luiz Coronel”... Estou no caminho de rever esta obra, que vai
ficando volumosa: da qualidade digam os outros, mas a mim me cabe
organizar.
—
Mas, na época em que tu estavas
mais envolvido com esse assunto, quando escrevias, eu queria saber em
que medida procuravas seguir as regras... Não os modelos, mas as
regras estabelecidas nos regulamentos... Ou procuravas romper com
isto?
—
Eu não procurava romper, nem me
submeter. Eu tinha uma criação dentro do meu estilo, dentro do meu
verso. Inclusive talvez tenha sido um dos primeiros a fazer quadras,
dentro do regionalismo. Havia uma tradição payadora, que era outra
estrutura de versos: décimas,... E eu fazia quadrinhas, que era a
velha tradição lusa, que acompanha a Revolução Farroupilha. Eu
tinha lido aquelas coisas. Os cantos da Revolução Farroupilha eram
quadrinhas... Então, eu estava muito dentro dessa tradição aí,
dessa linha das quadras, dos versos vigorosos. Cada verso como uma
bala deflagrada.
Então,
eu buscava alguns temas e criava, assim, sem pensar se ia agradar ou
não ia agradar. Não havia endereço. Eu entrei, por exemplo, na
linha de Gaudêncio Sete Luas, e escrevi doze cantos de Gaudêncio.
Entrei na linha de Leontina, e escrevi oito letras. Na linha
Retirantes do Sul, escrevi catorze textos. Então eu entrava dentro
de um ciclo de criação. E aí mandava os trabalhos. Não estava
muito preocupado se iam gostar ou não iam gostar. Alguns trabalhos
meus e do Sérgio Rojas foram extremamente recusados.
Eu
me lembro que eu ganhei um prêmio com O Tempo e o Vento. Eu ia
caminhando, passou um gaudério, olhou para mim e disse: “Não tem
vergonha de levar esse prêmio?” Eu até tremi, disse... pô, esse
troço aí gera conflito para mim. O que houve naquele festival em
que houve aquela quebradeira? Por que o Jerônimo tinha ganho com
Astro Haragano, e eu tirado segundo lugar com O Tempo e o Vento, com
uma letra extremamente fora dos parâmetros do regionalismo: “Havia
na boca da noite / um riso lânguido e triste / De moça que vai ao
baile / Se vê no espelho e desiste” Não tem nada que ver com a
tradição regionalista. Então, aquele dia o festival parece que
perdeu a capacidade de acomodação. Naquele dia explodiu a
Califórnia porque perdeu a capacidade de acomodação entre o
proponente e o preservador. Por isso houve aquela explosão. A regra
na qual Califórnia sabia caminhar era na acomodação dessas duas
coisas, e nisso ela foi mestre, até que perdeu essa sabedoria. Hoje
ela não tem mais, e se tornou um festival conservador.
(...)
A
verdade é que eu nunca, apesar de ser um homem de temperamento
afável, carinhoso e até bastante diplomático nas minhas relações
pessoais, eu nunca fiz relações públicas com a minha arte, com meu
trabalho. Nunca deixei de dizer as coisas que eu penso sobre essas
coisas como dever de consciência criativa. Essas coisas muitas vezes
eu disse, e criei muita hostilidade, muito conflito. Até me lembro
de terem me chamado de mal-agradecido, que a Califórnia teria sido
meu primeiro palco, primeiro espaço...
—
Veículo de divulgação...
—
... do meu trabalho,
importantíssimo, que eu vivo reconhecendo. Mas lá por reconhecer eu
não teria o direito... Eu teria o dever de fazer críticas, na
medida em que as críticas possam ser colaboração. Então eu sempre
fiz essas ponderações, quando foi aberto espaço. E acho que é uma
tese importante essa que tu trabalhas, de rever essas letras, de
rever essas músicas, de rever essas interpretações, de rever os
cantores que surgiram, de rever as músicas que conquistaram espaço,
conquistaram mídia, que veículos se conquistou. Por que de fato não
houve o rompimento de um confinamento. Houve apenas criação de uma
rádio aqui, um pouco de espaço nas rádios do interior, que não
havia antes, e um programa de televisão, mas mesmo assim confinado.
Não há o triunfo de um produto cultural gaúcho.
—
Mas houve uma popularização
grande, e em certa medida a Califórnia é responsável por isso.
—
Sim, ela é o estopim de tudo.
Ela é a matriz generosa de tudo isso.
—
E o resultado seria mais
conservador sem que tivesse existido a Califórnia?
—
Sem que existisse Califórnia,
sem que existisse esse movimento, vamos chamá-lo de “Ciclo dos
Festivais”, o filão regionalista estaria muito soterrado. Temos
que pensar que o folclore é base para criações vigorosas. É
dentro do folclore espanhol que Lorca vai criar Bodas de Sangue. É
preciso que o teatro crie uma Bodas de Sangue. Não vai ser na
repetição dos CTGs dançando o “Pezinho” e o “Balaio” que
vai se criar uma dança regional gaúcha. Vai ter que se criar uma
grande estilização criativa em cima dos nossos motivos, guardando a
essência sulina. Aí se está criando verdadeiramente uma arte.
Assim também na poesia, assim também na pintura. Nelson Jungbluth é
um pintor de maravilhas do Rio Grande do Sul porque soube se livrar,
soube criar, soube dar um traço pessoal, soube dar o triunfo do
estilo, sem o qual não existe arte. É esse hiper-realismo que o
regionalismo procurou nas narrativas, e esse culto ao passado que
confinaram a coisa numa atrofia criativa.
(...)
Eu
estava dizendo que aos organizadores dos festivais cabia: dar boa
alimentação, boa hospedagem e ajuda de custo. Mas não competia
dizer o que os artistas deveriam fazer. Na medida em que eles
quisessem dizer o que os artistas deveriam fazer, eles estariam
fazendo uma arte de encomenda, o que já é em princípio
empobrecedor. Uma coisa é tu chamares um grande artista e fazeres
uma encomenda. Uma coisa é o Papa Júlio II chamar o Michelangelo
fazer uma encomenda, outra coisa é tu criares um evento cultural com
encomendas.
E
quando eu protestei contra isso eu criei muitas antipatias contra
mim. Mas eu segurei o barco, disse que não, que eu achava isso. Que
não tinham nada que me dizer o que eu tinha que fazer.
Eu
tenho histórias de festival maravilhosas. Na IV Califórnia, quando
um cara cantou: “Um tombo / do lombo / é um rombo / no chão / Eu
caio / mas saio / com a crina / na mão.” Isso levantou o público.
Nunca visto. O estribilho, de pé. Pensei: já ganhei o festival. Aí
um jurado disse: é plágio. Até hoje não explicou plágio de quê.
E a música foi desclassificada, na Califórnia.
(07/09/1998)
Fonte:
Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da
Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em
Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.
Disponível
em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/93345
Acesso
em 22/06/2017
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