terça-feira, 10 de julho de 2018

LUIZ CORONEL - Entrevista (Álvaro Santi)


LC — No ano de 1970 houve uma Califórnia, eu não estive presente, em que ganhou a música do Colmar, que já era uma música que tinha uma postura nova em relação ao regionalismo. Em 71, com “Gaudêncio Sete Luas”, eu diria que foi um momento muito “estopim” da Califórnia (eu não estou fazendo elogio de boca própria, que é desaforo). Mas, vamos dizer assim, até que ponto isto acendeu, até que ponto isto representou...

Eu diria que Gaudêncio Sete Luas naquele ano foi uma música de impacto. Impacto na medida em que rompia muito a letra, rompia muito a narrativa linear, ficava com versos soltos. Eu próprio não tinha nem consciência do que estava fazendo, eu deixei embaixo da [porta da] casa do Marco Aurélio [Vasconcelos] uma letra... Ele leu e disse: “Que letra gozada aquilo, não entendi coisa com coisa mas achei engraçado... Gostei.” E fez a música do Gaudêncio, foi o Leopoldo [Rassier] a Lúcia Helena e o Marco Aurélio [que defenderam a música no festival], a música é do Marco Aurélio. E a música causou um grande espanto e agradabilidade, mas, vamos dizer assim, dentro da “cúpula” da Califórnia foi uma música inaceitável. O próprio vice-presidente da Califórnia disse: “se essa música vencer a Califórnia eu me retiro da Califórnia.” A esposa dele até disse para mim: “essa música é um chocalho, não diz coisa com coisa”.

Então, vamos dizer assim, houve um primeiro estopim de rompimento de tradição formal. Esse movimento de tradição formal, eu diria que ele avança até a VI Califórnia, VII, e depois acontece esporadicamente. Eu diria que até a VII Califórnia o que existiu de mais glorioso desse movimento tradicionalista aconteceu ali, que foi a presença de um mosaico múltiplo de várias pessoas que tentavam, através dessa qualidade essencial da arte, que é o estilo, tentavam propor trabalhos completamente diferenciados. Então tinha Marinho Barbará com Aparício Silva Rillo; Marco Aurélio e Luiz Coronel; Kleiton, Kledir e Fogaça; Jerônimo Jardim; o grupo “Os Angüeras” de lá de São Borja...

AS — Os Tapes...

— Os Tapes, mais outro grupo também, aquele pessoal de lá da própria cidade [Uruguaiana], fazendo músicas que definiam um mosaico, uma multiplicidade de propostas. E o festival apresentava essa maravilha de coisas completamente diferenciadas. E a coisa vai disparando, vai disparando de uma forma incontrolável.

Até que um dia, numa apresentação da Califórnia, — e eu te diria que “Seis da manhã” de Jerônimo Jardim, “Piquete do Caveira”, “Coto de Vela”, pra te dar alguns exemplos, foram músicas que trouxeram... Eu te diria que aquilo foi uma maravilha, foi um ciclo maravilhoso do festival... Até eu te diria que eu ganhei a III Califórnia com “Canto de morte de Gaudêncio [Sete Luas]”, e foi um trabalho extremamente conservador, que ganhou vamos dizer assim pela força temática, pela interpretação da Rosa Maria, mas que estaria até marginal dentro desse movimento de profunda renovação formal do festival.

Hoje eu faço essa visão.

E aquilo ali vai indo, vai indo... E há uma espécie de tentativa de enquadramento da música de temática regional gaúcha no grande filão da música popular brasileira. Há uma reapresentação de músicas regionais no Teatro São Pedro, e o Paixão Cortes (que é uma pessoa que eu amo e admiro), umas quatro filas atrás de mim, eu me lembro que ele gritou: “E a velha gaita do Rio Grande?”

Simbolicamente eu coloco esse momento como o momento em que as coisas param de ser proponentes para ser conservadoras. A partir daquele momento, embora o Paixão não seja um homem conservador, as coisas se tornaram extremamente conservadoras. Houve uma espécie dum recuo conservador dentro do movimento dos festivais, e aquilo que era essencial para a vitalidade do movimento regionalista, que era a convivência do proponente e do retrospectivo, passa a ser apagado, porque não há mais lugar para o proponente.

— Isso tem uma data...?

— Daria pra [situar] em 77, 78 isso aí. Depois, as coisas proponentes e novas vão ser esporádicas, mas como tese, elas são recusadas. Passa a haver assim uma defesa da tradição, da velha ideologia do épico, nostálgico e romântico, uma espécie dum canto da valentia e da bravura, ou seja, se desdobram... Atolam o pé no mito do gaúcho heroico, na eleição do passado como paraíso perdido.

E a partir daí o movimento não consegue mais voar. Acontecerão coisas maravilhosas, como a música do Nico Fagundes, que é uma música muito bem sucedida, do Alegrete; acontecerão coisas fantásticas, eu acho, lindíssimas, como, do Napp, “Desgarrados”; mas como regra geral, a temática está presa numa nostalgia passadista, e os espaços para abertura formal, para adaptação e conciliação da música às grandes linhas da música popular brasileira ficaram barrados.

Então nós chegamos, já no fim dos anos 70, a uma dramática situação em que, tu vês, num festival, nada mais parecido com a quinta música que a quarta, nada mais parecido com a quinta música do que a sexta... As músicas eram todas feitas dentro duma única narrativa. Em vez da inovação, se juntavam cada vez vozes mais altissonantes e eloquentes. A criação musical perdendo espaço, a criação poética sendo completamente confinada nessas linhas do tradicional e do épico repetitivo. E eu tenho a impressão que o festival fica valioso como mercado de trabalho; fica valioso como expressão de defesa da cultura regional; fica como peça de resistência contra o domínio cultural das grandes metrópoles, num estado que tem uma tradição de resistência; mas de qualquer forma esteticamente deixa de ser um produto cultural valioso, na medida em que passa a não ter condição de ser uma bela arte, uma arte residente, e que ganha espaço, e que nós mesmos nos encantemos. Se torna uma coisa...

Essa cultura dos festivais cria uma verdadeira cultura de layouts. Nós temos mais de mil layouts e pouquíssimas artes finais. Poucas coisas ganham forma de arte final, como é o caso da música “Vento Negro”, de Fogaça, como é o caso de uma música própria minha, Cordas de Espinho, que foi gravada pela Fafá [de Belém]. Há poucos episódios de alguma gravação valiosa em termos de arte final. Cria-se uma grande cultura de layouts, sem acabamento.

Então, tu estás falando com uma pessoa que tem de um lado a defesa e um encantamento de ter participado e de participar desse movimento de valorização da cultura gaúcha, mas também tem a frustração de ver trancado o rumo mais criativo e mais livre, porque o movimento não soube como conciliar o proponente com o retrospectivo.

— Não seria natural, tu achas que não teria uma limitação de tempo, digamos, para a inovação, ou seria possível continuar inovando sempre?

— Foi muito breve o ciclo inovador. O ciclo tem trinta anos, dez inovadores e vinte repetitivos. Vamos dizer, eu tenho dois terços de cansaço e um terço de vitalidade.

— Isso seria por que houve uma apropriação, vamos dizer, pelo conservadorismo, pelo tradicionalismo, de um movimento que não era...

— Há uma coisa muito estranha nisso. O festival é um encontro que tem suas próprias regras. A música que se ouve num festival, a música que triunfa num festival não é a música que tu gostas em casa. Não é a música que gostarias de ouvir em rádio. O festival monta, o impõe com o tempo suas próprias regras: dois, três versos a menos e um verso vibrante... Parece que a vitalidade cênica se impõe sobre a própria qualidade. Os cantos meigos, uma música como por exemplo: “Milongas tristes, milongas...” jamais vai ganhar um festival, e se tu fores ouvir em casa, vais dizer que é uma música mil vezes melhor que muitas vencedoras de festivais. Porque o festival impõe uma grandiloquência operística, que não tem nada a ver com qualidade. As regras do festival impuseram uma grandiloquência operística que nada tem a ver com qualidade estética, ou possibilidade de sensibilizar, ou riqueza poética das canções.

— Que tem a ver talvez com o tipo do gaúcho, com o estereótipo?

— Não. Tem a ver tipicamente com o evento “festival”. Se tu tens ali um público, aí tu vais ouvir geralmente de madrugada, porque já houve show, já houve não sei o quê, vai ser acordado por grandes gritarias, e jamais por coisas... Esse ano, eu fui a um festival, ganhei o prêmio “melhor letra”. Uma música que era um encanto, mas não foi nem conhecida no festival! Os jurados lá deram o prêmio de melhor letra. Porque ela era meiga. As coisas meigas não terão lugar. Essa fusão, essa componente lírica portuguesa nossa, não tem lugar em festival. Tem momentos, assim, de coisas minhas que assombraram no espaço do festival, e estavam fora da estrutura épica, mas são coisas excepcionais, como aquele “Quando morre um menino”, que o Lênin cantou ali na Moenda. Foi um caso excepcional, parou o festival. Então tem um cara falando da morte de um menino... Mas são coisas raras. Geralmente não ganham espaço as coisas meigas. Então é difícil dizer, eu ter essa balança aí, o que teria de ser feito. Teria de ser feita uma grande arte final desse produto cultural, já que é, como eu disse, uma cultura de layouts.

E o grande problema é essa cultura de jurados. Essa história de jurados, das pré-seleções, essa história dos donos do festival, o que eles querem, que propostas eles têm. Dono de festival não tem que ter proposta nenhuma, que tem que ter proposta é artista, com sua liberdade de criar arranjos, de criar músicas, de criar versos. Não se respeitou o poder de impacto da arte, para se abrir, para se criar uma grande valorização da acomodação. E essa é a crise dos festivais.

— Então isso seria a restrição da liberdade criativa?

— É, criou-se uma ideologia acomodada. Os caras já vão atrás da... Os músicos já vão atrás da ajuda de custo, que já faz parte da sua forma de viver, já fazem aquelas coisas tudo parecidas, sem... Aí, daqui a pouco, um cara fura o bloqueio, e faz alguma coisa realmente de qualidade estética, mas a qualidade estética é exceção, não é a virtude permanente da música dos festivais. Ao passo que, se tu ouvires as músicas da primeira década, tu vais ver que ali tinha, ali acontecia isso. A Ciranda, um festival em que aconteciam coisas gostosas, a Ciranda de Taquara, se tu fizeres uma revisão dos discos da Ciranda, tinha muita coisa valiosa, não é? E por incrível que pareça, uma contradição aí...

— Uma universalidade maior.

— É. Teve uma universalidade na medida em que procurava abrigar a cultura alemã, teve uma abertura maior. Enquanto [a Tertúlia de] Santa Maria, uma cidade universitária, que era para ser um centro criativo, se tornou o festival mais conservador do Rio Grande do Sul, porque havia um CTG conservador, que impôs ordens e disciplina na criação. Então Santa Maria, que poderia ter desempenhado um papel de estopim criativo, passou a ser um freio nas definições de criação da música do Rio Grande do Sul. E hoje quem está realizando um festival mais aberto, por incrível que pareça, é a Moenda, e o de São Lourenço. São esses dois que estão assim meio... sem dogma, sem muita coisa, permitindo que entrem coisas mais livres.

Houve uma tentativa também muito boa, que foi aquela de Santa Rosa. Aí, por exemplo, o Pampa e Luz do Pery com o Luiz de Miranda, um grande momento da criação da música do Rio Grande do Sul. Faltou talvez a complementação de tudo isso, uma reapresentação de vencedoras no final do ano em Porto Alegre, uma arte final desse trabalho.

Faltou Porto Alegre realizar um grande festival de música do Rio Grande do Sul, em que coubesse o regional e o não-regional, numa convivência muito saudável, porque nada briga com nada em arte. Eu sou um cara mais adepto da sulinidade que do regionalismo. Acho que as coisas são mais sulinas que regionais.

— Tu participavas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, antes dos festivais? Ou participaste em algum momento?

— Não, nunca participei, não sou filho de tradição rural. Sou nascido em cidade do interior, morei em campanha, morei no posto, como é que se chamava..., Posto de Puericultura em Piratini, onde eu ia de charrete levar minha mãe no posto. A Dona Amelinha do Posto, como chamavam... Conheci um pouquinho da campanha.

Mas ninguém cobra do Érico Veríssimo que ele tenha usado chiripá e sido domador de cavalo. Pra conhecer o Rio Grande do Sul não precisa nada disso. Eu não gosto de ter participado disso. Até, eu tenho alguns amigos, como o poeta Paulo [Roberto] do Carmo, que dizem que de todo esse trabalho meu, que já é um trabalho grande, com vinte e cinco livros, talvez as melhores coisas, segundo a visão dele, que eu teria escrito, seriam esses cantos de Gaudêncio, de Leontina, dos Retirantes do Sul (que é um escrito em cima do “Morte e Vida Severina). Então eu sou um dos muitos participantes do festival, mas com esta visão.

Por isso eu estive muito, eu estive mais de dez anos absolutamente retirado do festival. Aí eu fiz um regresso, um regresso muito vitorioso, quase tudo que eu fiz no meu regresso venceu: Pai; Campo não sonha, floresce; Coração ferido da América...

Quase todas as coisas que eu fiz depois do meu regresso, do fim dos anos 80 até aqui saiu vitorioso. Então isso aí me credencia a dizer que eu falo como visão cultural, não como nenhum... A esta altura da minha vida seria muito pequeno colocar qualquer rancor ou descontentamento. Não, eu falo como movimento cultural, e essa coisa... O festival não poderia ter perdido pessoas como Geraldo Flach. Não podia ter perdido pessoas como... músicos de primeira grandeza que tem aí, que foram se afastando: Toneco...

— O próprio Jerônimo.

— Jerônimo. Perdeu porque foram ficando tão conservadores que as pessoas não sentiam espaço mais nisso aí.

— Sobre a tua maneira de trabalhar: fazes eventualmente o poema para o festival... em relação às regras mesmo, às “linhas”?

— Eu devo dizer que em matéria de regionalismo eu estou no INPS. Eu só voltei a escrever regionalismo para o livro “Pampa Gaúcho – A Terra e o Homem”, que eu não encontrei poemas que falassem sobre determinados assuntos, e criei poemas sobre os assuntos. E até para mim foi uma surpresa porque eu senti que ainda dava para escrever, que os versos ainda me contentavam. Mas eu não escrevo mais sobre o regionalismo. Rarissimamente escrevo. Escrevi o que? Uma letra depois que eu li o livro Lavoura Arcaica, que me deixou uma letra na cabeça. Estou mais ligado num outro trabalho, sobre amor, sobre política, sobre o país... Como é o caso de Um Girassol na Neblina.

Estou fazendo uma antologia e revisão de toda a obra, reunindo tudo isso num livro. Estou no caminho de fazer o CD “Paulo José interpreta Luiz Coronel”... Estou no caminho de rever esta obra, que vai ficando volumosa: da qualidade digam os outros, mas a mim me cabe organizar.

— Mas, na época em que tu estavas mais envolvido com esse assunto, quando escrevias, eu queria saber em que medida procuravas seguir as regras... Não os modelos, mas as regras estabelecidas nos regulamentos... Ou procuravas romper com isto?

— Eu não procurava romper, nem me submeter. Eu tinha uma criação dentro do meu estilo, dentro do meu verso. Inclusive talvez tenha sido um dos primeiros a fazer quadras, dentro do regionalismo. Havia uma tradição payadora, que era outra estrutura de versos: décimas,... E eu fazia quadrinhas, que era a velha tradição lusa, que acompanha a Revolução Farroupilha. Eu tinha lido aquelas coisas. Os cantos da Revolução Farroupilha eram quadrinhas... Então, eu estava muito dentro dessa tradição aí, dessa linha das quadras, dos versos vigorosos. Cada verso como uma bala deflagrada.

Então, eu buscava alguns temas e criava, assim, sem pensar se ia agradar ou não ia agradar. Não havia endereço. Eu entrei, por exemplo, na linha de Gaudêncio Sete Luas, e escrevi doze cantos de Gaudêncio. Entrei na linha de Leontina, e escrevi oito letras. Na linha Retirantes do Sul, escrevi catorze textos. Então eu entrava dentro de um ciclo de criação. E aí mandava os trabalhos. Não estava muito preocupado se iam gostar ou não iam gostar. Alguns trabalhos meus e do Sérgio Rojas foram extremamente recusados.

Eu me lembro que eu ganhei um prêmio com O Tempo e o Vento. Eu ia caminhando, passou um gaudério, olhou para mim e disse: “Não tem vergonha de levar esse prêmio?” Eu até tremi, disse... pô, esse troço aí gera conflito para mim. O que houve naquele festival em que houve aquela quebradeira? Por que o Jerônimo tinha ganho com Astro Haragano, e eu tirado segundo lugar com O Tempo e o Vento, com uma letra extremamente fora dos parâmetros do regionalismo: “Havia na boca da noite / um riso lânguido e triste / De moça que vai ao baile / Se vê no espelho e desiste” Não tem nada que ver com a tradição regionalista. Então, aquele dia o festival parece que perdeu a capacidade de acomodação. Naquele dia explodiu a Califórnia porque perdeu a capacidade de acomodação entre o proponente e o preservador. Por isso houve aquela explosão. A regra na qual Califórnia sabia caminhar era na acomodação dessas duas coisas, e nisso ela foi mestre, até que perdeu essa sabedoria. Hoje ela não tem mais, e se tornou um festival conservador.
(...)
A verdade é que eu nunca, apesar de ser um homem de temperamento afável, carinhoso e até bastante diplomático nas minhas relações pessoais, eu nunca fiz relações públicas com a minha arte, com meu trabalho. Nunca deixei de dizer as coisas que eu penso sobre essas coisas como dever de consciência criativa. Essas coisas muitas vezes eu disse, e criei muita hostilidade, muito conflito. Até me lembro de terem me chamado de mal-agradecido, que a Califórnia teria sido meu primeiro palco, primeiro espaço...

— Veículo de divulgação...

— ... do meu trabalho, importantíssimo, que eu vivo reconhecendo. Mas lá por reconhecer eu não teria o direito... Eu teria o dever de fazer críticas, na medida em que as críticas possam ser colaboração. Então eu sempre fiz essas ponderações, quando foi aberto espaço. E acho que é uma tese importante essa que tu trabalhas, de rever essas letras, de rever essas músicas, de rever essas interpretações, de rever os cantores que surgiram, de rever as músicas que conquistaram espaço, conquistaram mídia, que veículos se conquistou. Por que de fato não houve o rompimento de um confinamento. Houve apenas criação de uma rádio aqui, um pouco de espaço nas rádios do interior, que não havia antes, e um programa de televisão, mas mesmo assim confinado. Não há o triunfo de um produto cultural gaúcho.

— Mas houve uma popularização grande, e em certa medida a Califórnia é responsável por isso.

— Sim, ela é o estopim de tudo. Ela é a matriz generosa de tudo isso.

— E o resultado seria mais conservador sem que tivesse existido a Califórnia?

— Sem que existisse Califórnia, sem que existisse esse movimento, vamos chamá-lo de “Ciclo dos Festivais”, o filão regionalista estaria muito soterrado. Temos que pensar que o folclore é base para criações vigorosas. É dentro do folclore espanhol que Lorca vai criar Bodas de Sangue. É preciso que o teatro crie uma Bodas de Sangue. Não vai ser na repetição dos CTGs dançando o “Pezinho” e o “Balaio” que vai se criar uma dança regional gaúcha. Vai ter que se criar uma grande estilização criativa em cima dos nossos motivos, guardando a essência sulina. Aí se está criando verdadeiramente uma arte. Assim também na poesia, assim também na pintura. Nelson Jungbluth é um pintor de maravilhas do Rio Grande do Sul porque soube se livrar, soube criar, soube dar um traço pessoal, soube dar o triunfo do estilo, sem o qual não existe arte. É esse hiper-realismo que o regionalismo procurou nas narrativas, e esse culto ao passado que confinaram a coisa numa atrofia criativa.
(...)
Eu estava dizendo que aos organizadores dos festivais cabia: dar boa alimentação, boa hospedagem e ajuda de custo. Mas não competia dizer o que os artistas deveriam fazer. Na medida em que eles quisessem dizer o que os artistas deveriam fazer, eles estariam fazendo uma arte de encomenda, o que já é em princípio empobrecedor. Uma coisa é tu chamares um grande artista e fazeres uma encomenda. Uma coisa é o Papa Júlio II chamar o Michelangelo fazer uma encomenda, outra coisa é tu criares um evento cultural com encomendas.

E quando eu protestei contra isso eu criei muitas antipatias contra mim. Mas eu segurei o barco, disse que não, que eu achava isso. Que não tinham nada que me dizer o que eu tinha que fazer.

Eu tenho histórias de festival maravilhosas. Na IV Califórnia, quando um cara cantou: “Um tombo / do lombo / é um rombo / no chão / Eu caio / mas saio / com a crina / na mão.” Isso levantou o público. Nunca visto. O estribilho, de pé. Pensei: já ganhei o festival. Aí um jurado disse: é plágio. Até hoje não explicou plágio de quê. E a música foi desclassificada, na Califórnia.

(07/09/1998)

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

Nenhum comentário:

Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

Link: https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&ll=-28.28439367125109%2C-53.045925850387164&z=7&mid=1ZlKA__gK8tH-WY6mbDeQzlt...