terça-feira, 10 de julho de 2018

Sérgio Napp - Entrevista (Álvaro Santi)


AS — Tu participavas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, antes de participar dos festivais nativistas? Em que medida? Caso negativo, houve depois alguma aproximação?

SN — Não, eu nunca participei do movimento em si, em termos de CTG. Nunca tive participação ativa, nem sequer participação esporádica num CTG. Eu nunca participei desse movimento, ele nunca me atraiu. E nem depois da minha participação nesses festivais todos, eu continuei não participando desse movimento, inclusive tenho algumas restrições a ele. Eu uma vez, inclusive, fui convidado a participar da “Estância da Poesia Crioula”, até me colocaram dentro da “Estância”, à revelia. Fui incluído como sócio participante, mas também em nenhum momento participei da “Estância”. Ainda hoje me enviam correspondência, coisa e tal. Eu convivo amigavelmente, tenho muitos amigos nesse meio tradicionalista, mas não participo.

— Então vês diferença entre Tradicionalismo e Nativismo?

— É, fazem [diferença]. O Barbosa Lessa diz que de trinta em trinta anos há um, não sei se um movimento, mas alguma coisa de novo dentro desse movimento.

— Um renascimento.

— Ele começa com um gauchismo, passa pelo tradicionalismo, e agora nós estaríamos vivendo a fase do nativismo. O que eu considero, a grosso modo, o tradicionalismo é um pouco mais, como a própria palavra está dizendo, um pouco mais tradicional, mais rígido com seus princípios; enquanto o nativismo viria a ser um movimento um pouco mais aberto, onde pessoas como eu de repente começam a participar de festivais, a usar temas regionais, mas absolutamente não pertencem ao movimento. Uma outra geração que vem chegando absorve um pouco do tradicionalismo, mas ela também recicla esse tradicionalismo, e torna-o um pouco mais próximo do presente. Isso viria a ser o nativismo. A gente verifica nos temas, nas letras uma diferença bem grande entre um tradicionalista convicto, na forma que ele escreve; e o que seria um nativista, na forma também com que ele coloca o seu texto. O Jerônimo Jardim, que faz também trabalhos nessa área, e trabalhos brilhantes, diga-se de passagem, ele também não pertence ao Tradicionalismo, não é um tradicionalista, não participa de CTGs, etc. Nada contra, afinal, cada um, cada um. Eu tenho amigos que são ferrenhos defensores, nem por isso deixam de ser meus amigos.

— Tu és natural do interior, viveste no campo, tiveste uma experiência “campeira”?

— Eu sou natural do interior do Estado... Nasci em Giruá. Minha família é toda daquela área. Talvez a minha ligação com esse tipo de manifestação cultural seja um tanto atávica, já que eu sou missioneiro. Então também essa minha melancolia, essa minha introspecção talvez venha daí. Mas eu vim para Porto Alegre com nove, dez anos de idade, e vivi sempre dentro da cidade, em Santa Rosa, Santo Ângelo, Giruá. Nunca participei de atividade de campo. A única atividade, em que eu até baseio a maioria das minhas letras ligadas a esse movimento, é que meu sogro era fazendeiro, aqui em Encruzilhada do Sul. Então eu frequentava a fazenda. Era um exercício de observação Então, todo esse trabalho que eu fiz nessa área é todo um exercício de observação e de sensibilidade em cima da área. Quando eu escrevi “Desgarrados”, o pessoal me perguntou se eu tinha feito muita pesquisa. Eu não fiz absolutamente nenhuma pesquisa. Foi simplesmente uma questão de olhar, de ver, de sentir aquilo que eu estou colocando na letra.

— Não deixa de ser uma pesquisa...

— Sim, mas não é uma pesquisa formal, né? Eles me perguntam como se fosse uma pesquisa formal, se eu tivesse ido ao campo, se eu tivesse falado com alguém que retratasse a figura, né? Neste sentido não houve pesquisa nenhuma. Em nenhuma das letras houve pesquisa, das letras que eu fiz nessa área aí.

— Com relação a esse trabalho de fazer o poema, de fazer letras, o Tradicionalismo tem uma doutrina mais ou menos determinada, e o Nativismo não, é uma coisa mais aberta, se baseia muito... nos regulamentos, que nem sempre são muito rígidos, isto é, permitem interpretações diferentes. Eu queria saber como esse regulamento influi na hora de fazer o poema, se na hora de fazer o poema tu estás pensando no festival, ou se o poema já estava pronto, e aí surge a oportunidade.

— Houve as duas coisas. Eu desde 71, quando começou a Califórnia, eu sempre me interessei em participar da Califórnia. Eu havia participado uma única ocasião, de um festival, não me recordo bem em que ano, mas foi antes da Califórnia que houve aqui na Televisão Gaúcha, quando ainda era lá na Piratini. Ou melhor, na TV Piratini, nem era Gaúcha ainda, eu participei de um festival. Meu parceiro naquela ocasião foi o César Dorfmann. Eu tinha uma letra pretensamente com um tema regional, não tinha palavreado regional nem nada, e o César fez uma música praticamente urbana, também. Nós participamos daquele festival, e naquele festival participou Teixeirinha, participou Airton Pimentel, participou... uma série de nomes que eu ainda não conhecia, eu estava ingressando naquilo ali. Depois, numa outra ocasião, num festival que houve na SOGIPA, de novo eu participei com música urbana porque o festival era aberto, mas naquele momento participaram também o Marco Aurélio Vasconcelos e o Airton Pimentel. E o Airton inclusive fez uma música que recebeu um dos prêmios, naquela ocasião. Esses foram meus primeiros contatos com essa área.

Quando apareceu a Califórnia, eu sempre tive interesse em participar da Califórnia. Ocorre que eu sou um letrista, basicamente, e isto me criava problemas porque eu não tinha parceria para me inscrever numa Califórnia. Depois desses dois festivais, em 1980, essa música que eu fiz com o César, que tinha participado desse Festival, nós fizemos uma pequena adaptação na letra, e nós inscrevemos na Califórnia. E ela foi classificada, mas ela também não foi apresentada no festival, porque nosso intérprete, um grupo que se chamava Saracura, na última hora roeu a corda, e não foi ao festival. Pela primeira vez uma música foi classificada e não foi apresentada. Quer dizer, foi uma frustração para mim, que há horas estava querendo participar da bendita Califórnia.

Mas em 81 eu conheci o Mário Barbará. Em 81, eu participei de um festival, da Vindima, em Flores da Cunha, e ali foi o surgimento do “Canto Livre”. E ali, nós ganhamos a Vindima, naquele ano. Oitenta e um foi um ano muito marcante porque além de nós ganharmos a Vindima, o Emílio Santiago gravou uma música minha, o que pra mim foi um acontecimento. E eu fiz uma pequena cirurgia de varizes, fiquei quinze dias imobilizado em casa, e aí escrevi um batalhão de letras, entre as quais eu escrevi “Desgarrados”, e outras tantas.

Logo depois houve um show do Saracura no Teatro Renascença, e eu fui convidado para assistir, para tentar fazer uma parceria com o Nico, com alguém lá dentro, e o Mário Barbará fazia uma participação especial naquele show. Eu vi o Mário Barbará cantando, eu conhecia o Mário Barbará só de nome, eu achava inclusive que ele era uma pessoa mais idosa, e ele era um garotão. Eu vi o Mário cantar e disse: esse cara tem de ser meu parceiro. Então eu fui procurar o Mário. Naquela ocasião, eu estava iniciando, eu ia atrás das pessoas, procurando: cacei o Hermes Aquino, cacei Fulano, Beltrano, pra mostrar letras... Fui atrás do Mário, e deixei uma porção de letras com o Mário, entre as quais “Desgarrados”.

Eu estou contando essa história toda pra dizer que houve momentos em que nós fizemos música, letra e música, sem a pretensão de ir pra Califórnia, e houve momentos em que eu fiz letras com a pretensão de ir pra Califórnia. Nunca me preocupei muito com fazer ou não fazer. Muitas vezes chegava o momento de inscrição da Califórnia, e eu procurava aquilo que eu achava mais condizente com o espírito da Califórnia, e inscrevia, sem me preocupar muito se essas músicas ou letras fossem muito regionais ou não.

— O “x” da questão é se tu achas que limita a criatividade ou não, o letrista que queira seguir muito à risca o regulamento?

— Se tu quiseres seguir muito à risca o regulamento é capaz de limitar mesmo. Eu nunca me senti limitado, em relação a isto aí. Eu mantive uma certa independência. Não digo que eu não tenha... não sou assim um Jerônimo Jardim, que fazia coisas bastante avançadas para a época, colocava na Califórnia, criava problemas, de repente...

— Tu não tinhas a pretensão de quebrar...?

— Tinha. Talvez não conseguisse, mas tinha, sempre tive a pretensão de quebrar. Onde eu atuei sempre tive a pretensão de quebrar. Procurei até fazer alguns experimentos. Porém, como eu também, volto a dizer, sou um letrista, fica complicado... Eu posso escrever uma letra eu que eu tenha uma ideia de quebrar, mas por um motivo ou outro, eu pego um parceiro que não quebra, e aí eu também não posso fazer milagre. O Jerônimo faz música e letra. Ele pode fazer isso. Quem faz música e letra, ele... ou quando se juntam duas pessoas que resolvem quebrar, tu consegues fazer um trabalho nesse sentido. Agora, quando tu estás com uma ideia... Eu, desde a época dos festivais, da grande época dos festivais da Record, eu sempre de uma certa forma procurei quebrar alguma coisa. Eu nunca foi um arrivista, no sentido... aquele que quebrava tudo. Mas eu sempre tentei fazer alguma coisa.

Eu, num festival de 1969, quando isto ainda não existia na música popular... eu participei aqui em 1968 ou 1969, num festival da RBS, que tinha uma tradição de fazer festivais, eu participei com uma letra minha e música do Paulo Dorfmann, em que eu descrevia uma transa, um ato sexual. Claro, cheio de metáforas, eufemismos e coisas... Mas, para as pessoas que perceberam o que eu estava passando ali, foi um espanto. Porque as pessoas ficaram assim: “Tu estás tentando dizer realmente isso aí, ou eu estou lendo errado?” “Não, eu estou dizendo isso aí.” Depois, logo depois dessa minha letra aí (claro que não tem consequência nenhuma), o Marcos e o Paulo Sérgio Valle, e outro pessoal lá no Rio de Janeiro, começaram a fazer letras meio com duplo sentido, em que exploravam muito a sexualidade.

Bom, eu também tentei fazer aqui, houve um determinado momento em que eu pensei que se podia fazer uma letra declamada em cima de uma música. Então escrevi uma letra, que era quase um poema, mais longo, e pedi para um amigo meu, César Dorfmann, bolar uma música de tal forma que aquilo pudesse ser meio cantado e meio interpretado, como se fosse um jogral. Logo, pouco tempo depois, começaram a surgir gravações que tinham músicas e as pessoas recitavam. Então houve tentativas da minha parte de quebrar alguma coisa, de manifestar um certo inconformismo, mas eu não conseguia ir adiante porque eu tinha uma limitação.

Na Califórnia, a minha preocupação nunca foi ser um “gaudério”, nunca foi ser uma pessoa que mostrasse ou tentasse mostrar aquilo que não era. Eu não tinha experiência de campo, eu não conhecia a lide campeira, a não ser de observação, como eu disse, na fazenda, então eu não tinha essa preocupação. Eu procurava me ater ao regulamento, quer dizer, como na Califórnia existia uma linha... de Projeção Folclórica, então eu me enquadrava via de regra na Projeção Folclórica, onde eu tinha temas mais abertos. Eu usava um que outro termo, nas minhas letras, gauchesco, mais regional, mas eu não tinha preocupação de fazer uma letra tipicamente regional. Tinha preocupação de falar de algum tema regional, o que é bem diferente. Eu fiz uma letra que se chamava “Mala de Garupa”. E mala de garupa é um apetrecho bem gaúcho, bem regional. Mas a minha letra, falando sobre a mala de garupa, ela não tem nenhum termo regional, mas ela fala exatamente daquele objeto ali. Essa música participou duma Califórnia, também...

Então, resumindo esse longo papo: pra mim, nunca um regulamento me cerceou, ele não me balizou. Eu procurava fazer as coisas da forma como eu gostava de fazer, sem ter aquela preocupação de atender rigidamente. Claro, existiam algumas coisas com as quais eu não concordava, por exemplo: não podia usar termos, palavras castelhanas, isso constava do regulamento. Não podia ter um intérprete que não fosse gaúcho. Até houve músicas que foram desclassificadas por causa disso. Era uma coisa que incomodava porque eu não via sentido. Não que eu me apresentasse, mas tu não podias te apresentar que não fosse pilchado. Não podias usar determinado tipo de instrumentos. Quer dizer, ficava um pouco limitada a apresentação em si por causa do regulamento, isto sim. Alguns ousavam um pouquinho, e se quebravam. Isso aí era uma coisa que eu contestava. Contestei muito isso, lá, em debates, etc. Numa ocasião, em 82, quando eu concorri com uma seleção de trabalhos que eu acho que são os melhores com que eu participei da Califórnia (duas músicas com o Mário Barbará, que foram “Campesina” e “Razões de Cantar”; e uma música com Jerônimo Jardim, que é “Carreta”), e nesse momento inclusive a crítica considerou que as minhas letras foram as melhores da Califórnia, houve manifestações, etc. E em 82 eu fui vaiado. Fui vaiado na Califórnia, quando eu fui agradecer, porque eu também não concordava...

— Foi premiada “Campesina”?

— Foi premiada “Campesina”, em 82, na linha de Projeção Folclórica. Eu tinha ganho com “Desgarrados” em 81, e em 82 foi a “Campesina”. E eu fui vaiado porque eu errei na forma de dizer, como eu comecei a minha frase, e o pessoal entendeu mal de cara, e eu fui vaiado e não pude continuar. Mas o que eu queria dizer naquele momento, basicamente, era que eu não via diferença entre a música urbana e a música regional. E aí a vaia veio abaixo. Eu não via diferença porque, se uma música regional é boa, se uma música tradicionalista é boa, de qualidade, tem uma boa letra e um [bom] arranjo, ela não pode ficar presa num gueto, como se faz até hoje, que a música regional só toca em determinadas rádios, e ela só toca nessas rádios em determinados horários. São raros os intérpretes e cantores que conseguem furar esse bloqueio. E eu queria colocar a minha manifestação contrária a isso. Queria dizer que não via diferença entre a música urbana e a música regional, no que se referia à qualidade. Se a música regional fosse boa, ela obrigatoriamente deveria tocar no espaço nobre de uma rádio, misturada com um Milton Nascimento, com uma Gal Costa, até para fazer um paralelo. Se ela é boa, toque-se junto com outras músicas. Não tem porquê, só porque ela tem um sotaque acentuado, nós estamos cansados de ouvir sotaques nordestinos e palavrório nordestino em letras e achamos que isso não é regional. No entanto, isso é regional. Mas eu comecei assim: “Eu penso que não existe diferença entre música urbana e regional...” Bah! veio a plateia abaixo e eu não pude nem continuar. Então eu contestava essa coisa do fechamento, sabe? Eu acho que a coisa tinha que ser mais aberta. Eu achava... eu contestava essa coisa assim: tu podias tocar bombo legüero, porque diziam que era um instrumento “aculturado”, mas não podias botar teclado no palco. Por que não podia? Bombo legüero não é um instrumento gaúcho, aliás, não existe nenhum instrumento gaúcho.

— Mas nem na categoria “Projeção Folclórica”?

— Não. Lá pelas tantas, mais adiante, se começou a usar o piano, podia fazer gravações com piano. Tu não podias usar bateria no palco. Só que, por exemplo, tinha uma contradição enorme. “Os Serranos” estavam se apresentando no palco da Califórnia, concorrendo na Califórnia, e não podiam usar bateria. Aí, no dia seguinte, eles estavam fazendo o baile da Califórnia, e estavam tocando o baile de bateria. Só podia entrar gente pilchada no baile. Eram “Os Serranos” que tocavam, mas eles estavam tocando com bateria e baixo elétrico. Era uma coisa contraditória que eu não concordava. Questionei muito isso aí. Então às vezes eu fazia uma letra pensando na Califórnia, é verdade. Mas não era trabalho “dirigido” pra Califórnia. Era dirigido num sentido, porque eu sabia que havia letras minhas que absolutamente não passariam pela triagem. Então eu nem me preocupava em mandar. Eu me preocupava em mandar aquelas que eu achava que tinham alguma coisa a ver. Porque cada festival tem uma linha. E é claro que eu penso, particularmente, que se tu vais participar de qualquer tipo de concurso, um concurso de contos, de novelas, há um regulamento, e esse regulamento te dá algumas linhas. Que tu ficas limitado em forma, talvez, mas não no conteúdo. Tu não limitas tua criação. Agora tem um concurso de “contos de bom humor”. Então, claro: se é um concurso de contos de bom humor, eu não vou mandar pra lá um trabalho que não tenha nada de bom humor, porque é perda de tempo. Não vai adiantar nada. Então eu vou procurar mandar um trabalho... O resto... Olha, só exigem que tenha três páginas no máximo. Muito bem: se eu não tiver um conto de três páginas, de bom humor, se eu tiver um de quatro ou de cinco, não posso mandar. Não adianta, eu vou mandar e vai ser anulado.

Então eu me preocupava com essa coisa assim mais, quer dizer, com a linha do festival. Pro Musicanto, poderia mandar qualquer tipo de música, porque não tem problema, é um festival aberto. Pra Moenda, eu posso mandar qualquer tipo de música, já mandei até samba-enredo pra lá, porque é um festival aberto. Agora, pra Califórnia, ela tem seus limites, eu sei. Então, eu mandava trabalhos que mais ou menos estivessem dentro do espírito, sem me preocupar rigidamente com a forma. Isso nunca me limitou.

— Continuas participando ainda eventualmente de algum festival?

— Esporadicamente, de todos os festivais. Eu acho que os festivais perderam o glamour, perderam a importância, eles se... por um motivo ou outro eles não têm mais aquela ressonância. Eu me recordo, em 81, quando eu ganhei com “Desgarrados”, tinha uma polêmica enorme dentro da Califórnia, e quando eu ganhei, na noite de domingo, a final, segunda feira eu vim pra Porto Alegre. E na segunda-feira, tanto a Zero Hora quanto — ainda existia naquele tempo — a Folha da Tarde, já tinham matérias extensas, discutindo os premiados, essa coisa... Então havia isso naquele tempo, em que o festival era uma coisa considerável. Eram transmitidos, a imprensa divulgava. Hoje, os festivais acontecem, e tu nem sabes que os festivais aconteceram. Não há uma divulgação pela imprensa, não se sabe nem que festival vai acontecer em tal final de semana, tu nem sabes quem é que ganhou o festival... parece que não aconteceu.

Agora mesmo eu... o Mário tem muita letra minha guardada ainda, daquelas que a gente vai passando, ele não vai fazendo. E o Mário me ligou no início do ano, que ele tinha feito, quer dizer, ele me ligou pra saber se determinada letra ainda estava musicada, não estava, ele musicou e inscreveu num festival, se não me engano o festival de Santiago, ou de Rosário, não sei bem. E depois ele me ligou: “Olha, fomos classificados.” Eu até agora não conheço a música ainda. Fomos classificados. Absolutamente, não saiu em lugar nenhum na imprensa, eu não sabia nem quando era o festival, nada. O festival ocorreu nesse feriadão de 12 de outubro, eu estava viajando, nem sabia de nada. Quando eu voltei na segunda-feira, de noite o Mário me ligou: “Olha, tiramos o terceiro lugar no festival.” Então, veja bem o seguinte, é uma coisa que não bate mais. Eu participei de um festival, eu não conheço a música, foi o João de Almeida Neto que cantou, um baita dum intérprete, pessoas que assistiram acharam até que a música poderia ter tirado uma classificação melhor... Mas não saiu a relação das músicas classificadas na imprensa, não saiu nenhuma nota em nenhum jornal dizendo que o festival se realizaria naquela data, não saiu o resultado do festival em nenhum jornal. Então, a pergunta é a seguinte: existiu o festival?

— Sintoma disso é que a própria Califórnia esteve ameaçada de não sair, este ano.

— E o Musicanto não vai sair, esse ano não sai. E depois também, eu acho que cumpriu-se um ciclo. Eu participei ativamente de todos esses festivais, onde eu pude participar, e foram os mais diversos. Eu me preocupava, eu gravava meu trabalho, eu mandava, eu acompanhava, eu ia até lá, eu assistia... mas de repente isso ficou cansativo. E eu não via mais graça no negócio, entende? Aí fui parando, eu comecei a me dedicar mais à literatura, mesmo, comecei a escrever. Não deixei de fazer letra. Continuo. Talvez tenha umas 100 letras lá em casa, à disposição de quem queira fazer a música. Então, quando me pedem, eu envio, seleciono e envio, dependendo da pessoa que me pede. Aí ela faz ou não faz, também não tem maiores problemas. Muitos meus trabalhos estão sendo regravados agora. Há intérpretes que estão me procurando, buscando músicas que eu tenha, feitas para gravar... Então eu continuo. Música pra mim é fundamental.

Eu gosto muito, e gostaria muitíssimo de poder dar um pulo, de poder sair do Estado, de fazer outras tentativas. Já procurei fazer isso aí com compositores, com músicos de outros Estados. Então não é uma coisa assim que eu tenha deixado completamente de mão. Eu continuo ainda trabalhando nisso. Estou fazendo agora um CD. Eu peguei assim... vinil não existe mais, né? Então, eu tenho todo esse material grande em vinil, que não está em CD, nunca vai ser, porque são faixas esparsas de festivais, isso nunca vai ser colocado em CD. Muita coisa minha de festival até tem saído, tem sido remasterizado em antologias, tem saído por aí. Mas tem um lado meu, de música urbana principalmente, que nunca apareceu muito. Então eu resolvi selecionar esses trabalhos, remasterizei, estou com a matriz pronta, e estou em tratativas para fazer um CD pra mim, como resgate de memória. Pra ter um material, pra passar pra alguém: “Olha, isso aqui, tal e coisa...” E pretendo, pro ano que vem, começar a trabalhar num disco de música regional, também dessas coisas que estão gravadas, pra resgatar isso aí como memória, não como... não tenho objetivo comercial, é mais uma coisa pra deixar.

Então, eu continuo me envolvendo, continuam meus parceiros se inscrevendo em festivais, passa ou não passa... Tem o “Status” com quem eu fiz muita coisa, voltou a trabalhar, pediu letra, fizemos vários trabalhos agora, ultimamente. Então eu continuo ainda trabalhando nisso aí, mas assim, muito light. Porque meu objetivo é outro, já não é isso aí.

Ah, eu acho que tem uma coisa interessante, já que tu falaste em cerceamento pelo regulamento. Uma ocasião eu tive uma letra minha censurada na Califórnia. E no Musicanto também, parece mentira. Na Califórnia, foi uma música com o Mário Barbará, uma letra em que eu falava de prostituição, uma das quadras fazia um comparativo entre uma sinhazinha na fazenda e uma prostituta. A música foi classificada, e os caras me ligaram de lá, se eu podia suprimir aquilo ali, ou mudar, ou qualquer coisa. E eu ponderei que não, que eu não gostaria de mudar, fiz um arrazoado do porquê daquilo ali, o que eu tinha colocado não era nada ofensivo, era uma coisa muito light. Tá, não houve problema, a música foi apresentada daquela forma, sem problema nenhum.

E lá no Musicanto, eu tinha uma letra em que eu estava falando... porque eu morei muito tempo em Santa Rosa, praticamente me criei em Santa Rosa, minha família morava lá. Então eu fiz uma letra em que eu colocava minha vivência lá em Santa Rosa, algumas lembranças lá. E eu colocava, lá pelas tantas da letra, que “a primeira coca-cola”, parafraseando a coca-cola da Panair, do Milton Nascimento e Fernando Brant, “a primeira coca-cola foi na Praça da Bandeira”, que é a praça lá. E os caras não gostaram que a primeira coca-cola fosse lá, tive que trocar para “o primeiro mate”. Tipo de coisa, assim, que é uma coisa muito pobre, acho. Mas houve. Não sei se isso aconteceu com outras pessoas, nunca tive conhecimento, mas houve isso aí.

— Foi proposto como condição para tua participação que alterasses a letra?

— Não, não. A música tinha sido classificada. Só que eles achavam que não pegava bem, falar em coca-cola, quem sabe botava um mate, chimarrão... Uma coisa assim que não tem porquê. Primeiro porque eu nunca tomei meu primeiro chimarrão naquela praça, e nem tomo chimarrão, a não ser eventualmente quando me oferecem. Não tenho o hábito. Então, jamais eu poderia colocar “o primeiro chimarrão na Praça da Bandeira” porque não era. E realmente a primeira coca-cola foi lá na praça, quando eu morava lá e era guri. Isso só para fazer uma referência. Então, tem dessas coisas em festival.

E não se pense que é em festival aqui do Rio Grande do Sul. Isso existe em festival nacional também. Uma ocasião, num festival em que eu participei, não foi comigo isso aí, foi... aquele último festival da Rede Globo, que ganhou a Tetê Espíndola... Globo-Shell, uma coisa assim.

— Ganhou com “Escrito nas Estrelas”.

— Exatamente. Eu estava participando com uma música, com o Canto Livre, e eu me recordo que o Vítor Ramil também tinha se inscrito, e o Vítor Ramil é um compositor, ou naquela ocasião pelo menos ele ainda era um compositor bastante hermético. Inclusive bastante experimental. E ele foi solicitado... eles gostaram muito do trabalho dele, mas pediram para o Vítor mandar uma música mais... “aberta”, digamos assim, pra poder participar do festival. E o Vítor não concordou em fazer, e não participou do festival. Então tem essas coisas, por detrás, que não aparecem, mas existem, nesses festivais da vida.

Fonte: Álvaro Santi. Canto Livre? O Nativismo gaúcho e os poemas da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura). Porto Alegre, 1999.


Acesso em 22/06/2017

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