sábado, 17 de junho de 2017

Víveres (Adroaldo Furtado Fabrício)


Leoveral de Souza Oliveira (pai do Presidente do IRGA, ex-Deputado e ex-Secretário de Agricultura Carlos Cardinal de Oliveira, na vida pública mais conhecido pelo sobrenome materno) era homem de muitos negócios e atividades. Fazendeiro abonado, também se empenhava intensamente no comércio e um tanto na política, além de atender a compromissos sociais e comunitários diversos. À sua fazenda, então ainda pequena, embora representasse parte importante de seu patrimônio, não podia dedicar pessoalmente muito tempo; sequer podia visitá-la com frequência, em razão dessa multiplicidade de afazeres.

Desviando-se nesse particular dos costumes espartanos que eram de regra entre os homens do campo na sua época, tinha gostos e hábitos exigentes, talvez até
um tanto refinados, sobretudo no que se refere à mesa. Apreciava boa comida e bebidas finas. Mesmo na casa da estância, que pouco frequentava, costumava manter razoáveis estoques de conservas importadas, acepipes finos e vinhos de boa cepa e safra.

Tinha, em relação a peães, capatazes e caseiros, as dificuldades que todas as pessoas do ramo conhecem, agravadas, no seu caso, pela escassa presença física na fazenda. Estava sempre a procurar alguém que o pudesse deixar razoavelmente tranquilo sobre o andamento dos assuntos de seu estabelecimento rural. Uma de suas tentativas foi o Praxedes, homem tido como confiável e bem-mandado, embora não muito afeito ao trabalho e meio chegado ao trago.

Ao instalá-lo na casa, deixou-o bem provido de gêneros para o seu consumo, autorizado, de resto, como era uso de então, a abater para consumo próprio as galinhas e capões que fossem necessários. Recomendou-lhe, mais, especial vigilância sobre a despensa nobre, onde eram guardados os comeres e beberes do patrão e que, na ausência deste, não deveria ser tocada em circunstância alguma.

Passadas umas semanas, apareceu-lhe na casa da vila o Praxedes, a queixar-se de que lhe faltavam víveres. Assaltado por um mau pressentimento, seu Leoveral começou a interrogá-lo, inteirando-se aos poucos da extensão do desastre. Relutantemente, o Praxedes foi contando a verdade toda. Consumira (certamente com alguma “ajuda externa”, porque sozinho não poderia) todas as provisões que lhe haviam sido deixadas; alegando necessidade, invadira a sagrada despensa patronal e começara a comer também o que lá encontrara.

- Os presuntos, Praxedes? As copas e salames?

- Pois comi, seu Leoveral...

- E os queijos? O bacalhau, os peixes?

- Comi, comi... O senhor vê, a necessidade...

- E os enlatados? As compotas? As passas?

- Tive que comer... Comi, comi tudo...

- E o vinho, Praxedes? O vinho?

- O vinho? O vinho... o vinho... eu fiz sagu!


Fonte: Fabrício, Adroaldo Furtado. Causos da Bossoroca e de outras querências. Porto Alegre: AGE, 1999, p.141/142.

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