Cuidado
com o que você diz aos filhos.
Minha
mãe, religiosa, frequentadora da missa todo dia, costumava nos explicar que
Jesus poderia aparecer na condição de um mendigo em nossa porta. Para a gente
tomar cuidado e não destratar só porque ele era sujo e fedido. O costume era
escorraçar o filho de Deus sem compreender seu sofisticado disfarce.
Sempre
que um mendigo apertava a nossa campainha em minha infância, espiava pelo olho
mágico e gritava, eufórico, para espanto daquele sujeito que pedia esmola ou um
remédio ou um pão velho:
-
É Jesus, mãe! Jesus voltou!
Festejava
sua chegada com frenéticos pulos. Muitos pedintes estranhavam nossa alegria e
davam meia-volta rapidamente. Não arriscavam sua reputação. As visitas foram
rareando. Com receio de nossa loucura, o círculo de mendicância vetou nossa
residência.
Naquele
tempo, eu obedecia mais do que compreendia, hoje compreendo mais do que
obedeço.
Meu
pensamento se transformou e confio nas aparências. As aparências é que são
verdadeiras.
A
vontade é responder para minha mãe: cuidado com o que você não diz aos filhos.
É
mais fácil Jesus ser acolhido camuflado de mendigo do que realmente como Jesus.
Jesus
surgindo em nossa frente como ele realmente é, com sua bata e beatitude, com
seus olhos limpos e sua pele pura, consideraríamos um charlatão, um impostor,
um tipo aproveitador fantasiado de Jesus. Jesus não seria aceito como Jesus.
Não
confiamos no óbvio. Desprezamos o óbvio. Há uma tradição de refutar o simples,
recusar as evidências, complicar a alegria.
Não
enxergamos a facilidade da felicidade.
Desde
criança, eu me sinto enganado principalmente quando não sou.
A
culpa é meu crime. Não antecipo o pior, e sim concretizo o pior, chamo o pior,
amo o pior, adapto-me ao pior, convenço-me de que apenas resta o pior.
Quero
ser esperto quando não é necessário. Como se a maturidade fosse sinônimo de
suspeita e desconfiança, e ingenuidade significasse acreditar de primeira.
Assim
recebemos o amor.
Se
o amor bate em nossa porta com cara de amor, não atenderemos, fingiremos que
não é conosco.
Se
a mulher de nossa vida despontar com jeito de mulher de nossa vida, não
aceitaremos. Complicaremos a conversa. Seremos grosseiros, prepotentes, soberbos,
não escutaremos até o fim.
Se
ela aparecer dedicada, afetuosa, decidida, disposta e romântica, pensaremos que
é uma farsa.
Preferimos
um amor mendigo, acabado, arrasado, infiel, que nos arraste para sua
destruição.
Optamos
por um amor de esmola, um amor de sobras, um amor que nos faz mal, claramente
egoísta e indiferente. Só pela miragem de que existe um salvador escondido
dentro dele.
Abrimos
a porta somente para quem não nos merece, enquanto quem nos merece jamais
recebe sua chance.
Fonte:
Para onde vai o amor? Carpinejar. 4º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015,
p. 16
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