quinta-feira, 27 de junho de 2019

A culpa é meu crime (Carpinejar)



Cuidado com o que você diz aos filhos.

Minha mãe, religiosa, frequentadora da missa todo dia, costumava nos explicar que Jesus poderia aparecer na condição de um mendigo em nossa porta. Para a gente tomar cuidado e não destratar só porque ele era sujo e fedido. O costume era escorraçar o filho de Deus sem compreender seu sofisticado disfarce.

Sempre que um mendigo apertava a nossa campainha em minha infância, espiava pelo olho mágico e gritava, eufórico, para espanto daquele sujeito que pedia esmola ou um remédio ou um pão velho:

- É Jesus, mãe! Jesus voltou!

Festejava sua chegada com frenéticos pulos. Muitos pedintes estranhavam nossa alegria e davam meia-volta rapidamente. Não arriscavam sua reputação. As visitas foram rareando. Com receio de nossa loucura, o círculo de mendicância vetou nossa residência.

Naquele tempo, eu obedecia mais do que compreendia, hoje compreendo mais do que obedeço.

Meu pensamento se transformou e confio nas aparências. As aparências é que são verdadeiras.

A vontade é responder para minha mãe: cuidado com o que você não diz aos filhos.

É mais fácil Jesus ser acolhido camuflado de mendigo do que realmente como Jesus.

Jesus surgindo em nossa frente como ele realmente é, com sua bata e beatitude, com seus olhos limpos e sua pele pura, consideraríamos um charlatão, um impostor, um tipo aproveitador fantasiado de Jesus. Jesus não seria aceito como Jesus.

Não confiamos no óbvio. Desprezamos o óbvio. Há uma tradição de refutar o simples, recusar as evidências, complicar a alegria.

Não enxergamos a facilidade da felicidade.

Desde criança, eu me sinto enganado principalmente quando não sou.

A culpa é meu crime. Não antecipo o pior, e sim concretizo o pior, chamo o pior, amo o pior, adapto-me ao pior, convenço-me de que apenas resta o pior.

Quero ser esperto quando não é necessário. Como se a maturidade fosse sinônimo de suspeita e desconfiança, e ingenuidade significasse acreditar de primeira.

Assim recebemos o amor.

Se o amor bate em nossa porta com cara de amor, não atenderemos, fingiremos que não é conosco.

Se a mulher de nossa vida despontar com jeito de mulher de nossa vida, não aceitaremos. Complicaremos a conversa. Seremos grosseiros, prepotentes, soberbos, não escutaremos até o fim.

Se ela aparecer dedicada, afetuosa, decidida, disposta e romântica, pensaremos que é uma farsa.

Preferimos um amor mendigo, acabado, arrasado, infiel, que nos arraste para sua destruição.

Optamos por um amor de esmola, um amor de sobras, um amor que nos faz mal, claramente egoísta e indiferente. Só pela miragem de que existe um salvador escondido dentro dele.

Abrimos a porta somente para quem não nos merece, enquanto quem nos merece jamais recebe sua chance.  


Fonte: Para onde vai o amor? Carpinejar. 4º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015, p. 16

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