sábado, 7 de julho de 2018

TRADICIONALISTAS & REGIONALISTAS & NATIVISTAS (Luiz Coronel - Revista Tarca)

ATUALIDADE


Conciliação Inteligente ou Ruptura Imediata

Por LUIZ CORONEL

Ciclo dos Festivais:

A presença dos festivais de cunho nativista, após 15 anos de caminho andado, afirma a importância destes eventos no movimento cultural gaúcho.

Poetas, músicos, intérpretes, instrumentistas muito devem a estes eventos em termos de conquista de espaço para revelação de seus trabalhos. Mas chegamos a um impasse, isso é uma verdade sem saída para malabarismos. Precisamos dar nitidez aos personagens. Clareza às posições assumidas.

Recusa:

O ímpeto conservador e o impulso transformista existem até mesmo dentro de uma molécula. Faz parte da dinâmica da vida essa contradição de forças.

O trabalho retrospectivo e o proponente conviveram muito bem dentro dos festivais.

Até que chegou o momento da opção. Da opção conservadora. A recusa à convivência não partiu da linha de frente, dos compositores abertos a novas formas, criadores de uma nova linguagem. Partiu de uma recusa do pensamento conservador, que primeiramente eliminou a participação dos músicos inovadores e, presentemente, pela declaração expressa de seu pensamento exclusivista.

A comissão de seleção, como diz Dilan Camargo, se tornaram “pelotões de fuzilamento, comissão de inquérito” em face ao novo.

Importa dizer:

Os compositores voltados ao futuro, a uma nova linguagem, regional, gaúcha, mas renovada, nunca se preocuparam em determinar domínio sobre os festivais.

Quem teve este gesto, foram os tradicionalistas.

Porque para nós todos, o violão do Glênio Fagundes, o trabalho do Telmo de Lima Freitas, dos Angueras, e todo esse acervo de linha galponeira, foi sempre aceita, estimada e valorizada e a recíproca não aconteceu?

Porque os tradicionalistas temem o futuro. Sua viagem é rumo a um passado. Centauros, lendas, heróis, e quem tentar usar uma linguagem feita de imagens novas, de arranjos recriados, de motivos contemporâneos, passa a ser profano.

Nós aplaudimos Esquilador, Vozes campeiras, Guri, mas para os tradicionalistas é quase impossível encarar a existência de um Astro Haragano, Cordas de Espinho, Pampa de Luz.

Esta argumentação põe bem claro de onde parte a recusa.

Os fatos:

Não me tenho na qualificação de vanguardista de nada. Cito Lukacs: “em arte importa ficar na vanguarda das retaguardas e na retaguarda das vanguardas”.

Mas basta não ter tido uma postura rotineira para ter sentido na pele o látego da incompreensão. Numa narrativa pessoal comecei e vivi, prestigiado e perseguido pelos festivais.

Na Califórnia, “Caminho de Volta” com Marco Aurélio Vasconcellos ganhava o prêmio de melhor letra e desclassificava por uma única razão: havia um “cello” entre os instrumentos.

Comenta-se que em Bagé, capital de minha infância, um tradicionalista ortodoxo, chegou a propor um negócio, na hora da classificação: - “Faço qualquer troca, mas nunca SERVENTIA em primeiro lugar”. A letra era profana, pois falava em rádio de pilha, azulejo, livros contábeis.

Arte:

Creio ser necessário definir que existe antes de tudo uma profunda e definitiva divisão de águas, no que se refere ao conceito e função da arte, entre as partes contendoras no âmbito da cultura gaúcha.

Parto do princípio de que o “passado é povoado de fantasmas, o presente de máscaras e o futuro de sonhos”.

Arte é um voo livre. É um salto da realidade através das asas da imaginação.

Arte é uma proposta de inauguração da vida, reproposta pela criatividade.

Desta forma, arte é uma antecipação do futuro, muito mais que uma redescoberta do passado.

Que a arte deva partir de uma substância histórica, de uma identificação e solidariedade de vidas, isso é lógico e transparente. A tentativa de fazer uma arte como teriam feito nossos antepassados, é para mim uma obstinação em animar museu. Dar manivela nas estátuas, colocar pilhas nas lembranças.

Cada vez mais penso que fazer arte é tocar fogo na fábrica de fogos de artifício. Isso é: iluminar o céu e a terra com as estrelas de nossa imaginação.

Vamos e venhamos, é bem diferente uma posição como essa, daquela que bem caracteriza os que andam ainda em busca de mitos que perderam seu poder de imantação sobre a mente e o coração dos homens, habitantes deste fim de século XX.

Preconceitos:

Einstein, leia-se gênio, dizia que era mais fácil fissurar um átomo que romper um preconceito.

Da mesma forma que existe um preconceito nas emissoras, que separam, qual estivessem inoculadas de doença contagiosa, a música de tema gaúcho, existe um preconceito contra a postura inovativa. Há Moisés demais descendo a coxilha trazendo novas tábuas da lei para dizer o que deve ser feito para manter a sacra fidelidade aos valores fundamentais da arte tradicionalista.

Pelo amor de Deus: a ninguém foi dado o direito de dizer a nenhum artista o que ele deve fazer!

Respeitem a beleza do estilo pessoal. Prestigiem a evolução criativa de cada um dos compositores. Viabilizem a postura de cada um dos intérpretes. Um palco é um palco, não é um altar.

Pessoalmente

Sou de alma branda, nada dado a grandes polêmicas. Não existe ressentimento pessoal no que dito.

Essa luta é de postura cultural. Existem pessoas optando pela profissão de músico; pessoas definindo-se como artistas profissionais, que estão sendo incompreendidas, barradas, injustiçadas em nome de dogmas asfixiantes. Eu gostaria de colocar é que é preciso e lindo que exista o tango de Gardel e a música de Piazzolla. Que convivam, para dar âmbito e riqueza, vastidão e verdade, Pery Souza e Gaúcho da Fronteira.

A esta altura de minha vida, com oito livros publicados, definições claras sobre a vida e a arte, nada peço para mim. Os festivais nada mais têm a me dar. Falo em nome de algo maior: a cultura gaúcha e sua viabilidade.

Evento & Legado:

Tenho dito que um festival é seu espetáculo, mas também seu legado.

Os festivais, se seguirem a opção conservadora, poderão, por mais uns cinco anos, manter o brilho do espetáculo, mas estarão enterrando o movimento cultural gaúcho, em sua extensão musical. Ao mesmo tempo em que edificam a construção de seu evento, fazem a cova deste ciclo.

PROPOSTAS:

E me torno uma flor de obsessão quando digo: Festival não tem proposta. Quem tem proposta é o artista.

Festival tem identidade, pois um festival de Taquara deverá ter uma diferenciação sobre um festival de Uruguaiana.

É essa hedionda história da proposta do festival que faz a munição dos fuzilamentos das comissões de seleção, com sua guarda cativa.

Definição:

E assim chegamos ao impasse irremediável.

Ou há uma abertura e os festivais englobam a cultura gaúcha em sua expressão mais aberta, ou os festivais, cada um por si, faz sua declaração conservadora de princípios, e o grande grupo dos músicos e compositores de formação e proposta inovadora, definem sua não participação. Jogo de regras claras. Conciliação ou rompimento.

Não estou me precipitando, falando por conta própria, estou, isto sim, expressando uma tendência irremediável.

Rio Grande do Sul,

somos uma cidade estado, meio lusos, meio espanhóis, com trajes típicos, ritmos próprios, história diferenciada.

Isso deverá render, artisticamente um produto cultural diferenciado. Mas diferenciado não quer dizer ausente, de seu tempo, das grandes causas, das imensas esperanças, das inquietações que marcam e cicatrizam o rosto de nossa época.

É preciso frisar que ninguém tem o monopólio da afeição pelo Rio Grande.

O homem em cima do cavalo e em cima da Asa-Delta, são da mesma maneira gaúchos.

O homem do bandoneon e o da guitarra elétrica, conhecem o mesmo milagre da afeição por sua terra.

O pintor abstrato e o figurativista falam a mesma linguagem da emoção do mundo vista pela dor.

Será difícil compreender essa meridiana realidade?

A discriminação que está sendo realizada, em nome do nativismo, é, antes de mais nada, desumana.

Einstein dizia:

“Depois que inventaram o trator é inútil aprimorar o arado”.

Existe algo de equívoco e contraditório na postura tradicionalista ortodoxa. Empregam microfones. Adoram ver suas promoções na TV, mas querem que a mensagem seja feita de lembranças ou referências de episódios que datam do candeeiro, do boi de canga, da carreta.

Viajam pelo asfalto, mas proíbem que nele se fale.

Andam de avião, mas querem a glorificação do cavalo.

Gravam o disco, mas querem de forma, tema e conteúdo, datem uma expressão de mundo e vida que anteceda a tudo isso.

Ou seja: há um mascaramento da realidade.

Tradicionalistas & Regionalistas:

Quando uso estas expressões, busco não definições sociológicas, mas procuro captar características destes contingentes.

Os tradicionalistas são caracterizados por uma grande afeição às tradições. Cultuam com profundidade lendas e mitos. Realizam uma ideação romântica do passado. Assumem uma postura saudosista, lamentam a perda de um paraíso perdido.

Encontram na valentia dos heróis, o ciclo dourado de nossa história. E a partir daí, fazer arte é restaurar estes tempos.

Os regionalistas já assumem uma posição de síntese e transposição de todo o passado.

A história passa a interessar como legado de características culturais. Acreditam na dinâmica dos tempos. Estão despertos às dimensões do tempo: passado, presente e futuro.

Querem do gaúcho seus elementos essenciais, mais do que o pictórico ou legendário.

Distanciam-se dos universalistas, na medida em que estes acreditam que o mundo universalizou a cultura, criando uma só entidade humana indiferenciada.

Em síntese: os regionalistas tendem ao sulino como essência, os tradicionalistas, querem o gaúcho como mito.

Difícil e desafiador, no meu entender, é estender uma ponte entre estas tendências.

Wilde:

Oscar Wilde, quando vítima de processo por sua obra Salomé, respondeu a seus algozes: “uma obra de arte será ou não será bela”. Ou seja: não é moral nem imoral, é arte ou não é arte.

Jerônimo Jardim teve postura correta ao endossar a classificação de “Vozes Campeiras” no Musicanto. Era uma música com letra que acredito diametralmente oposta às suas concepções estéticas. Mas era um trabalho bem sucedido.

Assim, é hora de dar um basta ao “isso é nativo, isso não é nativo”. É hora de dizer: é um trabalho de nível artístico.

Stalin, Mac Arthur, Franco:

Nossos tempos conhecem três posturas típicas da intolerância.

Stalin com o realismo socialista asfixiou as artes russas.

Mac Arthur com sua “caça às bruxas” corre Chaplin dos EEUU.

Os Franquistas cantavam: “cara ao sol e guerra à inteligência”. E um de seus comentários dizia: “Cada vez que ouço falar em cultura tenho ímpetos de puxar o revólver”.

No Brasil saímos de 20 anos de censura. Há campo para sentir e dizer a vida em nossos festivais. Mas uma outra censura se instaura: A censura estética, oriunda de concepções conservadoras de arte.

Grécia:

A vida dos gregos era talvez mais simples, rústica que a do nosso homem do campo.

Plantavam favas, cultuavam suas terras, o mel, as casas simples. Sua arte, no entanto fez o voo mais alto e definitivo da história da humanidade.

A tragédia grega é um monumento da indagação das inquietações da alma humana. Ficassem os gregos apenas falando da rotina de seus campesinos, não teriam legado sua obra.

E lembre-se: no século de ouro, Atenas tinha apenas 500 mil habitantes.

Walt Whitman e Maiacóviski:

São dois gigantes. Americano o primeiro. Russo o segundo. Whitman transmitia a seus cidadãos: “a tradição é o futuro”.

Maiacóviski bradava do outro lado: “um novo tempo pede novas formas”. Vamos abrir os ouvidos, a alma e o coração, a estes dois gigantes que nos gritam do corredor do século, pedindo novas posturas.

POSTURAS:

Vejamos as argumentações dos tradicionalistas ortodoxos: “quem quiser assistir rock que assista. Quem quiser ouvir samba que ouça. Mas se quiser ouvir música gaúcha, que seja música gaúcha autêntica”. O impasse surge na definição de “autêntico”.

Autêntico é o que não se renova? É o que repete velhas estruturas? Não. Autêntico, em arte, é o que tem ímpeto criativo. Há uma confusão entre arte ingênua e autêntica, sem saída.

Não há arte sem sinceridade:

A encomenda cultural termina criando um produto artístico caricatural de tão frágil. O artista é um ser liberato e não cativo.

O critério da encomenda segundo regulamentos termina, à curto prazo, por criar uma arte de oportunistas e não de criadores.

POLÊMICA:

Quero encerrar citando Gramsci: “Precisamos acreditar na polêmica. Com ela o respeito às ideias opostas. Se acreditarmos na dialética das ideias, temos de nos predispor à polêmica. Quem não respeita as ideias do outro, desrespeita suas próprias ideias”.
O movimento cultural gaúcho, em sua manifestação musical, dentro do ciclo dos festivais, sempre foi carente de um debate amplo e aberto. Comemos rebanhos. Dançamos e cantamos. Esquecendo que arte é divertimento, mas é mais do que tudo, uma forma rica de conhecimento da verdade da vida.
Fonte: Tarca – Revista de Cultura Gaúcha – ANO III – Maio/1986 – Nº 14 - p. 21/23


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