Conciliação Inteligente ou Ruptura Imediata
Por LUIZ CORONEL
Ciclo dos
Festivais:
A presença dos
festivais de cunho nativista, após 15 anos de caminho andado, afirma a
importância destes eventos no movimento cultural gaúcho.
Poetas, músicos,
intérpretes, instrumentistas muito devem a estes eventos em termos de conquista
de espaço para revelação de seus trabalhos. Mas chegamos a um impasse, isso é
uma verdade sem saída para malabarismos. Precisamos dar nitidez aos
personagens. Clareza às posições assumidas.
Recusa:
O ímpeto
conservador e o impulso transformista existem até mesmo dentro de uma molécula.
Faz parte da dinâmica da vida essa contradição de forças.
O trabalho
retrospectivo e o proponente conviveram muito bem dentro dos festivais.
Até que chegou o
momento da opção. Da opção conservadora. A recusa à convivência não partiu da
linha de frente, dos compositores abertos a novas formas, criadores de uma nova
linguagem. Partiu de uma recusa do pensamento conservador, que primeiramente
eliminou a participação dos músicos inovadores e, presentemente, pela
declaração expressa de seu pensamento exclusivista.
A comissão de
seleção, como diz Dilan Camargo, se tornaram “pelotões de fuzilamento, comissão
de inquérito” em face ao novo.
Importa dizer:
Os compositores
voltados ao futuro, a uma nova linguagem, regional, gaúcha, mas renovada, nunca
se preocuparam em determinar domínio sobre os festivais.
Quem teve este
gesto, foram os tradicionalistas.
Porque para nós
todos, o violão do Glênio Fagundes, o trabalho do Telmo de Lima Freitas, dos
Angueras, e todo esse acervo de linha galponeira, foi sempre aceita, estimada e
valorizada e a recíproca não aconteceu?
Porque os
tradicionalistas temem o futuro. Sua viagem é rumo a um passado. Centauros,
lendas, heróis, e quem tentar usar uma linguagem feita de imagens novas, de
arranjos recriados, de motivos contemporâneos, passa a ser profano.
Nós aplaudimos
Esquilador, Vozes campeiras, Guri, mas para os tradicionalistas é quase
impossível encarar a existência de um Astro Haragano, Cordas de Espinho, Pampa
de Luz.
Esta
argumentação põe bem claro de onde parte a recusa.
Os fatos:
Não me tenho na
qualificação de vanguardista de nada. Cito Lukacs: “em arte importa ficar na
vanguarda das retaguardas e na retaguarda das vanguardas”.
Mas basta não
ter tido uma postura rotineira para ter sentido na pele o látego da
incompreensão. Numa narrativa pessoal comecei e vivi, prestigiado e perseguido
pelos festivais.
Na Califórnia,
“Caminho de Volta” com Marco Aurélio Vasconcellos ganhava o prêmio de melhor
letra e desclassificava por uma única razão: havia um “cello” entre os
instrumentos.
Comenta-se que
em Bagé, capital de minha infância, um tradicionalista ortodoxo, chegou a
propor um negócio, na hora da classificação: - “Faço qualquer troca, mas nunca
SERVENTIA em primeiro lugar”. A letra era profana, pois falava em rádio de
pilha, azulejo, livros contábeis.
Arte:
Creio ser necessário
definir que existe antes de tudo uma profunda e definitiva divisão de águas, no
que se refere ao conceito e função da arte, entre as partes contendoras no
âmbito da cultura gaúcha.
Parto do
princípio de que o “passado é povoado de fantasmas, o presente de máscaras e o
futuro de sonhos”.
Arte é um voo
livre. É um salto da realidade através das asas da imaginação.
Arte é uma
proposta de inauguração da vida, reproposta pela criatividade.
Desta forma,
arte é uma antecipação do futuro, muito mais que uma redescoberta do passado.
Que a arte deva
partir de uma substância histórica, de uma identificação e solidariedade de
vidas, isso é lógico e transparente. A tentativa de fazer uma arte como teriam
feito nossos antepassados, é para mim uma obstinação em animar museu. Dar
manivela nas estátuas, colocar pilhas nas lembranças.
Cada vez mais
penso que fazer arte é tocar fogo na fábrica de fogos de artifício. Isso é:
iluminar o céu e a terra com as estrelas de nossa imaginação.
Vamos e
venhamos, é bem diferente uma posição como essa, daquela que bem caracteriza os
que andam ainda em busca de mitos que perderam seu poder de imantação sobre a
mente e o coração dos homens, habitantes deste fim de século XX.
Preconceitos:
Einstein,
leia-se gênio, dizia que era mais fácil fissurar um átomo que romper um
preconceito.
Da mesma forma
que existe um preconceito nas emissoras, que separam, qual estivessem
inoculadas de doença contagiosa, a música de tema gaúcho, existe um preconceito
contra a postura inovativa. Há Moisés demais descendo a coxilha trazendo novas tábuas
da lei para dizer o que deve ser feito para manter a sacra fidelidade aos
valores fundamentais da arte tradicionalista.
Pelo amor de
Deus: a ninguém foi dado o direito de dizer a nenhum artista o que ele deve
fazer!
Respeitem a
beleza do estilo pessoal. Prestigiem a evolução criativa de cada um dos
compositores. Viabilizem a postura de cada um dos intérpretes. Um palco é um
palco, não é um altar.
Pessoalmente
Sou de alma
branda, nada dado a grandes polêmicas. Não existe ressentimento pessoal no que
dito.
Essa luta é de
postura cultural. Existem pessoas optando pela profissão de músico; pessoas
definindo-se como artistas profissionais, que estão sendo incompreendidas,
barradas, injustiçadas em nome de dogmas asfixiantes. Eu gostaria de colocar é
que é preciso e lindo que exista o tango de Gardel e a música de Piazzolla. Que
convivam, para dar âmbito e riqueza, vastidão e verdade, Pery Souza e Gaúcho da
Fronteira.
A esta altura de
minha vida, com oito livros publicados, definições claras sobre a vida e a arte,
nada peço para mim. Os festivais nada mais têm a me dar. Falo em nome de algo
maior: a cultura gaúcha e sua viabilidade.
Evento &
Legado:
Tenho dito que
um festival é seu espetáculo, mas também seu legado.
Os festivais, se
seguirem a opção conservadora, poderão, por mais uns cinco anos, manter o
brilho do espetáculo, mas estarão enterrando o movimento cultural gaúcho, em
sua extensão musical. Ao mesmo tempo em que edificam a construção de seu
evento, fazem a cova deste ciclo.
PROPOSTAS:
E me torno uma
flor de obsessão quando digo: Festival não tem proposta. Quem tem proposta é o
artista.
Festival tem
identidade, pois um festival de Taquara deverá ter uma diferenciação sobre um
festival de Uruguaiana.
É essa hedionda
história da proposta do festival que faz a munição dos fuzilamentos das
comissões de seleção, com sua guarda cativa.
Definição:
E assim chegamos
ao impasse irremediável.
Ou há uma
abertura e os festivais englobam a cultura gaúcha em sua expressão mais aberta,
ou os festivais, cada um por si, faz sua declaração conservadora de princípios,
e o grande grupo dos músicos e compositores de formação e proposta inovadora,
definem sua não participação. Jogo de regras claras. Conciliação ou rompimento.
Não estou me
precipitando, falando por conta própria, estou, isto sim, expressando uma
tendência irremediável.
Rio Grande do
Sul,
somos uma cidade
estado, meio lusos, meio espanhóis, com trajes típicos, ritmos próprios,
história diferenciada.
Isso deverá
render, artisticamente um produto cultural diferenciado. Mas diferenciado não
quer dizer ausente, de seu tempo, das grandes causas, das imensas esperanças,
das inquietações que marcam e cicatrizam o rosto de nossa época.
É preciso frisar
que ninguém tem o monopólio da afeição pelo Rio Grande.
O homem em cima
do cavalo e em cima da Asa-Delta, são da mesma maneira gaúchos.
O homem do
bandoneon e o da guitarra elétrica, conhecem o mesmo milagre da afeição por sua
terra.
O pintor
abstrato e o figurativista falam a mesma linguagem da emoção do mundo vista
pela dor.
Será difícil
compreender essa meridiana realidade?
A discriminação
que está sendo realizada, em nome do nativismo, é, antes de mais nada,
desumana.
Einstein dizia:
“Depois que
inventaram o trator é inútil aprimorar o arado”.
Existe algo de
equívoco e contraditório na postura tradicionalista ortodoxa. Empregam
microfones. Adoram ver suas promoções na TV, mas querem que a mensagem seja
feita de lembranças ou referências de episódios que datam do candeeiro, do boi
de canga, da carreta.
Viajam pelo
asfalto, mas proíbem que nele se fale.
Andam de avião,
mas querem a glorificação do cavalo.
Gravam o disco,
mas querem de forma, tema e conteúdo, datem uma expressão de mundo e vida que
anteceda a tudo isso.
Ou seja: há um
mascaramento da realidade.
Tradicionalistas
& Regionalistas:
Quando uso estas
expressões, busco não definições sociológicas, mas procuro captar
características destes contingentes.
Os
tradicionalistas são caracterizados por uma grande afeição às tradições.
Cultuam com profundidade lendas e mitos. Realizam uma ideação romântica do
passado. Assumem uma postura saudosista, lamentam a perda de um paraíso
perdido.
Encontram na
valentia dos heróis, o ciclo dourado de nossa história. E a partir daí, fazer
arte é restaurar estes tempos.
Os regionalistas
já assumem uma posição de síntese e transposição de todo o passado.
A história passa
a interessar como legado de características culturais. Acreditam na dinâmica
dos tempos. Estão despertos às dimensões do tempo: passado, presente e futuro.
Querem do gaúcho
seus elementos essenciais, mais do que o pictórico ou legendário.
Distanciam-se
dos universalistas, na medida em que estes acreditam que o mundo universalizou
a cultura, criando uma só entidade humana indiferenciada.
Em síntese: os
regionalistas tendem ao sulino como essência, os tradicionalistas, querem o
gaúcho como mito.
Difícil e
desafiador, no meu entender, é estender uma ponte entre estas tendências.
Wilde:
Oscar Wilde, quando
vítima de processo por sua obra Salomé, respondeu a seus algozes: “uma obra de
arte será ou não será bela”. Ou seja: não é moral nem imoral, é arte ou não é
arte.
Jerônimo Jardim
teve postura correta ao endossar a classificação de “Vozes Campeiras” no
Musicanto. Era uma música com letra que acredito diametralmente oposta às suas
concepções estéticas. Mas era um trabalho bem sucedido.
Assim, é hora de
dar um basta ao “isso é nativo, isso não é nativo”. É hora de dizer: é um
trabalho de nível artístico.
Stalin, Mac Arthur, Franco:
Nossos tempos
conhecem três posturas típicas da intolerância.
Stalin com o
realismo socialista asfixiou as artes russas.
Mac Arthur com
sua “caça às bruxas” corre Chaplin dos EEUU.
Os Franquistas
cantavam: “cara ao sol e guerra à inteligência”. E um de seus comentários
dizia: “Cada vez que ouço falar em cultura tenho ímpetos de puxar o revólver”.
No Brasil saímos
de 20 anos de censura. Há campo para sentir e dizer a vida em nossos festivais.
Mas uma outra censura se instaura: A censura estética, oriunda de concepções
conservadoras de arte.
Grécia:
A vida dos
gregos era talvez mais simples, rústica que a do nosso homem do campo.
Plantavam favas,
cultuavam suas terras, o mel, as casas simples. Sua arte, no entanto fez o voo
mais alto e definitivo da história da humanidade.
A tragédia grega
é um monumento da indagação das inquietações da alma humana. Ficassem os gregos
apenas falando da rotina de seus campesinos, não teriam legado sua obra.
E lembre-se: no
século de ouro, Atenas tinha apenas 500 mil habitantes.
Walt Whitman e
Maiacóviski:
São dois
gigantes. Americano o primeiro. Russo o segundo. Whitman transmitia a seus
cidadãos: “a tradição é o futuro”.
Maiacóviski
bradava do outro lado: “um novo tempo pede novas formas”. Vamos abrir os
ouvidos, a alma e o coração, a estes dois gigantes que nos gritam do corredor
do século, pedindo novas posturas.
POSTURAS:
Vejamos as
argumentações dos tradicionalistas ortodoxos: “quem quiser assistir rock que
assista. Quem quiser ouvir samba que ouça. Mas se quiser ouvir música gaúcha,
que seja música gaúcha autêntica”. O impasse surge na definição de “autêntico”.
Autêntico é o
que não se renova? É o que repete velhas estruturas? Não. Autêntico, em arte, é
o que tem ímpeto criativo. Há uma confusão entre arte ingênua e autêntica, sem
saída.
Não há arte sem
sinceridade:
A encomenda
cultural termina criando um produto artístico caricatural de tão frágil. O
artista é um ser liberato e não cativo.
O critério da
encomenda segundo regulamentos termina, à curto prazo, por criar uma arte de
oportunistas e não de criadores.
POLÊMICA:
Quero encerrar
citando Gramsci: “Precisamos acreditar na polêmica. Com ela o respeito às
ideias opostas. Se acreditarmos na dialética das ideias, temos de nos predispor
à polêmica. Quem não respeita as ideias do outro, desrespeita suas próprias
ideias”.
O movimento
cultural gaúcho, em sua manifestação musical, dentro do ciclo dos festivais,
sempre foi carente de um debate amplo e aberto. Comemos rebanhos. Dançamos e
cantamos. Esquecendo que arte é divertimento, mas é mais do que tudo, uma forma
rica de conhecimento da verdade da vida.
Fonte:
Tarca – Revista de Cultura Gaúcha – ANO III – Maio/1986 – Nº 14 - p. 21/23
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