Tudo é fraude: buscar o mínimo de ilusão, permanecer no nível usual, buscar o máximo. No primeiro caso, frauda-se o bem, na medida em que se deseja tornar fácil demais sua conquista; o mal, na medida em que é colocado em condições de luta excessivamente desfavoráveis. No segundo caso, o bem é fraudado na medida em que não se luta para alcançá-lo, nem mesmo naquilo que é terreno. No terceiro caso, frauda-se o bem na medida em que a esperança é torná-lo impotente com sua máxima intensificação. Seria preferível, nisso tudo, o segundo caso, pois sempre se frauda o bem e não o mal; neste caso, pelo menos na aparência.
Nossa arte consiste em sermos ofuscados pela verdade: a luz sobre o rosto horrível que vai recuando é verdadeira, de resto nada.
Mente-se o menos possível só quando se mente o menos possível e não quando se tem a menor oportunidade possível para mentir.
Teoricamente existe uma chance de felicidade plena: acreditar no que há de indestrutível e si próprio e não ter de lutar para alcançá-lo.
Teste a sim mesmo pela humanidade. Ela faz quem duvida duvidar, quem acredita, acreditar.
O convívio com os seres humanos atrai para a auto-observação.
A verdade é indivisível, portanto não pode ter conhecimento de si mesma; quem quer que diga conhecê-la está se referindo a uma mentira.
Ninguém pode exigir o que, em última análise, o prejudica. Se uma pessoa em particular, afinal de contas, parece assim – e talvez existam sempre pessoas desse tipo - isso se explica pelo fato que alguém, no ser humano, exige algo que na verdade o beneficia, embora prejudique seriamente um segundo, parte atraído para julgar o caso. Se a pessoa foi colocada logo de início, e não apenas na hora do julgamento, ao lado da segunda, então a primeira teria desaparecido aos poucos e com ela a exigência.
O mal é uma irradiação da consciência humana em certas situações de transição. Não é propriamente o mundo sensorial que é aparência, mas o mal que carrega consigo e, seja como for, constitui o mundo dos sentidos para os nossos olhos.
Duas possibilidades: fazer-se infinitamente pequeno ou ser assim. A primeira é a perfeição, ou seja, a inação; a segunda, o início, a ação.
As alegrias desta vida não são as dela, mas o nosso medo de ascender a uma vida mais elevada; os tormentos desta vida não são os dela, mas o nosso auto tormento por causa daquele medo.
Todos os sofrimentos ao nosso redor nós também temos de sofrer.
Temos todos não um corpo, mas um estilo de crescer, o que nos faz atravessar todas as dores, seja nesta ou naquela forma. Assim como a criança evolui por todos os estágios da vida até a velhice e a morte (e cada estágio no fundo parece inalcançável ao anterior, na exigência ou no medo, do mesmo modo evoluímos (ligados não menos profundamente à humanidade do que a nós mesmos) por meio de todas as dores deste mundo. Nesse contexto, não existe lugar para a justiça, nem também para o medo da dor ou para a interpretação do sofrimento como um mérito.
Você pode se conter diante dos sofrimentos do mundo – é algo que tem liberdade de fazer e corresponde à sua natureza, mas talvez seja esse autocontrole o único sofrimento que você poderia evitar.
Aforismos reunidos. Kafka, Franz, 1883-1924. Introdução e tradução de Modesto Carone. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.
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