quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Epistola familiar (Cabrião)

 

SÃO PAULO, 11 DE DEZEMBRO DE 1866.


Meu querido Gedeão

Das Tramoyas Cansanção.


Ha muito, presado amigo,

Dos meus males doce abrigo,

Pretendia eu novas dar-te

D'esta Patria do Deus Marte;

Porém sempre perseguido,

Pelo fado fementido,

Vivo tão atropelado,

De trabalho estenuado,

Que nem sei como mastigo

As torradinhas de trigo,

Com que dou conforto ao peito,

Já das magoas tão desfeito.

Bem sei eu, que a velha historia,

Por querer turbar a gloria

Aos preclaros descendentes

Dos heroes armipotentes

- Cubas, Pires e Buenos -,

Que venceram Turcos, Brenos,

Chinos, Persas, Anglicanos,

Fanfarroens heroes hispanos

- Sancho Pansa e Dom Quixote -,

A bodoque e chifarote,

Quer, por força, que o Deus Marte

Fosse nado em outra parte.

Eu, porém, protesto e juro,

Do que digo bem seguro,

Que a extrangeira historia mente;

Porque Marte é d'esta gente.

Inda mais, dizer-te quero,

Contra a voz do mundo fero,

Que as victorias d'esta terra

Quer lançar do lodo á berra,

Que São Jorge, o gram guerreiro,

Aqui viu a luz primeiro;

Que São Pedro, o pescador,

Aqui foi agricultor;

E São Paulo, o cabalista,

Pela fama, foi Paulista.


Isto dito, á pressa embhora,

Tratar vou de mim aghora.

Sabes tu, bom Gedeão,

Como vive o cidadão,

Que, mettido entre fidalgos,

Como lebre ao pé de galgos,

Anda sempre amedrontado,

Que lhe-vão, sobre o costado,

Dar de rijo, com pujança,

Por amor da temperança;

Pois o pobre, por mania,

Vive sempre em gritaria

Contra os fóros da nobreza,

Que, arrogante, fera e teza,

Vai malhando na gentalha,

Que pisa, rosna e ralha...


De saude não vou bem;

De dinheiro,... nem vintém;

De namoros... menos mal;

Pois que, sendo jovial,

Não receio ser ferido

Pela setta de Cupido.


E, demais, meu Gedeão,

N'esta era do Balão,

Deve o homem namorar,

Que é negocio bem casar.


Quem pretende hury formosa,

Que em belleza, excede á rosa,

Na candura á neve algente,

Ou do Sol á luz nitente,

Anjo excelso de primores,

Mas sem dote – sem valores...

Será tudo, até beocio;

Nunca homem de negocio.


Tartaruga com dinheiro!...

Isso é vaso e outro cheiro;

Que bem vale o sacrificio,

Que redunda em beneficio;

Nescia ou tola, malcriada,

Ha de ser idolatrada;

Que, á hum noivo calculista,

Nada ha que dê na vista.

O desfructe é distração,

A sandice reflexão.

A feiura symphatia,

Seja torta, velha ou tia;

Pois lá diz o velho adagio,

Dos tartufos apanagio,

- Que o dinheiro tudo encobre

E defeito é só ser pobre-.


Por seu lado, as taes matronas,

Apesar de velharronas,

Soccoridas do postiço,

Que, de alcaides, é feitiço,

Fazem dar volta ao miolo

Do sagaz tartufo ou tolo.


Vê-se aqui cada magriça,

Com formato de linguiça,

Repimpada atroz perúa,

Roçagante pela rua,

Embrulhada em fino raz,

Preza ao braço de hum rapaz,

Tam himpante, tam pimpona,

Que parece huma Amazona,

Ou singrante Náo de Aveiro

Rebocada por Saveiro!

Que rotunda matronaça,

Para quem parece escaça

Toda a terra Americana,

Desde o Prata até Goyana!


Sem postiço a magricela

Dá seus ares de gazela,

De raposa ou velha gata;

Mas, vestida, oh, que Fragata!

Tem postigos, portinholas,

Suspensorios, sugigolas,

Ferros, mastros, cordoalhas,

Encrespadas maravalhas,

Bordas falsas, cabrestantes,

Sondas, boyas e oitantes,

Bujarronas, vela-grande,

Em que o vento audaz se-espande;

Chaminé, carvão e gaz,

Breu, azeite e agua-raz;

Por botinas duas lanchas;

Os dois pés servem de pranchas;

Lenha, estopa, o alcatrão,

Tudo embaixo do Balão!


A garbosa rapazia

Não se-deixa em calmaria:

Cabelleiras, garbinados,

Chapéos pretos, niveos, pardos,

Pince-nez de toda a casta,

Parvoice muito vasta,

Calça larga, á porcalhota,

Gravatinhas de janota,

Tudo tem, com abastança

Quem se-trata com chibança.


Viva a moda, meu amigo,

Morra tudo que é antigo!


Deixa a roça, Gedeão,

Basta já de ser poltrão

Anda: vem para a cidade,

Traz a tua F'licidade,

A Marica, a Josephina,

Bella rosa purpurina.

Quero vel-as estufadas,

De tundás com almofadas,

Rochunchudas e galantes,

Quaes repolhos ambulantes.

Segue a moda e o progresso;

Volta as costas ao regresso.


E' a moda o salvaterio

Dos que a-buscam com mysterio;

Da velhota inconsolavel,

Do janota desfrutavel,

Que campando de galante,

Mostra a todos que é pedante;

Do pansudo sem juizo,

Que com ella cobra o sizo;

Té no próprio Pio nono,

A moda ferrou tal mono,

Que, de humilde franciscano

O-tornou republicano!...

E mais tarde, por magana,

Revirou-o, com tal gana,

Que dos Reis, irmão querido

Fez o Papa fementido.


Modas ha com tal fartura,

Que parece já loucura:

Chapellinhos á franceza,

Babadinhos á turqueza,

Largas mantas, á romana,

Penteados á sultana,

Capotinhos, sedas frouchas,

Franjas, pentes, rendas, trôchas;

Lindas flores indianas,

Molas d'aço, barbatanas,

Para erguer seios cahidos

E fazer guapos vestidos.


N'estes tempos, meu querido,

E' que vale ser marido.

Vê lá tu, que és hum mestraço,

Com teus visos de madraço,

Si não é hum grande achado

Este meu enunciado.

E si pescas da sciencia,

Nota bem a consequencia:

Sabe o marido, coitado,

Pela esposa fulminado,

Vai á loja da Madama,

Que é modista d'alta fama,

Compra leques, luvas, cheiros,

Traz comsigo seis caixeiros,

Carregados de chocalhos,

Que não valem cascas d'alhos,

E, de amores transportando,

Sem se-ver pobre e pellado,

Chama a Eva portentosa,

Que vem toda vaporosa,

De cabello esparralhado,

Vestido longo arrastado,

Bocejando, com desdem,

Como quem mil contos tem,

Ergue os olhos molemente;

Encara o pobre demente,

E, com ar de gran Sultana,

Brada ao tal José-Banana:

« Inda aqui não vejo tudo!

« Que é da capa de velludo?

« O vestido de chalim?

« O toucador de marfim?

« O corpinho decotado?

« O mantellete bordado?

« Pois eu hei de ir ao Cantante

« Sem pulseira de brilhante?

« Ande. Vá buscar o resto,

« Que, se não, já lhe-protesto,

« (Isto diz rufando as patas)

« De o-mandar plantar batatas!...»


E que tal, meu Gedeão,

Te-parece este sermão?


Vou casar-me, quanto antes,

Para ter destes instantes.


Depois d'isto a consequencia,

Que nos-mata a paciencia:

Muito filho malcriado,

Muito cueiro perfumado,

Choros, berros, gritaria;

Vem depois a estrepolia,

As escholas, os collegios,

E mais outros privilegios,

Que o papae ha de pagar,

Sem tugir, nem resmungar.


Quando quer a negra sorte,

Hum capricho da consorte,

Que, por artes do demonio,

Ou encantos de Trophonio,

Torce a orelha e poem cabana

Ao marido, que é pastrana;

E com labia e com geitinho

D'elle faz hum coitadinho...


De outras cousas, Gedeão,

Inda cá tenho porção.


De politica não fallo.

Pois que é sino sem badalo,

Em que vai qualquer tarelo

Repicar com seu martelo:

E' negocio de velhacos,

Que só serve para os Cacos.


Do Papado nada digo,

Vivo alheio, charo amigo,

A' batina e á corôa,

nN'isto sempre andei atôa.


Faço ponto, Gedeão;

Até outra occasião.

Não te-zangues da maçada,

Que já vai mui prolongada;

E dispoem, si assim te apraz,

Do teu velho

                BARRABRAZ.


S. Paulo – 1866 – Typ. IMPARCIAL


Fonte: Cabrião: semanário humorístico editado por Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis: 1866-1867. Ed. fac-similar/introdução de Délio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1982, p. 95.


Reprodução fac-similar do original de 51 fascículos, publicado em São Paulo no período de 30 de setembro de 1866 a 29 de setembro de 1867.

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