quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Gulotoneria. (Padre Antonio Vieira/Cabrião)


A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escandalo é este, mas a circunstancia o faz maior.


Não vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fôra pelo contrario, era menos mal… Se os pequenos comessem os grandes bastára um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastão cem pequenos, nem mil, para um só grande.


Olhae, como extranha isto Santo Agostinho; os homens, com suas más e perversas cubiças, vem a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão mas da mesma natureza, que sendo todos creados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma patria, e todos finalmente irmãos, vivaes de vos comer.


Santo Agostinho que prégava aos homens, para encarecer a fealdade deste escandalo, mostrou-lh’o nos peixes; e eu que prégo nos peixes para que vejais quão feio e abominavel é, quero que o vejais nos homens.


Olhae, peixes, lá do mar para a terra. Não, não; não é isso o que vos digo. Vós viraes os olhos para os mattos e para o sertão! Para cá, para cá; para a cidade é que haveis – de olhar. Cuidaes que só as tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todos aquelle bolir? vedes todo aquelle concorrer ás praças e cruzar as ruas? vedes aquelle subir e descer as escadas? vedes aquelle entrar e subir sem quietação nem socego? Pois tudo aquillo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como hão-de se comer.


Morreu algum delles, vereis logo tantos sobre o miseravel a despedaçal-o e comel-o. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatarios, comem-no os credores, comem-no os officiaes de órphãos, e os dos defunctos e ausentes; come-o o medico, que o curou ou ajudou á morrer; come-o o sangrador, que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que com má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que cantando o levão a enterrar; enfim, ainda o pobre defuncto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.


Já se os homens se comerão somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos materia de sentimento. Mas, para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que tambem os homens se comem vivos assim como vós.


Vivo estava Job quando dizia: Porque me perseguis tão deshumanamente, vós, que me estaes comendo vivo, e fartando-se da minha carne? Quereis ser um Job destes? Vede um homem desses que andão perseguidos de pleitos, ou accusados de crimes, e ohae quantos o estão comendo. Come-o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o julgador; e ainda não está sentenciado, já está comido.


São piores os homens que os corvos. O triste que foi á forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.


PADRE ANTONIO VIEIRA.

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Lythotypo de H. Schroeder.


Fonte: Cabrião: semanário humorístico editado por Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis: 1866-1867. Ed. fac-similar/introdução de Délio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1982, p. 151.


Reprodução fac-similar do original de 51 fascículos, publicado em São Paulo no período de 30 de setembro de 1866 a 29 de setembro de 1867.

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