segunda-feira, 14 de março de 2022

Rádio (Diário de Cecília, 1927)

 

Chácara, terça-feira, 24 de maio


Tivemos a visita de um sr. Farinha de Zorilha (!), representante da General Electric em Montevidéu. Disse que sabia que o Papai não estava, mas viera nos visitar por ser seu admirador. Informou que era filho de um brasileiro, amigo do Papai. Contou ainda que seu pai era “periodista” e encarregado em Maroñas do cavalo Soberano, que o Cláudio Torres comprou e que morreu antes de chegar ao Capão do Tigre.


A Maninha lembra-se vagamente do pai do nosso visitante. Não sabe por que o chamava de Escova de Dentes. A Maninha e Carolina foram à cidade e trouxeram uma porção de cartas dos nossos visitantes.


Principiei hoje uma obra gigantesca: o meu novo Herd-Book. Encontrei excelente papel no Iañez e pus mãos à obra. Se a tanto me ajudar engenho e arte, ficará muito menos complicado e mais limpo que o outro. Não duvido, porém, que depois de pronto eu diga como Catalino: agora é que devia ter começado...


Quinta-feira, 2 de junho


A Santa anda de tão bom humor que dá gosto entrar na cozinha. Interessa-se por tudo que lemos nos jornais, desde as notícias do Congresso até o voo maravilhoso do Lindberg e o desaparecimento do Nungeser e St. Romain.


Como se tem falado ultimamente na aquisição de uma radiola, para ouvir a ópera de Buenos Aires, foi captado este diálogo na cozinha:


Santa – Tão lindo ouvir música quando a gente está trabalhando...


Raimundo – Sim, lindo quando não anda um espírito mau aborrecendo a gente.


Sexta-feira, 3 de junho


O Rubens Maciel tomou chá conosco, jantou, falou muito nas suas aventuras na revolução e foi dormir no hotel. Está assombrado com o rádio que ouviu em Pelotas. Disse que a abertura da temporada de ópera, no Colón, de Buenos aires, foi estupenda. Ouviram a ópera na casa do dr. Berchon. Disse que dava para distinguir até os comentários dos bastidores. Acho que isso podia ser dispensado... O Rubens segue amanhã para Montevidéu. Vai se entender com o Siqueira Campos, por causa do escritório deles, que faliu.


Primeira carta da Lina, enviada do Rio, com todas as novidades. Diz que não se hospedaram no Palace Hotel por ser muito caro. Ficaram no Hotel Castelo, bem mais barato. Em compensação o gerente, “parecido com o Riograndino”, fala 14 línguas e agora está aprendendo Guarani.


Informa ainda que o Bernardes recebeu grande vaia no dia da sua posse, no Senado. Todos gritavam: mé, mé, mé! Atiraram-lhe restos de verduras compradas no Mercado. A “Manha” disse que o senador Bernardes tomou posse debaixo de estrondosa manifestação vegetariana.


Instalaram há poucos dias uma radiola na estância do Hospital de Melo. Dizem que é a coisa mais admirável do mundo.


O Yañez recebeu uma Radiola 20, ontem mandada de Montevidéu pelo sr. Farinha de Zorilla (!), com instruções para mostrarem como funciona.


Hoje, quando passamos por lá, eles nos chamaram, mas só pudemos ouvir uns roncos prolongados e, lá de vez em quando, depois de alguns estalos, a melodia distante de um tanguinho fanhoso.


O velho Ron estava desolado.


Es un dia fatal, señoritas”, repetia ele.


E tinha razão.


O tempo estava péssimo, ameaçando chuva, com trovoadas.


Hay que dar un descuento...”


Domingo, 5 de junho


Os caixeiros do Yañez trouxeram a Radiola 20 e a instalaram, a título de experiência. O aparelho estreou com o terceiro ato da ópera Ressurección, cantada na matiné do Colón, em Buenos Aires.


Depois ligamos para Montevidéu e ouvimos La Cumparsita e outros tangos. Em seguida uma voz anunciou os resultados das corridas em Palermo.


Mas de vez em quando ficávamos danados com os barulhos estranhos e os assovios loucos emitidos pela radiola.


Durante o jantar tocaram tangos intercalados com os anúncios de Farinha Láctea Nestlé.


De repente o Boy pegou um cateretê, cantado por voz de mulher.


Olhamos umas para as outras, surpresas: estávamos ouvindo São Paulo! E tão claramente como se estivéssemos lá.


No programa de Rádio Educadora um número de Villa-Lobos: Polichinelo, executado ao piano pela senhorita Alice Marcondes.


Às 22 horas começou o Rigoletto, no Colón, que ouvimos religiosamente, do princípio ao fim, sem uma interrupção. It was to good to be true.


Terça-feira, 7 de junho


Na Estância Nova, desde ontem. O mau tempo continua. Sopra um “pampeiro sujo”, com o seu acompanhamento de garoas e frio.


Poderemos ouvir o Lohengrim, anunciado esta noite no Colón?


Saí a cavalo. Os campos estão encharcados. Há espelhos redondos de água, por toda parte. Vi a terneira preta, ainda com a cabeça torta. Os touros Devon apresentam uma gordura parelha. Encontrei no campo o Araci, mostrando o gado ao irmão.


Que animales preciosos”, dizia o Nicolás.


Deois de encerar os arreios de mamãe e Papai, a Lídia ensacou-os, com todo cuidado.


A Asunción deitou uma galinha no seu quarto!


O Papai deixou um galo asa cor de telha que se julga o rei do quintal. O galo branco, puro, Wyandotte, não pia perto dele. Vai estragar a raça. Mas é o mimoso do Papai, não posso matá-lo.


Quarta-feira, 8 de junho


De regresso à chácara Bela Vista. Chegamos quase ao mesmo tempo em que Rubens Maciel desembarcava do trem.


Esteve com o Siqueira Campos e outros emigrados em Montevidéu. Disse que o Siqueira pediu-lhe que indicasse uma estância onde ele possa ser recebido. Indicou-lhe a estância de Alvaro Maciel, seu primo, que fica a mais de 30 léguas daqui.


Siqueira Campos espera Cordeiro de Farias, com recados do Prestes.


Nossa grande preocupação era saber se o tempo nos deixaria ouvir o Lohengrin na Radiola.


Ao começar o espetáculo no Colón, havia muitas descargas. Ouvimos muito mal o primeiro ato.


Depois melhorou um pouco, mas perdemos metade do segundo ato, concluído depois da meia-noite.


Sempre que a Caudia Muzio ia cantar, a onda fugia e o aparelho roncava.


Fui me deitar.


Quinta-feira, 9 de junho


Enquanto tirávamos leite esta madrugada, soube que depois que me retirei, o Lohengrin ficou bem claro.


Ouviu-se a marcha e o dueto com a Claudia Muzo e o Fleta.


É sempre assim...


Os homens do Yañez vieram fechar o negócio da radiola. Pagamos 2oo pesos pelo aparelho, auto-falante, baterias, pilhas, antenas, pára-raios, enfim toda a instalação.


De tarde a radiola entrou novamente em funcionamento: ouvimos a matinê do Colón, com a Lúcia de Lamemoor. Não havia descargas, mas o som chegava muito apagado. Ouvimos a ópera em surdina. Mas deu para sentir que a voz era do Volpi.


E a Totti Dalmonte cantou a Ária da Loucura quase tão bem como a Galli Curci.


Chegaram notícias de Rio Branco, pelo André. O tenente Alcides conseguiu reunir a família, vivendo agora numa casa alugada. Dona Regina está contente, embora a casa seja pequena e sem conforto. O tenente Nelson também alugou uma casinha, pois pretende casar. Espera a mãe, que vem com os trastes.


Sexta-feira, 10 de junho


Carta da Mamãe, datada de 2 de junho. Destaco este trecho da longa e querida carta:


Papai falou hoje na Câmara. Foi muito feliz, muito aplaudido e ouvido no maior silêncio. Os poucos apartes que teve do Lindolfo Collor e do Ariosto ficaram tão bem respondidos que eles não piaram mais. Reina grande cordialidade e tenho muita esperança no resultado final. A anistia virá porque assim o quer a maioria”.


Também recebi, pelo mesmo correio, esta carta muito honrosa do tenente Alcides:


Tenho imenso prazer em acusar o recebimento da sua amável cartinha de 26 do passado, bem como do cobertor que teve a bondade de confeccionar para o Leozinho. Examinando essa pequena obra-prima, tem-se logo a impressão exata da habilidade, bom gosto e delicadeza de que é dotada a gentil cardadeira, digna representante da mulher rio-grandense. Com a chegada da minha mulher e filhinho vivo aqui tão bem quanto no Brasil, chegando a olvidar que estou emigrado. Enquanto houver trabalho, a triste Rio Branco será um mar de rosas. Procurei dar o melhor aspecto e “conforto” à casinha que havia alugado, tendo para isso me improvisado em pedreiro e carpinteiro. Esse meu trabalho foi bem recompensado porque a Regina ficará aqui, pelo menos enquanto eu estiver empregado. Lemos as notícias da chegada do dr. Assis ao Rio, em alguns jornais de porto Alegre. Depois que daí partimos não temos nos mantido ao par dos acontecimentos do Brasil, pois só de longe lemos alguns jornais que nos são mandados de Jaguarão. Quando escrever à Lina diga-lhe que não esqueça do diário de viagem e passeios. Há muito que estou por escrever às amiguinhas, a quem sempre serei grato, mas... sou muito preguiçoso e tenho tido algum serviço. Como a corações bondosos não é difícil perdoar, conto estar absolvido dessa falta. Termino pedindo para recomendar-me aos seus irmãos e enviando-lhe muitas lembranças – Alcides G. Etchegoyen. À gentil Cecília e maninhas envia muitas lembranças a amiguinha grata – Regina G. Etchegoyen”.


Com a chegada da correspondência (inclusive duas Lives e um Country Gentleman), nem sentimos falta da radiola, que não estava funcionando por causa do temporal de hoje.


Sábado, 11 de junho


O tempo continua péssimo. Há uma ventania louca lá fora, o verdadeiro “pampeiro sujo”. As pobres vacas tremem de frio e não encontram abrigo. O leite diminuiu tanto que hoje não se descremou.


O fio que liga a antena da radiola arrebentou com o temporal, deixando-a desligada o dia inteiro.


Domingo, 12 de junho


Fui trabalhar na horta, mas a terra estava muito pesada, só pude alinhar uns canteiros. Mandei buscar na Estância Nova um carrinho e um cavalo; neste barral não se pode usar o trator.


Remendei meias. A Dolores trouxe a terneira Ofélia para dentro de casa. Enquanto almoçávamos, ela andava aos pinotes em volta da mesa. Foi preciso retirá-la. A terneira anda com uma capinha debruada de branco, muito engraçadinha.


Levaram Hansel und Gretel, na matinê do Colón. Achamos muito insípido por ser cantado só por mulheres, e mal cantado, ainda por cima.


De noite não houve transmissão de ópera.


Domingo, 19 de junho


O tempo está admiravelmente sereno. É pena que justamente agora não levem uma boa ópera no Colón, para ouvirmos pelo rádio.


O Salustiano trouxe-me um presente de mudas de roseiras, violetas, ervas boas para chás, dor de dente, dor de cabeça, ervas sortidas, cheirosas e mal cheirosas, batata de dália e diversos galhinhos não identificados.


Terça-feira, 21 de junho


Trecho de uma carta do tenente Vale, datada de Rio Branco, em 16 do corrente:


Obrigado pela comunicação da radiola. Peço dizer à dona Carolina que o meu week end se reduz às tardes de domingo. Na pressa de concluir a ponte, trabalhamos até aos domingos pela manhã. Temos, pois, que nos conformar com a música da terra. Como a mais fina expressão de arte musical, há aqui um gramofone, na pensão onde o Alonso Torres e o Dionísio fazem as refeições. Quando está tocando, esse gramofone nos dá a impressão de nos acharmos numa ferraria, ouvindo o ruído produzido pelo atrito da serra numa barra de ferro”.


Cardei muita lã, à beira do fogo e ao pé da radiola.


Quando íamos nos retirar para os quartos, o Boy mexeu num dos radiotronos, enquanto a bateria estava ligada, e a radiola emudeceu.

Sábado, 16 de julho


Iniciei o tapete de Smirna (falsificado).


Mudaram-se hoje as pilhas da radiola e ela agora toca que dá gosto.


Ouve-se São Paulo claramente, mas a Rádio Educadora, em vez de dar notícias modernas, está falando na guerra do Paraguai, no Visconde do Rio Branco e no barão de Cotegipe.


De noite ouvimos o Schipa cantar o Elixir d'Amore, no Colón.


Vi hoje o cavalo do tenente Nelson. Dá pena a miséria em que está. Nem parece o mesmo da fotografia que o tenente nos mostrou, saltando um obstáculo de 1 metro e 80. Mesmo magro do jeito que está, vê-se que é um nobre cavalo, de olhar franco e simpático.


Terça-feira, 2 de agosto


A Rádio Educadora paulista tem uma estação igual às de Buenos Aires.


Só o nosso Rio de Janeiro é que ainda não conseguimos ouvir.


Se o Papai fosse a São Paulo participar de alguma festa cívica, no Teatro Municipal, nós poderíamos ouvir tudo.


Hoje ouvimos La Bohéme, em matinê do Colon, e depois a festa, oferecida aos aviadores do jaú, no Municipal de São Paulo.


Começaram cantando o Hino nacional, tocaram a marcha Jaú, fizeram discursos (cacetes), vivaram muito o Ribeiro de Barros e o Newton Braga e arremataram tocando o Hino Nacional.



Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 131/132/134/135/136/137/140/141/146/149/150.




Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.

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