segunda-feira, 14 de março de 2022

Seca (Diário de Cecília, 1926)


Sábado, 2 de janeiro


Ontem veio um pé de vento. O tempo armou-se, fuzilou, caíram mesmo uns pingos. Mas daí a pouco subiu a lua encarnada e “desgastou as nuvens”, como dizem os gaúchos.


O Papai disse bem: “em tempo de seca até chuva é sinal de seca…”


Meus canteiros de tomate estão secando, as ervilhas morreram torradas (sem granar), as minhas couves nada prometem e os espinafres, que vinham resistindo galhardamente, foram inteiramente devorados pelos burrinhos, junto com as acelgas da Maninha.


O Papai pulveriza Flyosan, aos litros, com o canhão Bertha Krupp, como ele chama o vaporizador.


Apesar de ter regado todos os dias, com tristeza verifiquei que só me resta uma mudinha de cravo – de tantas que plantei. Ajoelhada nos meus canteiros, pedi a Deus que nos mandasse uma chuva.


O termômetro marcou 38 graus à sombra.


Lembrei-me com enorme saudade da nossa casa em Pedras Altas, onde o termômetro não sobe além dos trinta graus. O que torna este calor mais penoso é a falta de água. Com o algibe seco, a água vem de longe, na cincha de um cavalo. Em consequência, os banhos são tomados em doses homeopáticas…


Rui Zobaran escreveu ao Papai outra interessante e edificante carta sobre os seus trabalhos na futurosa leiteria que acaba de fundar. Papai fez-lhe presente de um dos nossos tourinhos Jersey.


Manguito Lucas, o nosso amável vizinho, deu ao Papai uma terneira mamona, para carnear. Como os ladrões bateram ontem na casa dele, agarrei a Mimi e marquei-a na orelha, com a marca do Papai e o número 10, a fim de identificá-la se for roubada.


O Alonso Torres nunca tinha visto marcar com tatuagem e achou a invenção maravilhosa.


Parece incrível que nem todos marquem assim e que não se faça uma campanha, ou a proibição terminante do bárbaro e desumano processo do ferro em brasa. Para os animais é crueldade sem nome, para o criador é a desvalorização dos couros e, como tudo que é ruim, não tem justificativa alguma.


Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 96/97.




Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.

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