sábado, 25 de março de 2023

O diário de Cecília (Rachel de Queiroz, Última Hora, 14/11/1983)


QUERIA hoje tomar um alívio de Nordeste, secas e aflições correlatas para falar de um livro que me deu para ler o querido Mem de Sá, livro que provavelmente causará impacto semelhante ao do “Meu Livro de Menina”, de Helena Morley. Este novo jornal que, como o de Morley, não tem nada de literário, nasceu das notas cotidianas tomadas por uma jovem entre os seus 16 e 29 anos de idade. É ele o “Diário de Cecília de Assis Brasil, período 1916-1928”.

A figura mais importante dessas duzentas páginas é na verdade o pai da moça, J. F. De Assis Brasil, sim, Assis Brasil em pessoa, o famoso líder liberal gaúcho. O senhor do Castelo de Pedras Altas, espécie de principado independente erguido entre Bagé e Pelotas, com suas torres góticas e seu estilo de vida europeu. Um europeu feudal, diga-se, curiosamente anacrônico, absolutamente patriarcal; aquele liberal intransigente em política era, na vida doméstica e dentro do seu enclave solarengo, um patriarca a governar com mão de ferro a tribo composta pela família e os agregados.

PELO menos é essa a impressão que fica no leitor, ao acompanhar as confidências de Cecília. Contudo, tão variada, contrastante e por vezes enigmática é a personalidade de Assis Brasil que, em algumas notas rápidas suscitadas pelo diário da filha, a gente só pode multiplicar os pontos de interrogação a respeito do homem. É imperioso que se faça um estudo biográfico que vá fundo na vida e na pessoa de Assis Brasil, dados a importância que ele teve na história da república, e o papel de protagonista que assumiu durante as lutas civis brasileiras da década de vinte, lutas cujo fulcro seria o Rio Grande do Sul.

Mistura de rusticidade e refino, a família Assis Brasil seria, claro, uma família atípica no panorama rural gaúcho. As moças tiravam leite como peões tradicionais – aliás agiam em tudo o que se referisse a gado e planta não como sinhazinhas brincando na queijaria e no jardim, mas se envolvendo completamente no manejo da granja e da fazenda, como donas efetivas e movidas por um interesse tão real que chega a ser apaixonado. E ao mesmo tempo liam Kippling e Longfellow, assinavam vinte e sete revistas inglesas, francesas e americanas, das mais diversas especialidades, indo da pecuária à horticultura, passando pela política e pela literatura. E isto, claro, não seria a regra, não poderia ser a regra em qualquer unidade rural do lugar e do tempo. Os barões paulistas do café e as suas famílias quatrocentonas seriam também fidalgos rurais, mas à moda inglesa e francesa, cada uma no seu casarão ricaço, entre móveis e cristais importados, com todo o conforto conhecido no tempo, e legiões de mucamas para servir sinhô e sinhá. Já no castelo de Pedras Altas, as Castelãs cozinhavam, batiam manteiga, trabalhavam na terra, cuidavam do gado e das ovelhas, saíam à caça – muitas vezes para prover a mesa. E assim, quando tiveram que enfrentar as agruras do exílio – e foram agruras mesmo, duríssimas, em rústicas estâncias uruguaias, a família adaptou-se sem fazer tragédia, levando as dificuldades, o desconforto, as condições de vida penosas, com uma bravura e um espírito esportivo absolutamente admiráveis.

DIFICILMENTE um compêndio de história ou um estudo sociológico nos diriam tanto e tão bem daquela época turbulenta do primeiro quartel do século vinte no Brasil e no Rio Grande do Sul, quanto o mostra ou deixa entrever o singelo diário da moça Cecília. Tratando-se de uma família atípica, como foi dito, essa mesma atipicidade é reveladora do que seriam os ideais e padrões da elite daquele tempo: ideais que a família Assis Brasil tentava realizar com maior ou menor êxito, para encanto e admiração dos conterrâneos e contemporâneos.

A mistura de um europeizismo intransigente – todos os valores culturais deviam ser europeus, naquela casa: basta contar que, obrigatoriamente, à mesa, em Pedras Altas, falava-se só em francês durante o almoço e só em inglês ao jantar, e é inegável que havia uma porcentagem alta de esnobismo nessa aparente intenção didática. Mas o mesmo diplomata feito fidalgo camponês, que reinava naquele Mônaco tropical com o seu castelo de cenário ópera, ensinava a filha moça a parar rodeio, a carnear uma rês abatida, a vacinar o rebanho contra aftosa, e manter minucioso registro genealógico, quero dizer o pedigree do rebanho Devon, raça de gado inglês em que Assis Brasil punha uma paixão intolerante. E é na face rural e rústica da vida de família, que a moça Cecília se revela com maior espontaneidade e encanto. Muito característico é que, falando por exemplo, em presentes de aniversário cobiçados e ganhos por ela ou pela irmã, não se trata de joia ou perfume francês ou roupa fina: o que elas pedem e recebem é uma faca de prata, especial para carregar à cinta, ou uma fina arma de caça. Tratam pessoalmente dos seus arreios, mandam curtir pelegos da pele de ovinos abatidos; Cecília tem o seu tear próprio onde tece coberturas com lã que ela própria carda; lã tirada, é claro, dos carneiros que ela cria.

O Diário de Cecília é incompleto; perderam-se muitos cadernos entre 1916 e 1928. E de 1928 a 1934, quando Cecília morreu tragicamente, aos trinta e quatro anos de idade, atingida por um raio durante um passeio a cavalo, não consta nenhum registro. Claro que, não destinando a autora à publicação os seus cadernos, não houve preocupação dela e da família em preservá-los especialmente. E desconfio também que deve ter havido alguma pontinha de censura, algum corte de confidências nesta parte do jornal entregue a Carlos Reverbel – o responsável pela edição – para o seu excelente trabalho de coordenação e anotação. Digo isso porque é inimaginável que, nas anotações pessoais e íntimas de uma rapariga, desde os seus dezesseis até quase os seus trinta anos, não reponte nunca um sinal de romance, um namoro, uma veleidade amorosa sequer. Muito entusiasmo cívico, até mesmo hero-worship pelos valentes guerreiros seus correligionários. Mas no meio de tantos jovens políticos e tantos tenentes galantes de que a moça vivia cercada, nem uma pontinha de romance? Não dá para acreditar.

ESTÃO vendo, até por estas reclamações de leitora, quanto o livrinho é atraente. Documento vivo, com cheiro de sol e chuva, gosto de fruta, liberdade de corpo, doação generosa de trabalho e dedicação, amor à terra e às suas criaturas, por ele essa Cecília de Assis Brasil*, de vida e morte tão singular, torna-se de repente uma das figuras mais fascinantes de mulher da literatura nacional. Sem nunca ter feito literatura. Ou por isso mesmo.

* n. Washington DC, 26/05/1899; f. Pedras Altas, 11/03/1934


Fonte: Laitano, Cláudia. TUMULTUÁRIO: CADERNOS DE MEMÓRIAS DE CARLOS REVERBEL. [Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos de Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, Sociedade e História da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Luís Augusto Fischer]. Porto Alegre: 2022, p. 88.

Queiroz, Rachel. O diário de Cecília. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 14/11/1983

Acervo da família Reverbel

Resenha do livro “Diário de Cecília de Assis Brasil”

https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/242236/001145263.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Crédito Fotos: Joaquina e Lídia de Assis Brasil, 1983. Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília de Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L & PM, 1983. 

Crédito Imagem:CP Memória, Correio do Povo, 16/12/2022. Há um século no CP.

https://www.correiodopovo.com.br/blogs/h%C3%A1-um-s%C3%A9culo-no-cp/jornal-carioca-noticia-a-chegada-de-assis-brasil-ao-rio-e-critica-reelei%C3%A7%C3%A3o-de-borges-de-medeiros-1.937302

Acesso 25/03/2022

Foto Família Assis Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=Sodro81VgnI 

Acesso 26/03/2023


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