sexta-feira, 17 de março de 2023

"Patriarca" Borges de Medeiros, por Carlos Reverbel

Futuroso e outros adjetivos

Já funcionou em Porto Alegre uma bolsa política, cujas cotações eram apregoadas por intermédio de adjetivos, através das colunas do jornal “A Federação”, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense. O Dr. Borges, então presidente do Estado e chefe unipessoal do partido dominante, era quem punha e dispunha no singular pregão.

O adjetivo futuroso era reservado a jovens paladinos que se lançavam na carreira política. No início era empregado com fartura, alcançando a muitos competidores, indóceis no partidor quais fogosos corcéis, à imagem e semelhança dos que se apresentavam no hipódromo dos Moinhos de Vento. Com o tempo, começava a diminuir o emprego do adjetivo, até ficar limitado a uns dois ou três o páreo dos futurosos. Ficava-se então sabendo que pelo menos um entre eles seria incluído na próxima chapa republicana para a Assembleia dos Representantes, primeiro degrau da escalada parlamentar.

Como todo jornal, “A Federação” tinha um diretor, mas quem a dirigia era o Dr. Borges. Todo santo dia, ali pelas dez horas (o influente órgão era vespertino), um rapazote ia ao Palácio levar as provas do editorial e da matéria política, a fim de submetê-las ao crivo presidencial. O poderoso morubixaba as examinava, introduzindo-lhes modificações de próprio punho, se fosse o caso. E costumava fiscalizar, com especial rigorismo, o emprego dos adjetivos, para evitar repercussões equivocadas na bolsa política.

O saudoso companheiro Tircio Teles de Miranda Ferrari começou na imprensa local, ainda rapazola, exercendo as funções de estafeta entre “A Federação” e o Palácio do Governo. Durante alguns anos foi portador das provas tipográficas que deviam ser submetidas ao dono do poder, tarefa para a qual a pessoa era escolhida a dedo. O jovem estafeta terminou ficando amigo do Dr. Borges e um dos seus homens de confiança dentro de “A Federação”. E quando o velho cacique caiu, o Tircio Ferrari caiu junto, “morrendo” abraçado com o chefe, por pura lealdade, procedimento que poucos tiveram na ocasião, como sempre acontece em tais circunstâncias.

Já despido de todo o mando, um dia o Dr. Borges subiu as escadas do “Correio do Povo” e pediu ao Dr. Breno um lugar na redação para o Ferrari. O pedido foi atendido na hora e o Tircio Ferrari assumiu na redação do velho róseo o que então se denominava “página no interior”. E assim o tivemos na velha casa, como exemplar companheiro, até seu prematuro falecimento, tendo ele programado a própria morte, como nos tempos do romantismo. Uns poucos sobreviventes continuam a zelar pela sua memória. E toda vez que me lembro dele penso na palavra lealdade. Foi a lição que deixou aos amigos e a herança que legou aos parentes.

Admirável palestrador, o Ferrari conhecia de cor e salteado os adjetivos empregados e sua cotação na bolsa política de “A Federação”, recordando com muita verve episódios relacionados com a curiosa instituição, talvez a única, no gênero, que tenha existido no mundo partidário. Júlio de Castilhos, um ser substantivo por excelência, era colocado acima de toda adjetivação, recebendo, invariavelmente, o grau e o título de “patriarca”. Alguns republicanos históricos admitiam a superioridade do Arquiteto do Universo e de Augusto Comte. Outros, nem esta.

A escala das cotações, que começava modestamente, com o adjetivo futuroso, ia tomando vulto e ganhando proporções até chegar ao adjetivo preclaro, privilégio de muitos poucos, com a minguada nominata sendo encabeçada por Pinheiro Machado. Desde o momento em que assumiu a sua cadeira cativa no Senado, até o dia em que foi assassinado, pelas costas, conforme previra, as notícias de “A Federação” sobre o grande líder começavam sempre assim: “O nosso preclaro correligionário, senador Pinheiro Machado”, etc, etc. Antes de chegar ao Senado, nenhum prócer do Partido Republicano recebia o tratamento de preclaro.

Naquela época, havia uma miniatura do Dr. Borges, em termos de poder, na maioria dos municípios rio-grandenses, tendo-se o cuidado de que, sempre que possível, nas comunidades, de origem alemã e italiana, o cacique local fosse da mesma origem. O velho Muratore marcou época em Caxias, ainda quando as casas eram quase todas de madeira. Alcancei os restos dessa época, ocasião em que conheci o Italo Balen menino, mas já antecipando, pela inteligência e pelo coração, o homem que viria a ser, para os amigos, a família e a comunidade.

Assim como o Presidente não largava as rédeas do governo, reelegendo-se com absoluta regularidade, era de seu agrado dispor de prepostos que pudessem fazer o mesmo, nos municípios, dando preferência ao tipo do coronel à moda rio-grandense, bem diferente dos que atuaram e ainda atuam em outros pontos do país, com invejável sucesso em teimosas regiões nordestinas. Como o chefe, alguns desses coronéis chegaram a permanecer mais de 20 anos dando as cartas e jogando de mão.

Por incrível que possa parecer, eram eles quase sempre boas pessoas, no sentido paternalista. Não raro financiavam as atividades partidárias locais. E as suas posses frequentemente iam diminuindo, diminuindo, até deixá-los na clássica postura da pobreza com dignidade, com uma mão adiante e a outra no traseiro. A política municipal, com suas tricas e futricas, deixou muita gente de tanga, no tempo dos coronéis, com as exceções de praxe, naturalmente. Os coronéis eram aquinhoados pela “A Federação” com o adjetivo prestigioso, mesmo depois de prontos.

Conta-se que um desses militares da Guarda Nacional, ao ser recebido pelo Dr. Borges, teve a infeliz ideia de começar conjugando o verbo pensar. Interrompido de imediato pelo Presidente, que em tais circunstâncias costumava levantar o dedo em riste, não foi além da primeira pessoa do presente do indicativo: “Eu penso”. Então o Dr. Borges, cuja dignidade o elevara à casta dos intocáveis, tomou a palavra e proferiu uma frase que ficou célebre: “O senhor pensa que pensa, mas quem pensa sou eu”. Mais tarde ficou esclarecido que o sentido da frase fora distorcido, por obra do que então se chamava de intriga da oposição, campo onde atuavam eméritos fofoqueiros, tanto nas áreas municipais e estaduais, como naturalmente, também nas federais.

O que houve foi o seguinte: tendo o desastrado coronel cometido uma heresia partidária, o Dr. Borges, sempre rígido e ortodoxo, o advertiu na hora, com certa severidade, dada sua condição de chefe unipessoal do Partido. E, assim, quando disse “quem pensa sou eu”, não estava se referindo a si próprio, mas à entidade dona do Partido, que ele encarnava. O que, de resto, era absolutamente correto, pois o Partido, afinal de contas lhe pertencia, de fato e de direito, tendo sido recebido de mão beijada, em parte por herança e em parte por usucapião.

E tanto tudo isto era a pura expressão da verdade histórica que o Dr. Borges deixou a chefia num dia e logo no outro, de madrugadita, o então todo poderoso Partido Republicano Rio-Grandense começou a morrer, de tuberculose galopante, cabendo ao Dr. Getúlio botar a vela na mão do moribundo e segurar na alça do caixão do defunto.

(Março, 1979)



Fonte: Reverbel, Carlos. Saudações Aftosas. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1980, p. 33/35

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