quarta-feira, 5 de abril de 2023

Joaquina de Assis Brasil - entrevista a Luiz Francisco Mazo Martins (01/1988)

Dona Joaquina (1902-1988), ou melhor, Quinquim para os íntimos. Ou ainda Kiki, como sugeriu-lhe em tupi-guarani o historiador e amigo Capistrano de Abreu


Capistrano de Abreu (Moranguape, CE,23/10/1853- Rio de Janeiro,13/08/1927)

Filha de Joaquim Francisco de Assis Brasil, nascida na Estância de São Gonçalo, Cacequi, em 17 de janeiro de 1902, Dona Joaquina de Assis Brasil foi a guardiã de “um mundo de coisas”. A partir da morte de sua mãe até a data de seu próprio falecimento, aos 16 de novembro de 1988, em Pedras Altas, responsabilizou-se por um patrimônio cultural extremamente rico.


Estância São Gonçalo, Cacequi, casa dos pais de J. F. De Assis Brasil

- Dona Joaquina, como surgiu o sobrenome Assis Brasil?

- Meu avô, Francisco de Assis Souza Brasil, nasceu a 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, e foi batizado na igreja de São Francisco, em Rio Pardo. Nós recebemos o sino desta igreja como presente e até hoje ele é usado aqui na Granja, para chamar os peões. Papai ficou encantado quando o ganhou. Estava rachado, mas mandamos fundi-lo novamente e ficou muito bom. Meu pai também foi batizado Francisco de Assis, ficando, então, Joaquim Francisco de Assis Brasil. O padre que o batizou e que também foi seu padrinho chamava-se Joaquim Ribeiro de Andrade e Silva. Teve um grande destaque na Revolução Farroupilha.

Os irmãos de papai não assinavam Assis: Tio Paulo Brasil, Tio Diogo Brasil. Só o Tio Bartolomeu resolveu usar esse sobrenome.

- Dona Joaquina, como foi a sua educação, há mais de 80 anos e no campo?

- Nasci em 1902 e fui para os Estados Unidos com poucos meses de idade. A primeira língua que falei foi o inglês. Mamãe resolveu que todos os filhos, desde pequenos, aprenderiam inglês. Foi uma boa ideia, não foi? Tínhamos, então, as “nurse-maid”, amas como chamam aqui. Depois, voltando para o Brasil, sempre fui educada em casa por institutrizes estrangeiras, que eram contratadas de dois em dois anos, exceto uma, que foi por três anos. Tivemos várias: Miss Rosser, Miss Studart, Miss Day, que veio duas vezes e que morava no cottage, naquele quarto até hoje chamado o “da Miss Day”. Depois dela veio uma alemã que era nobre, chamava-se Helena von Jass. Essa era altamente sabida, muito sabichona! Formada pela Universidade de Grenoble, no sul da França, falava francês como uma francesa, conhecia o grego e o latim, era uma verdadeira latinista! Muito do que aprendi foi com ela. Veio de Baden Baden e foi embora quando estourou a guerra. Disse que era melhor voltar para o seu país de origem porque o Brasil tinha tomado posição contra a Alemanha. Nós choramos muito a partida dela. Naquela noite fui mandada para a cama mais cedo, para ver se parava de chorar… Eu senti muito…

Tínhamos, também, aqui em Pedras Altas, um núcleo de ótimos operários especializados. Papai dizia que para evitar o êxodo rural era necessário que as pessoas tivessem uma profissão rendosa no campo. Trouxe bons operários de Buenos Aires, Montevidéu, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha. O seu Albino Eisfeldt era das colônias alemãs. Ele era um ferreiro formidável. Um verdadeiro artista! Os marceneiros alemães também eram formidáveis. Toda a marcenaria de imbuia foi feita em casa. nhamos aqui em Pedras Altas, realmente, um núcleo de ótimos operários. Depois que tiraram o trem, toda essa gente se mandou, saiu daqui, nunca mais voltou…




Mr Mc Gregor


Papai preocupou-se muito com o campo. Ele gostaria que não fosse bruto e inculto. Fez todo o possível para isso, porém, naquele tempo, qualquer coisa que ele quisesse fazer, o governo borgista era contra. Não queria que ele aparecesse, mas a sua intenção era somente o progresso. Papai dizia que a joia do Brasil era o Rio Grande, por ter o mesmo clima do sul da Europa. Tinha muita admiração pelos gaúchos que, com as guerras, abriram um pouco os olhos e aprenderam que a tirania era injusta. Achava este povo formidável, inculto mas com talento que outros povos não tinham. Meu pai foi muito campeiro! Não errava um tiro de laço. Fazia uma armada média e certeira. Na época de domar, era ele quem laçava para os peões manearem.

- E o teatro na família?

- Ah! Mas era de brincadeira! Nós apresentávamos até óperas. Fazíamos a Dama das Camélias, como sempre! La Traviata… Era muito engraçado porque a gente improvisava tudo na hora. Escrevi uma peça em inglês. Há poucos dias ainda vi lá em cima. Cecília também escrevia. Era só para a gente se entreter.

- E o esporte?

- O sport principal era o tennis. O material era inglês, tudo de ótima qualidade. A rede foi feita por nós. As professoras inglesas, todas, sabiam jogar muito bem. Uma tinha sido até instrutora na Europa. A Cecília jogava muito bem. Todos lá em casa jogavam muito bem. Só eu era péssima jogadora. Quando faltava gente para fazer o double eles me chamavam mas diziam para não chutar a bolinha, que era a minha tendência.

Esse sistema de educação que papai deu aos filhos, os chimangos achavam muito antipatriótico. Diziam que se alguém quisesse ver um caso de antipatriotismo, era só ir a Pedras Altas para ouvir sussurros em inglês, francês e alemão. Achavam isso muito feio (risos)…

Hoje em dia, com a educação do jeito que está, as crianças passam o dia todo longe dos pais e aprendem coisas muito deselegantes, sem aquela intimidade com a família que havia nos tempos em que a gente estudava em casa… Acho que deveria haver mais participação da família. Assim me parece, não sei se estou enganada.

- O que era o Bando dos Bem-te-vis?

- Fomos educados também para amarmos a natureza. Então criamos o grupo chamado Bando dos Bem-te-vis. Quando o Marechal Rondon esteve por aqui, junto com o seu valet de chambre, um negro de Barbados que falava inglês, ficou encantado com o Bando dos Bem-te-vis. Logo o convidamos para ser Bem-te-vi Honorário, do Mato Grosso. Cantamos o hino do grupo, que foi escrito em português por papai e cuja melodia foi tirada do hino dos Boers na guerra dos holandeses contra africanos, conheces? (canta o hino em holandês). Minhas irmãs que estudaram na Suíça o aprenderam com colegas holandesas. Rondon achou muito bonito. Ele era uma pessoa simples, que gostava de crianças e de gente moça. Gostava de ensinar e dizia: “Quando vocês quiserem aprender bororo” – pronunciava como os índios, em vez de bororó – “eu sou professor de bororo”. Sabia falar a língua de várias tribos. Uma pessoa interessante! Quando criamos os Bem-te-vis, foram feitas, também, leis para o grupo: não se podia mentir, nunca! Uma vez Francisco pregou uma e foi demitido do Bando por algum tempo. Tudo foi inspirado naquele livro do Mogly. Mogly era nosso modelo. Podíamos ficar perdidos no meio do mato, que conhecíamos as plantas que eram comestíveis, as frutas não venenosas e os animais que se podiam comer, como o lagarto, cuja carne do rabo é bem branca e se parece com a do peixe. A letra do hino que papai escreveu é assim:

“Formam nossa companhia

Quatro moças e um guri

Queremos tomar por guia

O passarinho valente

Que alegra e desperta a gente

Com o grito – bem-te-vi!”

- Seu pai usou o arado como símbolo poético do trabalho. Como era o trabalho em família?

- Trabalhávamos no campo trazendo o gado, parando rodeio e quando tinha marcação a gente ajudava. Sempre tomávamos parte nas lidas. Dolores era a mais campeira, até domava! Só que deixava os cavalos cheios de balda. Os rapazes eram “machões”, ficavam separados fazendo outro tipo de serviço. Não gostavam de que a gente mimasse os animais. As mulheres, todas, gostavam muito de bordar. Neste tempo sempre tínhamos boas empregadas. Lembro-me da Felícia. Era um “motor” de tanto trabalho! Trabalhávamos muito no jardim, com as flores e plantas, na colheita das frutas, quando era tempo de fazer doces e sucos. Todos ajudávamos mamãe! A von Jass me ensinou muito sobre botânica. Era uma grande conhecedora, também, dessa área.





Cavalo Vampiro, preferido de D. Joaquina

- E a religião na família?

- Cada um tinha a liberdade de ser o que quisesse. A Cecília acreditava em coisas sobrenaturais. Eu não acredito, mas respeito. Mamãe era católica e papai livre pensador. Ele dava plena liberdade, sem discriminação ou intolerância. Todos nós fomos batizados. Ele mandava vir bispos para crismar aqui. Tinha grande amizade com os bispos. Eles diziam: “Dr. Assis, só lhe falta a fé, porque o senhor é um verdadeiro cristão, modelo de cristão”. Papai respondia: “Vocês estão julgando-me bom demais…”. Papai admirava muito Renan, que também era um livre pensador. Papai fez um poema sobre Cristo (recita de memória):

“Pelos campos sem luz da mística Judeia

Andava errante e triste um pobre viajor

O verbo semeando e recolhendo a ideia

Que todo o seu poder, que todo o seu valor

Estava em enxugar o pranto da miséria

No manto sideral do seu divino amor…

Homens, vós sois a guerra e eu vos trago a paz!”

Papai achava imoral o luxo, a riqueza e a venda de indulgências no catolicismo…

- Dona Joaquina, como foi o exílio?

- Minha irmã Maria, por ser a mais velha da família, foi encarregada de fazer o acervo das coisas que tínhamos que esconder. Ela as colocava em caixotes grandes para que o Dr. Berchon, nosso grande amigo, nos enviasse pelo trem. Tínhamos esconderijos secretos para as coisas preciosas apartadas, fazíamos uma parede falsa e colocávamos as pratarias e outras coisas de valor. Foi muito cruel o que Borges fez com meu pai! Deu ordem para os bancos retirarem seu crédito porque não era pessoa de confiança. Deixou que invadissem os bens de papai: levaram tropas e tropas. Saquearam a estância de Ibirapuitã e a de Itaiassu. Soltaram cavalos dentro do jardim aqui da Granja, onde até hoje guardamos a marca do “templo profanado” pelos chimangos. Felizmente os amigos forma muito fiéis. O seu Chico Macedo Couto, muito relacionado com tropeiros, recuperava o gado roubado, deixava no seu campo e depois mandava para o Uruguai, onde estávamos exilados. Ele estava sempre arriscando a vida ou ir para a prisão por nossa causa… Foi muito triste ter que começar tudo de novo!

Aacleto Firpo, Assis Brasil e Raul Pilla, 1931
Osvaldo Aranha, Cícero Góes Monteiro, Dr. Victor Russoman e Raul Azambuja, 1932 ("Alegrete", paque da Granja)
AB e D. Lydia e comitiva do governo provisório de Getúlio Vargas, 1931
Salgado Filho, Ministro do Trabalho, 1934

- E a respeito das calúnias sofridas por Assis Brasil?

- Os chimangos diziam coisas horríveis: que papai tinha matado sua primeira mulher com um tiro na cabeça, que trouxe tudo quanto foi praga para o Estado, como o berne, o pardal… e são coisas que nem existem em Pedras Altas. Até a Lina, minha irmã, que é quieta, já publicou um artigo no antigo Correio do Povo. Tomou a caneta na mão e escreveu que parecia incrível que uma pessoa com inteligência tão fulgurante como papai, fosse acusado de fazer tanta coisa ruim. A respeito dos tiros, não tem cabimento! Papai gostava muito de armas, tinha armas de primeira ordem e era só ele que as limpava e manipulava. Ficavam fechadas à chave, para não haver nenhum acidente. Papai enxergava bem até depois de velho. Tudo isso é coisa de políticos sujos e estúpidos… Pequenezas! O mais comovente é que a geração do próprio Castilhos e mais outra geração de parentes, todos ficaram amicíssimos de papai. Vinham aqui tropas de Castilhos: o Inocêncio, a Julinha, filha de Júlio de Castilhos, o Raimundo, que papai orientou mandando-o para São Paulo para estudar. A carta da mãe de Júlio de Castilhos ao papai é muito significativa. Hoje a família toda é nossa amiga.

- A ideia de construir Pedras Altas foi de Assis Brasil. Dona Lydia, sua mãe, continuou e nomeou-a guardiã deste tesouro cultural. Dona Joaquina, quem lhe sucederá?

- “Permaneat animus lapide perennius”. Foi papai que construiu essa frase que quer dizer: a ideia ou o ideal permaneça perene como a pedra. Ah! Se eu pudesse fazer uma fundação! Os outros não deixariam de ser donos, só não teriam licença para vender. Não posso esvaziar Pedras Altas doando o acervo. Por mim eu fazia um bom museu, com bons guardas, se cobraria entrada… Papai tinha certeza de que os filhos e netos teriam continuado, tomariam conta. Se ele soubesse que não, teria tido uma grande decepção. Não há coisa pior do que a falta de continuidade de uma família...


Joaquina, Francisco (ao colo), Assis Brasil, Carolina e Lídia;
ao fundo, Maria e Cecília
(Buenos Aires, 1907)

Enterro de Assis Brasil, 25/12/1938


Lídia de Assis Brasil,
Joaquina de Assis Brasil e Antonio Bonini.

Entrevista concedida ao arquivista Luiz Francisco Mazo Martins no “boudoir” do castelo, em janeiro de 1988. Seus depoimentos requerem uma interpretação atenta, por constituírem trilhas seguras para se penetrar nos labirintos da História.

Capa: Valter Noal Filho

Fonte: Rocha, Artheniza Weinmann, Luiz Gonzaga Binato de Almeida e José Newton Cardoso Marchiori. Ed. UFSM, Santa Maria: 1995, p.127/130.

Crédito foto biblioteca: http://www.botasbonini.com.br/historia.htm

Acesso 04/04/2023

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