segunda-feira, 10 de julho de 2023

João Simões Lopes Neto, obra (Carlos Reverbel)

 

O baú

J. Simões Lopes Neto publicou em vida apenas três livros: Contos Gauchescos, Lendas do Sul e Cancioneiro Guasca. Postumamente, foram editadas duas obras de sua autoria: Terra Gaúcha e Casos do Romualdo.

A produção do grande regionalista teria sido bem maior se os diversos livros que ele anunciou, como “em preparo” ou “a sair”, tivessem realmente aparecido. Nunca apareceram pela simples e boa razão que jamais foram escritos.

Na época do velho Simões, um escritor municipal, que viveu e editou seus livros em Pelotas, era frequente os literatos anunciarem obras de que havia apenas o título, o que levaria os pesquisadores, em alguns casos, a empreender trabalhosas buscas no vazio.

Foi o que aconteceu em relação ao notável escritor pelotense, na acurada e inútil procura de originais cuja autoria ele próprio se atribuía, inclusive dois romances regionais – Peona e Dona e Jango Jorge – que J. Simões Lopes Neto costumava apresentar como inéditos, isto é, já concluídos, faltando, apenas, serem publicados. Tudo leva a crer, entretanto, que esses romances somente existiram na imaginação do escritor, indo com ele para o túmulo.

Não foi, felizmente, o que se daria com os Casos do Romualdo, cuja descoberta faria com que a reduzida bibliografia simoniana viesse ganhar novo e valioso título, tendo, ao mesmo tempo, enriquecido o nosso regionalismo literário com uma obra que, segundo Augusto Meyer, aponta “novas qualidades no grande regionalista”

Quando estive em Pelotas, em 1945, a serviço da Editora Globo, para realizar uma pesquisa em torno da vida e da obra de J. Simões Lopes Neto, a viúva do escritor, D. Francisca Meirelles Simões Lopes, ainda vivia, na condição de ter de trabalhar (apesar da avançada idade), para prover o próprio sustento e o de uma filha de criação chamada Firmina e sem qualquer capacitação profissional. D. Francisca exercia com dignidade e eficiência as funções de secretária do Conservatório de Música local. Dela se dizia na cidade: é pobre, mas orgulhosa.

Como vinha fazendo em relação a todos que a procuravam, por causa do nome literário do marido, já então bastante valorizado postumamente, recebeu-me com muitas reservas, só faltando bater-me com a porta na cara, quando lhe disse dos motivos de minha visita. Afirmando ter sido vítima de falcatruas, com perdas e até roubos de originais inéditos do marido (inclusive o dos Casos do Romualdo), por parte de pesquisadores que me haviam antecedido e até por parte de escritores que se inculcavam como “amigos e admiradores” de J. Simões Lopes Neto, ela resolvera não mais receber “essa espécie de gente”, emprestando às últimas palavras um tom que poderia ser interpretado como “essa espécie de exploradores”.

Não tive, assim, outra alternativa senão deixá-la entregue aos seus ressentimentos e amarguras e tratar de iniciar a pesquisa em outras fontes. Lá pelas tantas, no andamento do trabalho, que já se revelara bastante proveitoso, a ponto de Augusto Meyer apontá-lo, mais tarde, como obra de “copista beneditino”, fui levado pela mão de Francisco Cardoso, um contemporâneo do escritor, que fora seu amigo e grande admirador, ao sótão de um casarão abandonado, onde tive a sorte de encontrar, entre outros guardados, um volume encadernado do Correio Mercantil, jornal pelotense há muito fora de circulação.

Por pura sorte, ali encontrei, publicado em folhetim, a partir da edição de 1º de junho de 1914, o texto completo dos Casos do Romualdo, livro cujos originais todos informavam, a começar pela viúva do autor, terem sido extraviados por Pinto da Rocha, que os levara, numa de suas passagens por Pelotas, para fazer-lhe o prefácio e procurar-lhe editor, no Rio de Janeiro, deles não tendo ficado cópia, nem rastro.

Voltei à casa de D. Francisca (que era conhecida na cidade pelo apelido de D. Velha), já então armado com a cópia datilográfica do folhetim, perguntando-lhe se não tinha lembrança que a obra havia sido publicada, num jornal local, em 21 capítulos, ainda em vida de J. Simões Lopes Neto. Ela, cada vez mais sestrosa e retrancada, afirmou que jamais houvera tal publicação, voltando aos casos de extravios, perdas e espoliações de que se dizia vítima.

Tomei, então, a iniciativa de entregar-lhe o texto datilografado do livro, com a observação de que, à vista do sucedido, parecia que ela deixara de acompanhar a vida literária do marido, por não reconhecer, talvez, o seu talento de escritor, enquanto ele vivera a seu lado. A velhinha desmontou, literalmente. E, voltando-se para os fundos da sala, limitou-se a bradar, com energia: “Firmina, traz o baú”.

Foi, assim, colocado à minha disposição velho e precioso baú, em que D. Velha guardara, fechado a sete chaves, o que havia sobrado do espólio literário do grande escritor gaúcho, inclusive as páginas inéditas e manuscritas das Recordações da infância, umas vinte e tantas laudas, que me deram a impressão de ser o começo de um livro de memórias, mas que a ensaísta Eliane Zagury identificou, com grande acuidade, como a tentativa de um romance. Talvez as primeiras páginas de Peona e Dona ou de Jango Jorge, as únicas que não teriam ficado no tinteiro.

D. Francisca Meirelles Simões Lopes sobreviveu ao marido nada menos de 48 anos, tendo falecido a 3 de janeiro de 1965, aos 95 anos de idade e em plena lucidez. Dela recebi, a título de colaboração às minhas pesquisas, valiosa documentação. E, naturalmente, nos tornamos bons amigos, como testemunham as cartas que dela conservo, com gratidão e ternura.




Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 3/6.

Crédito Carta D. Francisca: Laitano, Cláudia. Tumultuário: cadernos de memórias de Carlos Reverbel. Orientador: Luís Augusto Fischer. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Porto Alegre, 2022, p. 101.

Disponível: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/242236/001145263.pdf?sequence=1&isAllowed=y 

Acesso 10/07/2023

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