segunda-feira, 10 de julho de 2023

Júlio de Castilhos e aguardente (Carlos Reverbel)

 

Lágrimas de Santo Antônio

Amanhã quando vieres, deves trazer no carro duas garrafas de caninha especial (Lágrimas de Santo Antônio), visto haverem sido ontem esgotadas, em abundante palestra dos amigos, as duas que eu trouxe sexta-feira.”

Este bilhete foi dirigido por Júlio de Castilhos a Aurélio Veríssimo de Bitencourt, seu secretário. Na ocasião o então presidente do Estado se encontrava na Chácara da Figueira, de sua propriedade e situada no atual arrabalde da Glória, para onde se recolhia com certa frequência.

Entre os amigos a que se refere, o Patriarca (como Castilhos passaria a ser chamado) menciona apenas dois: Borges de Medeiros e Francisco Rodolfo Simch, pelo que se depreende do bilhete, igualmente apreciadores de Lágrimas de Santo Antônio.

Noutro bilhete, também dirigindo ao secretário, Júlio de Castilhos mandou o seguinte recado a Cássio Brum Pereira, seu ajudante-de-ordens:

Incluo 25$000, que entregarás ao Cássio. É a importância da dúzia de Lágrimas de Santo Antônio, que ele comprou há dias. Dize-lhe que encomende outra dúzia.”

Estávamos no último quartel do século passado, época em que ainda não se havia inventado o dadivoso modelo de economia doméstica denominado mordomia. E, nestas condições, nada se conseguia sem mostrar a cor do próprio dinheiro, não havendo discriminações entre os consumidores, por parte do bodegueiro. Segundo a famosa Carta de 14 de Julho, inspirada nas ideias políticas de Augusto Comte, todos eram iguais perante o balcão do armazém da esquina.

Talvez por medida de economia (pois, como se sabe, o Patriarca era parcimonioso nos gastos), chegou um momento em que entendeu de abastecer-se de Lágrimas de Santo Antônio na própria fonte de produção. Recorria, então, aos préstimos do Cel. José Maciel, intendente municipal de Santo Antônio da Patrulha, conforme se verifica através desta missiva:

Amigo José Maciel, aceitai minhas saudações. Senti não encontrar-me convosco quando viestes ultimamente a esta capital. Eu estava então veraneando em uma chácara. Desejo que continueis a administrar com felicidade o vosso município e a dirigir com acerto o Partido Republicano local, de que sois zeloso chefe. Prevalecendo-me dos vossos oferecimentos, tomo a liberdade de pedir-vos que me envieis com a brevidade possível um barrilote de aguardente especial, a melhor que aí houver. Desejo servir a um amigo, que me fez tal encomenda. Quando fizerdes a remessa do barrilote, deveis enviar a nota do preço, a fim de receberdes a respectiva importância. Aguardo vossa resposta. Contai sempre com o vosso amigo obr. - Júlio de Castilhos.”

Esta carta traz a data de 24 de março de 1899. Foi encontrada nos papéis deixados pelo Cel. Maciel. Também foi encontrada, nos papéis do mesmo, uma nota com os seguintes dizeres:

Embarco na carreta do Sr. Manuel Agostinho Ribeiro um caixote para ser entregue, em Porto Alegre, ao Ex.mo Sr. Dr. Júlio de Castilhos. Santo Antônio, 10 de dezembro de 1900. - José Maciel.”

Nessa mesma nota, embaixo, se lê o seguinte, escrito do próprio punho de Castilhos:

Recebi. Porto Alegre, 14-12-1900. - Júlio de Castilhos. Aproveito o ensejo para apresentar ao prezado colega meu cordial abraço.”

Como se vê pelas datas registradas na nota acima transcrita, a “carreteada” de Santo Antônio a Porto Alegre levou apenas quatro dias. E fica evidente, pelas respectivas datas, que era uma outra encomenda, não a que se refere a carta de Júlio de castilhos a José Maciel, datada de 24 de março de 1899. Tudo indica que as encomendas se tornaram regulares e habituais.

Embora na sua carta Júlio de Castilhos tenha deixado a critério do Cel. Maciel a escolha da marca da 'branquinha” encomendada, tem-se como certo que esta recaiu sobre a denominada Lágrimas de Santo Antônio, a cachaça mais afamada entre as já produzidas no Estado.

O papel hoje desempenhado pela Escócia, com ativa participação dos falsificadores de uísque, brasileiros e paraguaios, era naquela época exercido, com honra e glória, pelo município de Santo Antônio da Patrulha.

Há uma quadrinha do cancioneiro gaúcho que diz o seguinte:

A gaita matou a viola,

O fósforo matou o isqueiro;

A bombacha o chiripá

E a moda o uso campeiro.”

Resta acrescentar que o uísque matou a cachaça…



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 105/107.

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