Pintado com Pirão
Na Revolução de 23, o Gen. Estácio Azambuja ficou entre dois fogos, no combate de Santa Maria Chico, ocorrendo, assim, inesperada derrota das hostes assisistas, logo no início das hostilidades.
É a situação em que me encontro, nesta altura dos acontecimentos, sofrendo, de um lado, a carga de lança do Luis Fernando Veríssimo e, do outro, a tática dos tambores silenciosos, urdida, insidiosamente, pelo Armando Coelho Borges.
Assim encurralado, não tenho outra saída senão entregar-lhes, como presa de guera, a minha caluniada galinha de trem.
Pretendia, através dessa memória gustativa, com a solidariedade do Manoel Braga Gastal, sensibilizar as novas gerações, de que são expoentes o Luis Fernando e o Armando, em favor da cambaleante causa ferroviária.
Lamentavelmente, o tiro saiu pela culatra, não me restando outra alternativa senão mudar de cardápio e, consequentemente, de meio de transporte.
Antes de apresentar o novo “menu”, peço permissão para fazer pequena digressão histórica, voltando ao ponto de partida dessas poucas e mal traçadas linhas que, mais adiante, serão aquaviárias e piscosas.
Na minha longa, porém infrutífera jornada pela cozinha dos jornais, jamais consegui que aquele humilde afluente do Rio Santa Maria fosse impresso na grafia correta: em lugar de Santa Maria Chico, sai, sempre, Santa Maria Chica.
Embora a matéria seja controvertida, tenho para mim que não se trata do vernáculo “Chica”, de Francisca; mas sim de “chico”, isto é, ao pé da letra – pequeno – um castelhanismo muito compreensível nas plagas de Dom Pedrito, área fronteiriça por onde serpenteia, com solução de continuidade nos verões secos, o referido cursinho d'água.
Na esperança de que, desta vez, a grafia saia correta, acrescentarei que no combate de Santa Maria Chico morreu, no posto de coronel, o lendário Adão Latorre, degolador-mor do combate do rio Negro, na Revolução de 93. Apesar de já andar pelos 80 anos, o valente caudilho negro morreu na linha de fogo, quando se preparava para desfechar uma carga de lança, montado num cavalo tordilho, bem no topo duma coxilha. Tendo sido reconhecido depois de morto, o cadáver foi competentemente degolado.
Além de ter aplicado a técnica proustiana na degustação da minha galinha de trem, o Manoel Braga Gastal me aconselhou a completar aquele recuo nostálgico, fazendo baldeação para os vapores que navegavam no rio Jacuí e em cujas refeições o prato mais apetecido era o pintado com pirão, sendo os peixes pescados no próprio rio, durante a viagem. Tenho as melhores recordações da aludida gostosura culinária, uma das mais altas expressões culturais, de cunho açoriano, de nossa antiga civilização fluvial e ribeirinha, hoje tão moribunda quanto a ferroviária.
Fui levado e embalado, naqueles barcos, sobre as águas ainda cristalinas do Jacuí, do Taquari e do próprio Guaíba. Havia, naqueles recuados tempos, uma coisa de que hoje se fala quase todos os dias, porém tristemente em vão: a integração do transporte ferroviário com o transporte fluvial. A gente vinha de Santa Maria, de trem, até Santo Amaro, onde mudava para o vapor, na viagem até Porto Alegre. O jantar, a bordo, esbanjava pintados, recamados de pirão feito do próprio caldo do peixe.
Não posso, entretanto, deixar de declarar, alto e bom som e a bem da verdade, que os melhores peixes com pirão que já saboreei na vida também eram do Jacuí, mas não eram pintados, nem foram servidos a bordo: eram os jundiás que Biagio Tarantino preparava, em terra firme, na sua cidade de Rio Pardo, para os amigos que iam visitá-lo.
Velho Biagio, nas plagas em que te encontras, recebe meu muito obrigado, por intermédio de Iemanjá, deusa do rio Jacuí e de todas as águas.
Capa: Tânia Porcher
Foto: Jorge Rolla
Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 63/65.
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