segunda-feira, 10 de julho de 2023

Ferrovia e Gastronomia (Carlos Reverbel)


Galinha de Trem

Como o trem se encontra nas mesmas condições das espécies em vias de extinção, a exemplo do que acontece com o tamanduá-bandeira, a capivara, o bugio e outros animais silvestres, proponho a criação de uma Sociedade Protetora das Estradas de Ferro, sugerindo para patrono da entidade o nome nunca assaz louvado de Irineu Evangelista de Sousa, Barão de Mauá, construtor da primeira via-férrea brasileira, e, por sinal, rio-grandense de boa e antiga cepa crioula.

Como se dizia nos noticiários de antigamente, através do lugar-comum que me apresso a reproduzir – nostálgico – não tenho dúvida de que a oportuna iniciativa será coroada de completo êxito. Estou absolutamente certo, por exemplo, que não faltará o entusiástico apoio do Dr. Mário Ramos, dinâmico e não menos criativo Secretário de Turismo. Aliás, o aproveitamento dos poucos ramais ferroviários remanescentes poderia ser introduzido na programação de futuros roteiros turísticos, mediante o seguinte apoio publicitário, elaborado pela MPM, com vistas às novas gerações: conheça o trem antes que acabe.

Lá por volta de 1938, até o Governador do Estado viajava de trem. Havia um carro tão especial que se dava ao luxo de ter nome de batismo. Chamava-se “Bento Gonçalves”. E somente funcionava nas viagens do governador, ligado ao trem de tabela. Viajando na mesma composição, tive acesso diversas vezes, como repórter, ao “Bento Gonçalves”, o carro do governador e seus acompanhantes, entre eles um jovem ajudante de ordens, em cujo futuro político não me animaria a apostar. Mas deu zebra e o então obscuro capitão chegou a grandes alturas político-administrativas.

Lembro-me de uma viagem noturna para Santa Maria, em que, encontrando-me no “Bento Gonçalves” (um vagão “vestido de dourado”, segundo Orestes Barbosa), ouvi o Gen. Cordeiro de Farias, então interventor do Estado, encomendar um cozinheiro ao diretor da Viação Férrea, Cel. Valdetaro. A saudosa ferrovia era tão bem servida de pessoal, em todos os seus quadros, que podia fornecer, como aconteceu naquela ocasião, até mesmo um excelente mestre-cuca ao palácio do Governo.

Além de flamantes carros pullman de puro aço, iguais aos então usados na Alemanha, a Viação Férrea oferecia um serviço de restaurante de primeira ordem, especialmente nos trens Porto Alegre-Santa Maria-Uruguaiana. Nas outras linhas, as refeições eram servidas em determinados entroncamentos, como a estação Cacequi, de triste memória, cuja cozinha, explorada por concessionários, era pouco animador (ou plutôt, ruim) e com outra grande desvantagem: a refeição tinha de ser ingerida em regime de urgência urgentíssima e, ainda por cima, em meio a um ambiente de atropelo geral e, naturalmente, tumultuado e confuso. Como se não bastasse a qualificação de engasga-gato, a culinária de Cacequi era ministrada aos trancos e barrancos.

Isto fazia com que os passageiros mais prevenidos e experientes providenciassem no preparo de sua própria comida, carregando-a em farnel como parte integrante de sua bagagem de mão. Nas expressões do Prof. José Mesquita de Carvalho, esta usança deu ensancha ou azo à criação e aprimoramento da galinha de trem, uma iguaria triste e injustamente relegada às urtigas, mesmo pelos mais ortodoxos animadores do movimento tradicionalista, motivo por que proponho a inclusão de uma invernada de copa e cozinha na estrutura dos nossos cetegês.

Não posso, entretanto, deixar de reconhecer que são bem apoucadas as possibilidades de renascimento da galinha de trem. Os experts que poderiam se dedicar, com êxito garantido, a esta gloriosa obra de arqueologia culinária, como o Luis Fernando Veríssimo e o Armando Coelho Borges, já perderam a sensibilidade crioula do céu da boca, estando com o palato completamente desnaturado, pela insopitável e imoderada gustação da cozinha internacional e, principalmente, fridolinesca.

Trata-se, todavia, de uma herança cultural que não pode deixar de ser exumada, pois a galinha de trem foi uma das expressões máximas da quase extinta civilização ferroviária rio-grandense. Precisamos salvar as nossas últimas estradas de ferro, quando mais não seja para que talvez venha a renascer, concomitantemente, a galinha de trem. Embora as novas gerações possam insinuar, no seu furor contestatório, que o inesquecível prato ou fiambre não passava de mera galinha assada, impregnada de farinha em estado natural (farofa, jamais) e envolta em guardanapo de algodão grosseiro, asseguro que estas eram apenas as exterioridades da iguaria, não havendo palavras para descrever a arte e magia de sua substância gastronômica e ferroviária.

Se algum dia tivermos o nosso Proust, com o gênio de ressuscitar o passado pela memória involuntária, o seu ponto de partida não será a madeleine trempée dans une tasse de thé, mas uma rechonchuda perna de galinha de trem.



Capa: Tânia Porcher

Foto: Jorge Rolla

Fonte: Reverbel, Carlos. Barco de papel. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1978, p 60/62.

Nenhum comentário:

Cédula da 'Prosperidade'

  "Dionatan já ganhou na mega sena Eu já ganhei muito dinheiro Eu já vendi muito crochê Eu já ganhei muita fartura Eu já ganhei muito d...