quinta-feira, 15 de junho de 2017

Aureliano de Figueiredo Pinto (Luiz Sérgio Metz)


Era um homem culto, Aureliano, este menino que viajava parnasiano. Das visões das janelas do trem lembraria a fixação dos imigrantes italianos, povo que amou muito a ponto de aprender sua língua. O mesmo fez com os franceses. O mesmo com os ingleses. O mesmo com seus patrícios anexados, portenhos e
orientais. Dominava, como se houvesse nascido falando, a língua de Quixote e de dom Segundo Sombra, que conhecia como ninguém que nesta hora tivesse dez anos e estivesse pronto a fazer os primeiros voos parnasianos...


Imagino que Aureliano pagava o preço de sua dimensão à poesia. Ele sabia da grandiosidade que ela encerra e por isso o fúlgido e o imenso respeito a ela e aos poetas. Talvez seja o motivo de sua ira à notoriedade, que o levou a não publicar nada ou publicar tardiamente. Por certo comparava-se com seus atores preferidos. Talvez sofresse muito com isso. Talvez. Sua sina em reescrever sempre e incansavelmente um mesmo verso, a procura da palavra ou a própria fuga dela, o domínio do linguajar rude e o momento de empregar termos gaúchos ou espanholismos levaram-no a rabiscar papeis de toda a espécie e finalidade: receitas médicas, bulas, carteiras de cigarro, papel de embrulho, livros, cadernos escolares, postais, cartas...

Aureliano não era um homem do poder (Tu bem conheces meu sereno ‘sceptismo’ a respeito dos homens públicos deste país, escreve, em agosto de 1932, em carta a Antero Marques). O poder se ofereceu a ele, em dinheiro, tempo e condições de melhorar sua vida. Principalmente dinheiro e tempo. Ele poderia ser o sub do sub do sub no fundo da última vila, que o poder provavelmente pagaria para ele escrever e abandonar a medicina. Como bardo moderno, Aureliano sabia: o poder não cega fisicamente, mas coopta os artistas, que é cegá-los através da alma. Aureliano poderia dedicar-se finalmente aos livros. Recusou as propostas. E recusou na raiz: a iniciativa dos amigos neste sentido. Que barrou e impediu...

Ele deveria ser a ponte, mal ou bem. Falava, seguidamente, em relação a seus versos: “mau mas meu”. E registrou a voz de um homem diante seu assombro: O inverno. O sol. A dor. O prazer rápido, sempre fugidio, que um campeiro leva à sua garupa, ou pelo prazer é levado. A mulher e o homem, sempre fugindo, às pressas, da morte ou dos olhares, fugindo, para um fundo de rancho no fundo do mundo pequeno. Longe dos olhares de Cachucha, a que significava o tudo sempre igual. Longe de todos e de tudo. Cruz antiga. Chuva. Fogo do diabo. Relato de enforcado. Chimarrão da madrugada. Sesteada. Triste tarde. Filosofia de peão. Unha-de-fome...

Para conseguir estas duas entrevistas com Aureliano, um problema tinha de ser superado: onde localizá-lo, em que mundo? Em que região de país sonharia, com cuia e chaleira à mão, Aureliano? A geológica coluna ou lâmina do tempo calcada nas calçadas missioneiras lhe abriria espaço para passar? O espaço confabularia com o tempo para juntos talharem Aureliano contra o céu de nuvens vermelhas, e seu passo marcaria novamente a terra dos guaranis? Em que solidão ou multidão luminar ou subsolar o poeta declamaria suas gestas ao berçário das estrelas? Em que século estaria? 


Fonte: Coleção Esses Gaúchos, Editora Tchê / Revista Tarca – ANO III – Nº 15 – Julho 1986 – p. 07

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