quinta-feira, 15 de junho de 2017

NO MÍNIMO, COERÊNCIA - ENSAIO (Jaime Vaz Brasil)






E
m uma recente entrevista, o grande escritor Mário Vargas Llosa declara interessantes passagens de sua vida literária. Entre elas, uma conversa que manteve com o chileno Pablo Neruda, através da qual Mário aprendeu que, quando um escritor de talento começa a ver sua obra e sua vida pessoal (!) atacadas, é sinal de fama.

Não foram poucas as surpresas que me abraçaram enquanto li, no jornal Zero Hora de 07.06.86, um artigo intitulado “De Coronel a Silva Rillo”. Ideologias à parte, jamais pensei em ler tantos ataques infundados e gratuitos ao poeta Luiz Coronel e sua obra.

Logo no início da matéria, o seu ilustre autor declara que a métrica usada por Coronel é altamente discutível, e que os versos da “quadrinha” são armados arbitrariamente. Como exemplo, cita o poema “Cordas de Espinho”. De saída: não se pode julgar uma obra tão extensa tomando por amostra apenas uma poesia. Seria como avaliar as condições de uma praia a partir de um ínfimo grão de areia. Eu poderia enfileirar aqui uns mil exemplos refutando o argumento descabido de que as quadras do poeta em questão são armadas com arbítrio. A grande maioria das estrofes possuem quatro versos que se completam ao longo da quadra, e não sem antes receberem a bênção do espanto e da leveza. Ninguém utiliza com tanta maestria os arredios recursos da imagem poética. Talvez existam jurados de festivais que não imaginem o que seja essa tal imagem poética. Recomendo a esses a leitura (várias vezes) do livro “BUÇAL DE PRATA” da Editora Tchê! Aos que desejarem se aprofundar no assunto, recomendo autores como F. S. Eliot, todos pertencentes e representantes do Imagismo inglês do começo do século. No Brasil temos Carlos Nejar, Armindo Trevisan, Álvaro Pacheco, Castro Chamma, Francisco Miguel de Moura, Dobal Teixeira, Herculano Moraes, Homero Homem, Laci Osório, Mário Quintana, Torquato Neto, Renata Pallotini, Walmir Ayala e por aí adiante. Estes são os nomes mais conhecidos.

Sobre a métrica, acho desnecessário tecer referências mais aprofundadas sobre o assunto. Basta evocar João Cabral de Melo Neto, grande poeta do nativismo nordestino, membro da Academia Brasileira de Letras e dizer que este mestre utiliza formulações métricas semelhantes às de Luiz Coronel. (João Cabral também emprega “quadrinhas”).

Mais adiante, o autor da matéria fala que a rima empregada pelo poeta Luiz Coronel é “meramente circunstancial”. Outro equívoco, dos grandes. Em dezenas das poesias de Coronel a quadra é unitária, com os quatro versos formando um verso maior, ao final (Estrofe). E assim sendo, como existe coesão nas estrofes, a rima  não tem outra finalidade senão a de fornecer sonoridade à peça musical:

“Quando abraça sua guitarra
e desempenha seu solo
o guitarrista parece
a mãe com o filho no colo.

Quando ele fecha os olhos
nos prodígios de seu dom
viaja pra dentro de si,
navega em ondas de som.” (...)

Não prossigo com exemplos. Seria perder muito tempo para provar algo que salta aos olhos de tão evidente.

Certamente que uma arte cerebralizada e de extremo bom gosto como a do poeta Luiz Coronel não poderia, de modo algum, ser composta por um “trovador folclórico de 1935”, como escreve o autor do desastrado artigo. Além do abismo intelectual entre Coronel e os tais trovadores, há outro talvez maior: o da cultura. Não adianta nada saber como dizer se não se sabe o quê dizer. (Se todos entendessem esta simplória constatação, não existiriam pessoas ocupando uma valiosa coluna de jornal para explanar tolices e argumentos descabidos.)

Vamos adiante. Logo em seguida, o autor pergunta qual foi o tema social abordado até hoje por Luiz Coronel em suas canções. Respondo de pronto: ninguém com tanta maestria retratou o drama do êxodo rural como Luiz Coronel. Sugiro ao distinto crítico a leitura de “Os Retirantes do Sul” (Ed. Movimento). Trata-se de um livro que reúne poema exclusivamente sociais, mostrando em diversas formas e visões as agonias migratórias, fenômeno obviamente causado pelas precárias condições socioeconômicas de nossos pequenos agricultores.

Abro aqui um necessário parênteses. Em outro artigo, datado de 24.05.86, no mesmo jornal, com uma linguagem um tanto áspera, o mesmo autor contesta o uso de instrumentos alienígenas em composições nativistas. Reclama que os compositores querem levar ao palco orquestra de câmara, baixo acústico e quinteto de cordas (entre outros). Por estranha coincidência, o insigne crítico não inclui em sua lista negra dois instrumentos: bateria e baixo elétrico. Por ocasião da última Califórnia (décima quinta) apresentou-se e venceu a linha campeira uma composição intitulada “Gaita de Botão”, onde uma bateria faz verdadeiro escarcéu acompanhada, entre outros instrumentos tradicionais, de um baixo elétrico. Quero crer que o ilustre reclamante anda com a memória um tanto debilitada, e não lembrou que é um dos autores do trabalho mencionado acima. Fecha parênteses.

É preciso, no mínimo, coerência. Coerência para criticar. Coerência para debater. Principalmente para argumentar. Recomendo, com todo o respeito, que o autor das matérias citadas pare de comprar bochinchos por aí e faça as pazes com a vida. Somos irmãos de arte. Temos inimigos comuns. Combatemos as mesmas massificações culturais. É preciso que um respeite a manifestação criadora do outro. O regionalismo arcádico que tentam impor ao canto gaúcho é lamentável. É um pássaro engaiolado, prestes à condenação. Além das grades, enfrentará um inclemente pelotão de fuzilamento cada vez que não cantar exatamente como pedem as bitolas dos tirânicos preceitos.

O Rio Grande é um mosaico, é diverso, há espaço e público para todas as correntes. Uma forma de expressão não deve e não pode sufocar a outra. Todas são imensamente válidas. Precisamos coexistir, e pacificamente.

Para concluir, penso que a crítica só é válida quando possui bases sólidas. Bases coerentes. Luiz Coronel não precisa grandes defesas. Venceu o I Concurso Nacional de Poesia de Florianópolis. Sua poesia foi elogiada por nomes como Carlos Nejar, Tom Jobim, Barbosa Lessa e Carlos Drummond de Andrade.

Aliás, é Drummond quem recomenda: “Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria como pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais o que fazer.”

Fonte: Revista Tarca – Cultura Gaúcha – ANO III – Nº 15 – 1986 – p. 3/5


Nenhum comentário:

Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

Link: https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=pt-BR&ll=-28.28439367125109%2C-53.045925850387164&z=7&mid=1ZlKA__gK8tH-WY6mbDeQzlt...