Por
TUDE MUNHOZ
Entrevistei o professor
Mozart durante a edição do 1º Carijo da Canção. Cara a cara com ele, procurei
uma explicação lógica e firme para uma definição final, sobre os atritos
existentes entre tradicionalistas e nativistas. Então, caros leitores, dentro
de nossa posição editorial de sempre procurar uma maior nitidez para o
movimento cultural gaúcho, abrimos esta edição com uma explanação de MOZART
PEREIRA SOARES, homem que tem a vivência do Tradicionalismo e a perspicácia de
estudar o novo para alertar o velho. Catedrático da UFRGS, já lecionou em 16
cursos superiores diferentes (inclusive na PUC, na Universidade de Santa Maria
e Santa Catarina) e presidiu várias entidades culturais: Estância da Poesia
Crioula, Academia Riograndense de Letras, Conselho Estadual de Cultura, Casa do
Poeta Riograndense, Grêmio Literário Castro Alves, entre outras.
A
cultura gaúcha
em debate
TARCA:
O professor, que se dedica ao tradicionalismo, certamente tem acompanhado as
divergências entre os tradicionalistas e a corrente nativista. Como se
posiciona em face do problema?
MOZART: Sim, tenho
acompanhado. E me parece que existem equívocos de ambos os lados. Por isso,
acho bom clarear as coisas. Comecemos por conceituar Tradição. Mesmo sabendo que
há certo consenso a respeito. Como a etimologia nos ensina (Traditionem,
tradere) a palavra significa trazer, transportar, no caso do passado para o
presente, com vistas ao futuro, ideias, sentimentos e costumes, dignos de
perdurarem. É preciso, porém, distinguir tradição (e o tradicionalismo que é
seu culto) de imobilismo, apego a fórmulas vencidas, tentando ressuscitar a que
está realmente morto. As conquistas do passado perdurarem como exemplo e não
como modelo. Estamos cansados de ouvir que há também uma certa tendência para
se considerar o tradicionalismo como uma atitude regressiva, de volta, pura e
simplesmente, a padrões superados. Na verdade, tradicionalismo é progresso. Eu
diria que é o passado no presente e o presente no futuro. Os que o acusam de
regressão, erram ao conceituá-lo como algo estanque e imóvel, como um lago.
Recordo ao leitor que GLAUCUS SARAIVA, no “Manual do Tradicionalismo”, insistia
em considerá-lo como um rio, em seu perpétuo dinamismo, às vezes tumultuado
pelas enchentes (como o momento em que vivemos), mas sempre fecundo. É nesse
sentido que todos, individual ou coletivamente, em qualquer ponto de terra e em
qualquer época, somos tradicionalistas. Ninguém pode renunciar o seu passado.
Não é possível ao homem despir sua capa histórica. Somos produto das
experiências da espécie e cada gesto vivido no tempo está profundamente
estereotipado no inconsciente coletivo. A fórmula correta, enfim, seria “conservar,
melhorando”. Com isso, nós distinguimos os verdadeiros tradicionalistas, que
são conservadores, mas progressistas, tanto dos retrógrados, que nada
impulsionamos, como dos anárquicos incapazes de reter o que quer que seja.
TARCA:
De acordo com sua exposição, é possível distinguir-se tradicionalismo de
nativismo?
MOZART: Perfeitamente.
E não só é possível distinguir-se tradicionalismo de nativismo, como este de
regionalismo. O tradicionalismo, como se viu, é a mais abrangente dessas
posições. É uma atitude universal, comum a todos os indivíduos ou
coletividades, em qualquer tempo histórico ou espaço geográfico. Já o nativismo
diz respeito ao modo de ser de um agregado humano particular. O nativo é
autóctone, indígena, contrastando com o alienígena, com o estrangeiro, com o
forâneo. Nesse sentido, poderemos falar em nativismo brasileiro, por exemplo,
ou, ainda, brasiliano ou brasílico, para significarmos com estas duas palavras,
não o nacionalismo jurídico, mas um estilo vivencial. Nessa mesma linha de
ideias, o regionalismo vem a ser a variante localista do nativismo. Dentro do
espírito de brasilianidade nós podemos distinguir um regionalismo amazônico, um
nordestino, um caipira, um sertanejo, um gaúcho. Todos eles se distinguem uns
dos outros pelo modo de vestir, que em geral é uma imposição do meio, no modo
de morar ou de se alimentar, na linguagem, no sentir o mundo, em sua escala de
valores, em suma.
Trata-se, como se vê,
de três círculos concêntricos, tendo, portanto, entre eles, uma grande área
comum. Entre todos eles há semelhanças genéricas e diferenças específicas.
Nacionalisticamente, nós somos parecidos com qualquer parcela do território
brasileiro mas temos, para com eles, várias dissemelhanças de estilo ou
comportamento grupal, que nos permitem identificá-los a qualquer momento.
TARCA:
Todavia, o senhor não pensa, como nós, que o nativismo é o mais agressivo em
suas posições sociais, atualmente?
MOZART: Talvez isso
seja mais aparente que real. Caracterizado o Nativismo como conjunto de traços
contrastantes entre o alienígena e o indígena, não é necessário que a defesa do
que é nosso se processe pelo repúdio ao alheio. O intercâmbio social não pode
ser detido. Quer queiramos quer não, a humanidade marcha para a unidade, desde
a intelectual e religiosa, até a econômica ou linguística. Devemos receber de
bom grado toda a mensagem alheia, sem, entretanto, permitirmos sua invasão e,
muito menos, seu domínio. Teremos de passar, por exemplo, do nacionalismo
agressivo para o nacionalismo fraterno. Sejamos irmãos de todos, mantendo viva
nossa chama, nossa mensagem e nossa confiança no tempo que há de vir, pleno de
pão e paz. Sejamos, enfim, universalistas, dentro de nossas bombachas ou de
lenço no pescoço, estendendo aos outros a cuia com o “licor da fraternidade”
que é o chimarrão.
TARCA:
Acha, então, possível aos tradicionalistas aceitarem o nativismo?
MOZART: Não só é
possível, como necessário. Ambos estão pretendendo a mesma coisa, por vias
diferentes. Mas é preciso que essas duas tendências não radicalizem as coisas.
Ambos têm de procurar as convergências. Concordo que os Nativistas têm maior
ímpeto renovador, que estão pondo em evidência as questões dramáticas de novos
tempos: os sem terra, a reforma agrária, os “desgarrados do campo” vencidos na
marginália das grandes cidades, os trombadinhas, futuros assaltantes, e por aí
afora. Uma coisa, entretanto, ninguém poderá negar: é que, para fazer isso,
eles não precisariam servir-se do estilo gauchesco. Talvez até tivessem mais
força fazendo música urbana de protesto. Por outro lado, não se pode negar a
eles espaço no gauchismo. E nem impedir que as atuais gerações empreguem
recursos sonoros da atualidade. Sempre fui a favor disso, da guitarra elétrica, do
sintetizador. São muito mais bonitos e não se pode privar o povo dessas
conquistas. Não tenhamos pudor de chamá-los de maravilhosos.
TARCA:
E a gaitinha? E a rabequinha?
MOZART: Há momentos em
que eles podem e devem comparecer, até como uma nota de nostalgia, nesse caso
insuperável. Mas, para isso, é preciso muita arte.
TARCA:
E quanto às letras dos festivais, no seu aspecto tradicionalista e nativista,
que nos diz o senhor?
MOZART: De um modo
geral, nossas letras premiadas estão muitos furos acima das que hoje circulam
em discos do centro do país. Que me perdoem a tirada retórica, mas as nossas
têm melhor conteúdo e maior dignidade, isso estourado. Sempre me detenho nesse
aspecto, sem repudiar a sátira, o humor, o epigrama, e até o apimentadinho.
Estimo a letra moderna. Todos temos fome de renovação. Acho que a redondinha
está sovada demais. Para usá-la bem, só um talento como o Jayme ou o Rillo, capazes
de usarem a poesia que o povo já fez, original e inovadoramente. Para clarear
um pouco: usando esse modelo de repressão popular, os grandes são sempre
capazes de redescobertas. É o caso do Garcia Lorca, em seu “Cancioneiro
Gitano”, Antônio Nobre, no “Só”, e o nosso João da Cunha Vargas, um iletrado,
sem contaminações literárias, porque nem lia, mas de uma autenticidade incomum.
TARCA:
E quanto aos gêneros literários, concorda com os que ora se fazem em seu nome?
MOZART: Não sou
especialista. Julgo essa questão por instinto. Mas entendo que não se pode
repudiar o belo, em nome de um pretendido ritmo ou gênero genuinamente nosso,
que nem existe na forma como alguns afirmam. Se estreitarmos um pouco mais o
assunto, iremos dar na inúbia dos ameríndios. Não é verdade que todos os
gêneros e ritmos nossos vêm do mundo, da Europa, da África e até da Ásia?
Fonte:
Tarca – Revista de Cultura Gaúcha – ANO III – Maio/86 – Nº 14 - p. 4/5
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