sábado, 7 de julho de 2018

A cultura gaúcha em debate - Mozart Pereira Soares (Entrevista)


Por TUDE MUNHOZ


Entrevistei o professor Mozart durante a edição do 1º Carijo da Canção. Cara a cara com ele, procurei uma explicação lógica e firme para uma definição final, sobre os atritos existentes entre tradicionalistas e nativistas. Então, caros leitores, dentro de nossa posição editorial de sempre procurar uma maior nitidez para o movimento cultural gaúcho, abrimos esta edição com uma explanação de MOZART PEREIRA SOARES, homem que tem a vivência do Tradicionalismo e a perspicácia de estudar o novo para alertar o velho. Catedrático da UFRGS, já lecionou em 16 cursos superiores diferentes (inclusive na PUC, na Universidade de Santa Maria e Santa Catarina) e presidiu várias entidades culturais: Estância da Poesia Crioula, Academia Riograndense de Letras, Conselho Estadual de Cultura, Casa do Poeta Riograndense, Grêmio Literário Castro Alves, entre outras.


A cultura gaúcha
 em debate

TARCA: O professor, que se dedica ao tradicionalismo, certamente tem acompanhado as divergências entre os tradicionalistas e a corrente nativista. Como se posiciona em face do problema?
MOZART: Sim, tenho acompanhado. E me parece que existem equívocos de ambos os lados. Por isso, acho bom clarear as coisas. Comecemos por conceituar Tradição. Mesmo sabendo que há certo consenso a respeito. Como a etimologia nos ensina (Traditionem, tradere) a palavra significa trazer, transportar, no caso do passado para o presente, com vistas ao futuro, ideias, sentimentos e costumes, dignos de perdurarem. É preciso, porém, distinguir tradição (e o tradicionalismo que é seu culto) de imobilismo, apego a fórmulas vencidas, tentando ressuscitar a que está realmente morto. As conquistas do passado perdurarem como exemplo e não como modelo. Estamos cansados de ouvir que há também uma certa tendência para se considerar o tradicionalismo como uma atitude regressiva, de volta, pura e simplesmente, a padrões superados. Na verdade, tradicionalismo é progresso. Eu diria que é o passado no presente e o presente no futuro. Os que o acusam de regressão, erram ao conceituá-lo como algo estanque e imóvel, como um lago. Recordo ao leitor que GLAUCUS SARAIVA, no “Manual do Tradicionalismo”, insistia em considerá-lo como um rio, em seu perpétuo dinamismo, às vezes tumultuado pelas enchentes (como o momento em que vivemos), mas sempre fecundo. É nesse sentido que todos, individual ou coletivamente, em qualquer ponto de terra e em qualquer época, somos tradicionalistas. Ninguém pode renunciar o seu passado. Não é possível ao homem despir sua capa histórica. Somos produto das experiências da espécie e cada gesto vivido no tempo está profundamente estereotipado no inconsciente coletivo. A fórmula correta, enfim, seria “conservar, melhorando”. Com isso, nós distinguimos os verdadeiros tradicionalistas, que são conservadores, mas progressistas, tanto dos retrógrados, que nada impulsionamos, como dos anárquicos incapazes de reter o que quer que seja.   

TARCA: De acordo com sua exposição, é possível distinguir-se tradicionalismo de nativismo?
MOZART: Perfeitamente. E não só é possível distinguir-se tradicionalismo de nativismo, como este de regionalismo. O tradicionalismo, como se viu, é a mais abrangente dessas posições. É uma atitude universal, comum a todos os indivíduos ou coletividades, em qualquer tempo histórico ou espaço geográfico. Já o nativismo diz respeito ao modo de ser de um agregado humano particular. O nativo é autóctone, indígena, contrastando com o alienígena, com o estrangeiro, com o forâneo. Nesse sentido, poderemos falar em nativismo brasileiro, por exemplo, ou, ainda, brasiliano ou brasílico, para significarmos com estas duas palavras, não o nacionalismo jurídico, mas um estilo vivencial. Nessa mesma linha de ideias, o regionalismo vem a ser a variante localista do nativismo. Dentro do espírito de brasilianidade nós podemos distinguir um regionalismo amazônico, um nordestino, um caipira, um sertanejo, um gaúcho. Todos eles se distinguem uns dos outros pelo modo de vestir, que em geral é uma imposição do meio, no modo de morar ou de se alimentar, na linguagem, no sentir o mundo, em sua escala de valores, em suma.
Trata-se, como se vê, de três círculos concêntricos, tendo, portanto, entre eles, uma grande área comum. Entre todos eles há semelhanças genéricas e diferenças específicas. Nacionalisticamente, nós somos parecidos com qualquer parcela do território brasileiro mas temos, para com eles, várias dissemelhanças de estilo ou comportamento grupal, que nos permitem identificá-los a qualquer momento.

TARCA: Todavia, o senhor não pensa, como nós, que o nativismo é o mais agressivo em suas posições sociais, atualmente?
MOZART: Talvez isso seja mais aparente que real. Caracterizado o Nativismo como conjunto de traços contrastantes entre o alienígena e o indígena, não é necessário que a defesa do que é nosso se processe pelo repúdio ao alheio. O intercâmbio social não pode ser detido. Quer queiramos quer não, a humanidade marcha para a unidade, desde a intelectual e religiosa, até a econômica ou linguística. Devemos receber de bom grado toda a mensagem alheia, sem, entretanto, permitirmos sua invasão e, muito menos, seu domínio. Teremos de passar, por exemplo, do nacionalismo agressivo para o nacionalismo fraterno. Sejamos irmãos de todos, mantendo viva nossa chama, nossa mensagem e nossa confiança no tempo que há de vir, pleno de pão e paz. Sejamos, enfim, universalistas, dentro de nossas bombachas ou de lenço no pescoço, estendendo aos outros a cuia com o “licor da fraternidade” que é o chimarrão.

TARCA: Acha, então, possível aos tradicionalistas aceitarem o nativismo?
MOZART: Não só é possível, como necessário. Ambos estão pretendendo a mesma coisa, por vias diferentes. Mas é preciso que essas duas tendências não radicalizem as coisas. Ambos têm de procurar as convergências. Concordo que os Nativistas têm maior ímpeto renovador, que estão pondo em evidência as questões dramáticas de novos tempos: os sem terra, a reforma agrária, os “desgarrados do campo” vencidos na marginália das grandes cidades, os trombadinhas, futuros assaltantes, e por aí afora. Uma coisa, entretanto, ninguém poderá negar: é que, para fazer isso, eles não precisariam servir-se do estilo gauchesco. Talvez até tivessem mais força fazendo música urbana de protesto. Por outro lado, não se pode negar a eles espaço no gauchismo. E nem impedir que as atuais gerações empreguem recursos sonoros da atualidade. Sempre fui a favor disso, da guitarra elétrica, do sintetizador. São muito mais bonitos e não se pode privar o povo dessas conquistas. Não tenhamos pudor de chamá-los de maravilhosos.

TARCA: E a gaitinha? E a rabequinha?
MOZART: Há momentos em que eles podem e devem comparecer, até como uma nota de nostalgia, nesse caso insuperável. Mas, para isso, é preciso muita arte.

TARCA: E quanto às letras dos festivais, no seu aspecto tradicionalista e nativista, que nos diz o senhor?
MOZART: De um modo geral, nossas letras premiadas estão muitos furos acima das que hoje circulam em discos do centro do país. Que me perdoem a tirada retórica, mas as nossas têm melhor conteúdo e maior dignidade, isso estourado. Sempre me detenho nesse aspecto, sem repudiar a sátira, o humor, o epigrama, e até o apimentadinho. Estimo a letra moderna. Todos temos fome de renovação. Acho que a redondinha está sovada demais. Para usá-la bem, só um talento como o Jayme ou o Rillo, capazes de usarem a poesia que o povo já fez, original e inovadoramente. Para clarear um pouco: usando esse modelo de repressão popular, os grandes são sempre capazes de redescobertas. É o caso do Garcia Lorca, em seu “Cancioneiro Gitano”, Antônio Nobre, no “Só”, e o nosso João da Cunha Vargas, um iletrado, sem contaminações literárias, porque nem lia, mas de uma autenticidade incomum.

TARCA: E quanto aos gêneros literários, concorda com os que ora se fazem em seu nome?
MOZART: Não sou especialista. Julgo essa questão por instinto. Mas entendo que não se pode repudiar o belo, em nome de um pretendido ritmo ou gênero genuinamente nosso, que nem existe na forma como alguns afirmam. Se estreitarmos um pouco mais o assunto, iremos dar na inúbia dos ameríndios. Não é verdade que todos os gêneros e ritmos nossos vêm do mundo, da Europa, da África e até da Ásia?
Fonte: Tarca – Revista de Cultura Gaúcha – ANO III – Maio/86 – Nº 14 - p. 4/5


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