sábado, 7 de julho de 2018

“Os Aiatolás da Tradição” - JUAREZ FONSECA e GILMAR ETELWEIN


REPORTAGEM
TRADIÇÃO OU
NATIVISMO?

“Os Aiatolás da Tradição”

Estamos publicando uma reprodução de textos da matéria assinada pelos jornalistas JUAREZ FONSECA e GILMAR ETELWEIN – “OS AIATOLÁS DA TRADIÇÃO”, central de ZH Cultura (14.06.1986). Reprodução esta válida e oportuna, pois vem de encontro com a linha editorial e específica deste órgão de imprensa que vem lutando pelo novo, direção correta da cultura do Rio Grande nativo, até então palanqueada nos incertos moirões e aramados do tradicionalismo.
TUDE MUNHOZ
*** Imaginando que podem deter a marcha da História, impedir a liberdade de criação, atrasar o processo de evolução cultural e manter autoprivilégios de donos da verdade, começaram a levantar a voz no Rio Grande do Sul, nos últimos anos, os “aiatolás” da tradição. Depois que o despertar da juventude se tornou nítido, ocupando os espaços e apoiando, em palco e em plateia, uma nova e moderna forma de cantar sua região e sua história, os “aiatolás” julgaram aplainado o terreno para manifestar-se, posando de professores e guardiões do templo. Já arriscam ressuscitar dogmas, reviver formas autoritárias de pensamento, e pouco a pouco passam a julgar-se proprietários das manifestações que digam respeito ao cantar gaúcho. Vão ocupando postos de influência na organização de festivais e em suas comissões julgadoras, nos meios de comunicação, nas instituições fiscais de qualquer âmbito. E, na maioria das vezes, sempre fechando, limitando, ditando regras e formas de comportamento. Atacando agressivamente, às vezes, quem não aprendeu a ler por suas cartilhas. Por tudo isso, quem se julga no direito de criar com liberdade a música do Rio Grande do Sul, colocando nela suas angústias, seus amores, suas paixões, suas denúncias, suas esperanças e desesperanças quanto ao presente, seus temores e crenças quanto ao futuro, por tudo isso, deve manifestar-se e reagir contra os “aiatolás” da tradição. Sabe-se o que é a tradição e sabe-se que os “aiatolás” a estão contaminando com suas brigadas repressivas.

*** O Movimento Tradicionalista Gaúcho existe de fato e de direito, tem suas regras, seus princípios, suas bibliografias. Não se pode dizer que exista de direito um Movimento Nativista, mas é inegável que ele existe de fato. Nativista não é o dogmático, não está ligado a critérios pré-estabelecidos. Sabe que além do Rio Grande do Sul existem os outros Estados brasileiros e, além deles, o mundo. O nativista acha que guitarras e sintetizadores são apenas instrumentos musicais e não objetos diabólicos e corruptores. Ele também quer ter a liberdade de, tranquilamente, se deixar influenciar por outras ideias musicais, como aconteceu com seus antepassados do século XIX, que levaram para animar o campo os ritmos que vinham dos centros europeus. Os nativistas têm presente a realidade do Rio Grande do Sul de hoje e sabem que os tão decantados (e contraditoriamente tão discriminados) “peões” de que falam os “aiatolás da tradição”, não andam felizes pelo pampa. Andam trabalhando duríssimo, de bombacha ou calça remendada, calçando não lustrosas botas mas prosaicos chinelos-de-dedo. Ou andam vagando pelas estradas e acampamentos de sem-terra. Os nativistas são a favor da reforma agrária, de uma ordem social mais justa, e contra o sistema latifundiário e quase escravagista que ainda persiste. Os nativistas não concordam com a hierarquização alimentada e defendida pelos tradicionalistas como se o mundo fosse um grande quartel.

*** É preciso dizer que os atuais “aiatolás da tradição”, encastelados em suas verdades imutáveis, em suas formas fechadas e divisionistas, juízes do bem e do mal, detentores do segredo do poema, maridos da musa da melodia e afilhados prediletos do deus do ritmo puro, estão exercendo o papel de irresponsáveis censores da consciência e da sabedoria alheias. Xenófobos muitas vezes, insistem em manter uma visão microscópica da arte e da realidade. E tão seguros sentem-se em sua presumível onipotência, que passam o tempo ditando regras, separando o “joio” do “trigo”, encontrando chifres em cabeça de cavalo. Preservar certas tradições é necessário, e nisso os CTGs cumprem o seu papel. Agora, querer encampar os festivais do Rio Grande do Sul como propriedade do “movimento tradicionalista” é uma aberração. Envolver a música e a manifestação artística gaúchas em uma cerca de arame farpado é algo que não se pode entender nem permitir. Os “aiatolás da tradição”, todos bem postados nas cidades, querem reviver e manter a mística do campo, sob o argumento fugidio de que os peões tinham lá casa, comida e felicidade. Uma mística alimentada por fazendeiros, que perderam uma força de trabalho estável e disciplinada. Mas por que saíram do campo estas levas que hoje tornaram-se operários desqualificados da construção civil, papeleiros, lavadeiras, domésticas e prostitutas, gerando trombadinhas e logo assaltantes? Analfabetos, sem raízes, guerrilheiros de “baixa sociedade”. Os “aiatolás da tradição” querem que se cante o seu passado ideal e não o seu drama.

*** Quando se fala no “conflito” entre as formas novas e as mais tradicionais, as cabeças menos dotadas logo imaginam que está sendo proposta uma abertura ao rock e à música urbana, em contraposição ao xote, à vaneira, à milonga. Não há nada mais pueril do que esse raciocínio. Porque, na verdade, na maior parte das vezes ele se prende à mera questão do instrumental usado. Quanto à temática das letras não pode ser porque (e os discos estão aí mesmo para se tirar qualquer dúvida) não apareceu ainda, em nenhum festival, sequer uma música que falasse de algo não entendível pelo Rio Grande do Sul em qualquer quadrante. Pelo contrário, mesmo os compositores dito “urbanos”, que eventualmente participam dos festivais, às vezes procuram adequar-se até à terminologia dita “campeira”. Quanto ao ritmo também não pode ser; as comissões de pré-seleção, bem batizadas por Dilan Camargo de “comissões de inquérito”, jamais deixariam passar um rock ou um ritmo definidamente urbano. Mas voltando aos discos dos festivais, eles têm uma gama tão grande de abordagens rítmicas, tantas formas de milongas, de xotes, de vaneiras, de toadas, dignas de enlouquecer um purista radical. 
  
*** Antes que os inventores do “neo-tradicionalismo” se apossassem do tradicionalismo original, pesquisado e inventado por Paixão cortes, Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva no final dos anos 40, já andavam os Irmãos Bertussi gravando “sambas campeiros” e “chorinhos campeiros”. Os Gaudérios, fizeram sucesso gravando músicas de um compositor “urbano”, Lupicínio Rodrigues, que nasceu na Ilhota, em Porto Alegre, e só foi botar os pés em uma estância poucos anos antes de morrer. Para os recentes “aiatolás da tradição”, a História parece ser uma coisa a ser escamoteada. Os tradicionalistas de 48 afirmaram uma postura e em nenhum momento (os livros publicados por eles estão aí mesmo para provar isso) estiveram preocupados em negar a realidade do Estado gaúcho. Pelo contrário, evoluíram com elas e ele, mas suas invenções e pesquisas originais foram formando dogmas, catecismos de incautos, embora eles mesmos as venham subvertendo. De qualquer forma, estamos neste parágrafo para falarmos de instrumentos e instrumentação. Os “aiatolás” têm ojeriza pelos sintetizadores e até pela guitarra elétrica. Embora com a guitarra dancem em todos os fandangos – alguém precisa explicar porque pode guitarra nos bailes, e não pode nos palcos dos festivais? Ou, então, porque pode baixo elétrico nos palcos e não pode guitarra? Alguém precisa explicar, também, porque os sintetizadores causaram tanta comoção e agressividade na última Califórnia da Canção, se em 76 (10 anos atrás) eram o único instrumento fazendo base para a música Sementes de Pedra, vencedora da Linha de Projeção Folclórica do mesmo festival. A gaita entrou no Rio Grande do Sul no final do século passado para ajudar a viola de arame e a rabeca. Foi muito bem vinda. Cem anos depois, os inteligentes “aiatolás” encrespam com os sintetizadores. Estão cem anos atrás em matéria de abertura. Imaginem se os caras de 1880 não aceitassem a gaita por ser “instrumento alienígena”. Ou não aceitassem os schottish, as valsas, as habaneiras, as polcas e as mazurcas que chegaram da Europa. A história da música gaúcha se fez no dia-a-dia do passado, e agora querem impedir que ela se faça no dia-a-dia do presente.

*** Quem não aceitar as regras, que não participe dos festivais dominados pelo pensamento tradicionalista, ou conservador. Analisada superficialmente, essa parece ser uma questão de livre arbítrio – de quem organiza e de quem participa. Mas trata-se de uma análise falsa e enganosa, porque não se pode confundir a cultura de um povo com partidos políticos. E mesmo que se pudesse, a porta para a discussão deve permanecer sempre aberta, sob pena de cair-se no alagadiço terreno da opinião exclusiva, da ‘verdade incontestável” que levou ao nazismo e ao fascismo. Precisa-se contestar e boicotar as regras do jogo, quando esse jogo tem um juiz que puxa para um lado só. Quando falamos em festivais, falamos da cultura musical gaúcha, abrangente, diversificada, livre, que se não desconhecer a base do passado, muito menos pode deixar de lado a indesmentível, crua, fascinante e inevitável realidade do presente. Os festivais precisam mudar, abrir-se à diversificação; é necessário que cada um deles tenha espaço para as novas formas, e que elas convivam harmoniosamente com as formas mais tradicionais. Só assim se poderá dar a eles credibilidade. Quando, na competição, o “velho” for melhor que o “novo”, ou quando o “novo” superar em qualidade o “velho”. Caso contrário, será sempre um jogo de cartas marcadas, um clube fechado e antidemocrático, onde o tradicional exprime-se da responsabilidade com o presente real. E isso também é falso. Diga-se porque ninguém está livre de seu cotidiano. E o cotidiano não é tradicionalista.

*** Por que nossa música de base folclórica é considerada apenas “regionalismo gaúcho” e só tem aceitação fora daqui como curiosidade, como manifestação meramente regional? Será que é um complô do Brasil contra nós, ou será que nós, mesmo querendo e pregando a Projeção de nossa música no País, estamos insistindo em uma visão unilateral, querendo impor valores e conceitos domésticos restritos? O segredo talvez esteja nos dogmas, no orgulho arcaico que nos aparta da nacionalidade. Queremos conquistar o Brasil segundo nossas condições, queremos impor-nos sem pensar que, para isso, teremos que viver o Brasil.

*** As poucas músicas de festivais que tiveram uma certa projeção nacional, saíram em sua maioria absoluta da linha de Projeção Folclórica da Califórnia da Canção – que forma com o Musicanto e a Ciranda o trio de eventos síntese do nativismo. Pode-se apontá-las: Gaudêncio 7 Luas e Cordas de Espinhos, ambas de Luiz Coronel e Marco Aurélio Vasconcellos; Semeadura, de Vitor Ramil e José Fogaça; Estrela Guria, de Pery Souza e Fogaça; Desgarrados, de Mário Barbará e Sérgio Napp (que já tem sete gravações). Semeadura tem uma história particular, pois tornou-se, também, internacional na gravação de Mercedes Sosa e foi a única música brasileira escolhida pelo acordeonista argentino Tarragó Ros para seu show na Califórna. Os “aiatolás da tradição”, que estão declarando guerra contra a evolução da arte nativa, por causa de seu conservadorismo, apego a um passado estanque e seu divisionismo, estão deflagrando também uma nova onda antitradicionalista – e não é isso que se quer. O que se quer é a convivência salutar, sem verdades exclusivas. Que os pais e avós tenham orgulho dos filhos e netos que descobrem seus caminhos próprios. Além do mais, a cultura gaúcha pertence a todos os gaúchos e cada um tem uma maneira de vê-la, entendê-la e reproduzi-la. Chega de conceitos ultrapassados, chega de repressão, chega de pretender que só é gaúcho quem foi fabricado em uma única forma. E que os festivais transformem-se em todos os verdadeiros encontros de discussão cultural aberta, de manifestação cultural criativa, e não em eventos apenas turísticos.
Fonte: Tarca – Revista de Cultura Gaúcha – ANO III – Maio/86 – Nº 14 - p. 24/26


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