Num país de moedas efêmeras e com uma história de inflação
significativa, não é de admirar que o povo busque parâmetros
estáveis, ainda que fazendo parte do mundo do faz-de-conta. Nos
últimos cinquenta anos, tivemos pelo menos oito moedas diferentes no
Brasil, sem contar os índices para aplicar tabelas de correção
monetária e outras invenções. Por vezes, papéis de renegociação
da dívida pública ganharam apelidos como as brizoletas,
pouco duradouras como as próprias moedas oficiais; faltou-lhes
estofo histórico que as consagrasse como definitivas.
Mas com os pilas a história é diferente. Quem ainda não
ouviu ou usou pila e pilas para significar dinheiro?
Pois, para isso, há uma explicação que penetra em nossa história
e se enche de significado mágico.
Corria o ano de 1932 e Getúlio Vargas, embriagado pelo poder, não
convocava a esperada assembleia constituinte. São Paulo pegou em
armas, esperando que o mesmo ocorresse em todo o Brasil e, sobretudo,
no Rio Grande do Sul, cujo interventor, Flores da Cunha, participara
de reuniões conspiratórias e de apoio aos constitucionalistas. Mas
na hora decisiva, Flores da Cunha com a poderosa Brigada Militar
gaúcha ficou do lado de seus amigos Getúlio e Oswaldo Aranha.
Antigos líderes republicanos como Borges de Medeiros, João Neves da
Fontoura, Lindolfo Collor passaram a ser perseguidos junto com Raul
Pilla, Batista Luzardo e tantos outros chefes maragatos. Borges de
Medeiros, apesar da vigilância e da censura, conseguiu fugir de
Porto Alegre na companhia de seu antigo adversário Batista Luzardo.
Passaram a enfrentar o inverno nas coxilhas e com pouca munição
para não fugir aos compromissos assumidos com São Paulo e com a
constituinte a ser convocada.
Os governos, federal de Getúlio Vargas, e, estadual de Flores da
Cunha, esmagaram os revolucionários. Mas não conseguiram retirar do
movimento armado, a riqueza de ideais e de símbolos. Assim, a
revolução terminou no Rio Grande do Sul após o disparo do último
tiro pelos rebeldes; próximo a Piratini, primeira capital
farroupilha; e no dia vinte de setembro, tão caro para as tradições
gaúchas.
O protesto quase desarmado do tantas vezes combatido Borges de
Medeiros emocionou antigos companheiros e adversários numa nova
reacomodação de forças diante do poder. Ao final da aventura
armada, a grande preocupação do velho Borges não era com ele, que
seria respeitado pelos seus antigos discípulos, mas com os
ex-adversários Raul Pilla e Batista Luzardo, a quem convenceu da
conveniência da fuga antes que caíssem nas mãos das tropas
governistas.
Borges de Medeiros foi enviado preso para Recife, enquanto Raul
Pilla, Batista Luzardo e outros tiveram de permanecer no exterior,
exilados, por muito tempo.
Gurizote, quando ainda não valorizava o passado, eu conheci, já bem
velho, o cavalo Pente Fino, um zaino amilhado que meu pai escolhera
para dar escapula ao velho Borges rumo à fronteira. Atitudes
práticas ganhavam tintas de ficção ante a força e o arbítrio.
Borges resolveu não atravesssar a fronteira e enfrentou a prisão,
mas seus companheiros e ex-inimigos o fizeram e tinham de ser
mantidos no exílio.
Organizaram-se listas de resistência e meu pai e seus irmãos, da
mesma forma que muitos gaúchos, recolhiam recursos para manter os
exilados em condições dignas no exterior. Um dos expedientes usados
pelo pessoal da insurgente Frente Única para angariar fundos foi
emitir bônus, cédulas semelhantes a dinheiro real, e que tinham a
estampa dos líderes exilados.
Foi aí que se popularizaram as cédulas com a figura do Doutor Raul
Pilla e que o povo logo chamou de pilas. O termo caiu de tal
maneira no gosto popular, que passou a ser utilizado na acepção de
dinheiro verdadeiro. Chama a atenção que tantas décadas depois dos
fatos históricos e após tantas moedas oficiais e planos econômicos,
permaneçam os pilas como expressão definitiva e popular de
unidade monetária.
De certa maneira, o povo, na sua sabedoria, homenageou e continua a
homenagear um dos políticos mais íntegros e coerentes que o Rio
Grande produziu.
(Blau
Fabrício de Souza. Uma no cravo, outra na ferradura – crônicas do
campo. Porto Alegre, RS: AGE, 2004.)
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