domingo, 26 de janeiro de 2020

A Memória dos Pilas (Blau Souza)



Num país de moedas efêmeras e com uma história de inflação significativa, não é de admirar que o povo busque parâmetros estáveis, ainda que fazendo parte do mundo do faz-de-conta. Nos últimos cinquenta anos, tivemos pelo menos oito moedas diferentes no Brasil, sem contar os índices para aplicar tabelas de correção monetária e outras invenções. Por vezes, papéis de renegociação da dívida pública ganharam apelidos como as brizoletas, pouco duradouras como as próprias moedas oficiais; faltou-lhes estofo histórico que as consagrasse como definitivas.

Mas com os pilas a história é diferente. Quem ainda não ouviu ou usou pila e pilas para significar dinheiro? Pois, para isso, há uma explicação que penetra em nossa história e se enche de significado mágico.

Corria o ano de 1932 e Getúlio Vargas, embriagado pelo poder, não convocava a esperada assembleia constituinte. São Paulo pegou em armas, esperando que o mesmo ocorresse em todo o Brasil e, sobretudo, no Rio Grande do Sul, cujo interventor, Flores da Cunha, participara de reuniões conspiratórias e de apoio aos constitucionalistas. Mas na hora decisiva, Flores da Cunha com a poderosa Brigada Militar gaúcha ficou do lado de seus amigos Getúlio e Oswaldo Aranha.

Antigos líderes republicanos como Borges de Medeiros, João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor passaram a ser perseguidos junto com Raul Pilla, Batista Luzardo e tantos outros chefes maragatos. Borges de Medeiros, apesar da vigilância e da censura, conseguiu fugir de Porto Alegre na companhia de seu antigo adversário Batista Luzardo. Passaram a enfrentar o inverno nas coxilhas e com pouca munição para não fugir aos compromissos assumidos com São Paulo e com a constituinte a ser convocada.

Os governos, federal de Getúlio Vargas, e, estadual de Flores da Cunha, esmagaram os revolucionários. Mas não conseguiram retirar do movimento armado, a riqueza de ideais e de símbolos. Assim, a revolução terminou no Rio Grande do Sul após o disparo do último tiro pelos rebeldes; próximo a Piratini, primeira capital farroupilha; e no dia vinte de setembro, tão caro para as tradições gaúchas.

O protesto quase desarmado do tantas vezes combatido Borges de Medeiros emocionou antigos companheiros e adversários numa nova reacomodação de forças diante do poder. Ao final da aventura armada, a grande preocupação do velho Borges não era com ele, que seria respeitado pelos seus antigos discípulos, mas com os ex-adversários Raul Pilla e Batista Luzardo, a quem convenceu da conveniência da fuga antes que caíssem nas mãos das tropas governistas.

Borges de Medeiros foi enviado preso para Recife, enquanto Raul Pilla, Batista Luzardo e outros tiveram de permanecer no exterior, exilados, por muito tempo.

Gurizote, quando ainda não valorizava o passado, eu conheci, já bem velho, o cavalo Pente Fino, um zaino amilhado que meu pai escolhera para dar escapula ao velho Borges rumo à fronteira. Atitudes práticas ganhavam tintas de ficção ante a força e o arbítrio. Borges resolveu não atravesssar a fronteira e enfrentou a prisão, mas seus companheiros e ex-inimigos o fizeram e tinham de ser mantidos no exílio.

Organizaram-se listas de resistência e meu pai e seus irmãos, da mesma forma que muitos gaúchos, recolhiam recursos para manter os exilados em condições dignas no exterior. Um dos expedientes usados pelo pessoal da insurgente Frente Única para angariar fundos foi emitir bônus, cédulas semelhantes a dinheiro real, e que tinham a estampa dos líderes exilados.

Foi aí que se popularizaram as cédulas com a figura do Doutor Raul Pilla e que o povo logo chamou de pilas. O termo caiu de tal maneira no gosto popular, que passou a ser utilizado na acepção de dinheiro verdadeiro. Chama a atenção que tantas décadas depois dos fatos históricos e após tantas moedas oficiais e planos econômicos, permaneçam os pilas como expressão definitiva e popular de unidade monetária.

De certa maneira, o povo, na sua sabedoria, homenageou e continua a homenagear um dos políticos mais íntegros e coerentes que o Rio Grande produziu.

(Blau Fabrício de Souza. Uma no cravo, outra na ferradura – crônicas do campo. Porto Alegre, RS: AGE, 2004.)




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