domingo, 26 de janeiro de 2020

Gado e Gente do Pampa (Blau Souza)



Os jesuítas que tinham desenvolvido populosas aldeias no Guairá fugiram dos bandeirantes com o que restou de seus índios e se instalaram nas costas do alto Uruguai. Na margem oriental, a partir do Padre Roque González, em 1626, instalaram-se dezoito povos, cujos habitantes chegaram ao rio Jacuí e o ultrapassaram, desenvolvendo notável civilização e grandes rebanhos. Sua sina, entretanto, não desaparecera. Os bandeirantes continuavam a apresar gentios para escravizar e isso era facilitado pela existência de aldeamentos quase indefesos, pois os índios das Missões ainda não tinham autorização da coroa espanhola para o uso de armas de fogo.

As Missões foram dizimadas por Raposo Tavares, Manoel Preto, Francisco Bueno, André Fernandes, Fernão Dias Pais e outros aventureiros vicentinos, cujas famílias e posses dependiam diretamente do sucesso das bandeiras. Os últimos índios reduzidos fugiram para o outro lado do rio Uruguai por volta de 1640 e deixaram para trás seus rebanhos, sem donos a partir de então. O Padre Simão Vasconcellos, jesuíta português, descrevia em 1663: “É notável por aqui a bondade da erva, os campos não têm fim, o número de gado são milhões e milhões; donde só pelos couros se mata, e se carregavam muitos navios deles, deixando a carne por inútil”.

Jesuítas de várias nacionalidades, sob bandeira espanhola, conseguiram despertar a cobiça bandeirante, primeiro com os próprios indígenas nas reduções e depois com os rebanhos vacum, cavalar e ovino que deixaram a vagar pelo mar verde do pampa. Aventureiros, homens nômades, passaram a agir nesse meio. Eram índios, brancos, negros e mestiços, os mais variados; muitos deles a fugir da convivência humana ou da própria vida e que ganharam uma identidade em função da exploração da riqueza pecuária. Hábeis cavaleiros, e nisso se notabilizaram os charruas e os minuanos, passaram à matança do gado, pois havia compradores para os couros não só entre os comerciantes das nações ibéricas, como nos navios de piratas franceses ou de outras nacionalidades que se habituaram a aportar em nosso perigoso litoral. Os faeneros ou changadores usavam laços, boleadeiras e lâminas em meia-lua adaptadas a cabos longos de madeira e que serviam para desjarretear ou cortar o tendão posterior das patas, o garrão, impedindo que as reses se locomovessem.

A cor negra dos abutres salpicava o verde dos campos, e eles disputavam a cães chimarrões e a outros comedores de carne, as carcaças que iam apodrecendo e empestando aires não tão buenos. Ia surgindo um tipo humano, ainda sem nome, adaptado ao pampa e que lutava, sobretudo, pela sobrevivência. A devastação dos rebanhos prosseguia com agravantes: os touros, todos os machos o eram, forneciam os pesados couros, de boa espessura, e as novilhas, de carne mais macia, eram abatidas para fornecer um ou dois assados para matar a fome dos gaúchos. Acham que a palavra, gaúcho, caiu bem? Claro que sim, pois foi aí que ele surgiu, como homem adaptado a um meio que exigia exímios cavaleiros, capazes de sobreviver à solidão do pampa. A separação das coroas ibéricas em 1640, depois de sessenta anos de frágil união no reinado dos Felipes de Espanha, agravou a rivalidade entre as duas nações, logo transmitida às suas terras na América. As Missões alcançaram grande desenvolvimento no lado espanhol depois que os bandeirantes abandonaram a perseguição aos índios, depois de derrotados em Mbororé no ano de 1641 por missioneiros já armados com arma de fogo e preparados para guerrear. O aumento populacional preocupava os padres, que não tinham esquecido as terras da margem esquerda do Uruguai. A instalação da Colônia do Sacramento pelos portugueses em 1680 e a volta dos jesuítas espanhóis com seus índios à margem oriental do Rio Uruguai, criando os Sete Povos a partir de São Borja em 1682, serviram para ressaltar as qualidades e os defeitos desses homens do pampa, que passaram a lutar sob diferentes bandeiras e falando português ou espanhol.

(Blau Fabrício de Souza. Uma no cravo, outra na ferradura. Crônicas do Campo. Porto Alegre, AGE, 2004.)


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