Os jesuítas que tinham
desenvolvido populosas aldeias no Guairá fugiram dos bandeirantes
com o que restou de seus índios e se instalaram nas costas do alto
Uruguai. Na margem oriental, a partir do Padre Roque González, em
1626, instalaram-se dezoito povos, cujos habitantes chegaram ao rio
Jacuí e o ultrapassaram, desenvolvendo notável civilização e
grandes rebanhos. Sua sina, entretanto, não desaparecera. Os
bandeirantes continuavam a apresar gentios para escravizar e isso era
facilitado pela existência de aldeamentos quase indefesos, pois os
índios das Missões ainda não tinham autorização da coroa
espanhola para o uso de armas de fogo.
As Missões foram dizimadas
por Raposo Tavares, Manoel Preto, Francisco Bueno, André Fernandes,
Fernão Dias Pais e outros aventureiros vicentinos, cujas famílias e
posses dependiam diretamente do sucesso das bandeiras. Os últimos
índios reduzidos fugiram para o outro lado do rio Uruguai por volta
de 1640 e deixaram para trás seus rebanhos, sem donos a partir de
então. O Padre Simão Vasconcellos, jesuíta português, descrevia
em 1663: “É notável por aqui a bondade da erva, os campos não
têm fim, o número de gado são milhões e milhões; donde só pelos
couros se mata, e se carregavam muitos navios deles, deixando a carne
por inútil”.
Jesuítas de várias
nacionalidades, sob bandeira espanhola, conseguiram despertar a
cobiça bandeirante, primeiro com os próprios indígenas nas
reduções e depois com os rebanhos vacum, cavalar e ovino que
deixaram a vagar pelo mar verde do pampa. Aventureiros, homens
nômades, passaram a agir nesse meio. Eram índios, brancos, negros e
mestiços, os mais variados; muitos deles a fugir da convivência
humana ou da própria vida e que ganharam uma identidade em função
da exploração da riqueza pecuária. Hábeis cavaleiros, e nisso se
notabilizaram os charruas e os minuanos, passaram à matança do
gado, pois havia compradores para os couros não só entre os
comerciantes das nações ibéricas, como nos navios de piratas
franceses ou de outras nacionalidades que se habituaram a aportar em
nosso perigoso litoral. Os faeneros ou changadores
usavam laços, boleadeiras e lâminas em meia-lua adaptadas a cabos
longos de madeira e que serviam para desjarretear ou cortar o tendão
posterior das patas, o garrão, impedindo que as reses se
locomovessem.
A cor negra dos abutres
salpicava o verde dos campos, e eles disputavam a cães chimarrões e
a outros comedores de carne, as carcaças que iam apodrecendo e
empestando aires não tão buenos. Ia surgindo um tipo
humano, ainda sem nome, adaptado ao pampa e que lutava, sobretudo,
pela sobrevivência. A devastação dos rebanhos prosseguia com
agravantes: os touros, todos os machos o eram, forneciam os pesados
couros, de boa espessura, e as novilhas, de carne mais macia, eram
abatidas para fornecer um ou dois assados para matar a fome dos
gaúchos. Acham que a palavra, gaúcho, caiu bem? Claro que sim, pois
foi aí que ele surgiu, como homem adaptado a um meio que exigia
exímios cavaleiros, capazes de sobreviver à solidão do pampa. A
separação das coroas ibéricas em 1640, depois de sessenta anos de
frágil união no reinado dos Felipes de Espanha, agravou a
rivalidade entre as duas nações, logo transmitida às suas terras
na América. As Missões alcançaram grande desenvolvimento no lado
espanhol depois que os bandeirantes abandonaram a perseguição aos
índios, depois de derrotados em Mbororé no ano de 1641 por
missioneiros já armados com arma de fogo e preparados para guerrear.
O aumento populacional preocupava os padres, que não tinham
esquecido as terras da margem esquerda do Uruguai. A instalação da
Colônia do Sacramento pelos portugueses em 1680 e a volta dos
jesuítas espanhóis com seus índios à margem oriental do Rio
Uruguai, criando os Sete Povos a partir de São Borja em 1682,
serviram para ressaltar as qualidades e os defeitos desses homens do
pampa, que passaram a lutar sob diferentes bandeiras e falando
português ou espanhol.
(Blau
Fabrício de Souza. Uma no cravo, outra na ferradura. Crônicas do
Campo. Porto Alegre, AGE, 2004.)
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