domingo, 26 de janeiro de 2020

Tradição (Raul Annes di Primio)



Os jesuítas foram os introdutores do gado no Rio Grande do Sul, até então povoado por animais silvestres e por índios. Estes foram a causa dessa tropeada de gado do Paraguai e que viria a constituir fonte segura e constante de alimentação dos índios reduzidos, pois a feita com caça, pesca e agricultura era irregular e imprevista, dependendo sempre das condições climáticas com períodos negativos em invernos rigorosos, secas, geadas, pragas castigando as lavouras e emagrecendo as “caças”.

Essa animália introduzida e distribuída na área missioneira e acomodada nas suas diversas estâncias que serviam de apoio abastecedor dos povos das reduções teve que ser, ainda que empiricamente, atendida com os meios existentes na época.

Coube, pois, aos padres a obrigação de ensinar aos índios catequizados a lidarem com esses animais até então desconhecidos, e deles tirarem os proveitos úteis e necessários tais como alimento, carne, leite, lavração, transporte, bem como o manejo para a manutenção desses gados, que deviam aumentar paralelamente ao crescimento populacional e consumidor dos índios catequizados.

Uma das primeiras medidas para aumento da criação foi a proibição do abate de fêmeas, na política de proteção e conservação de úteros necessários à produção de terneiros.

Em suas estâncias mantinham o gado confinado em áreas delimitadas por acidentes naturais: cerros, rios, banhados, matos, procurando sempre aquerenciá-los nestas áreas, chamadas antigamente de rincões. O gado era “rinconado”. Não havia ainda cercas de arame.

Medidas sanitárias não existiam. As bicheiras eram curadas com pomadas mercuriais já na época dos jesuítas.

Os nomes de santo nas raras capelas existentes e a maioria dos trabalhos rotineiros de uma estância são heranças dos jesuíticos. Tudo girava em torno dos santos. Não há registro de como surgiram, mas todas as benzeduras invocam o nome de Cristo ou ainda da cruz.

Para evitar essas bicheiras os padres campeiros (cada padre tinha sua especialização nas reduções), aconselhavam a marcação dos terneiros após o dia de São João (com o frio a mosca desaparece).

No entanto, com o decorrer do tempo, esses nomes santificados nas estâncias foram sendo substituídos pelos nomes pagãos de árvores, cerros, paisagens, etc. Por exemplo, Cinco Salsos, Estância da Figueira, Estância Cerro Negro, Estância Posto Branco, Boa Vista, Itaúna, Crianças, União, Pedras Brancas, etc.

Nos trabalhos de campo, durante o ano, muito por não saberem ler nem escrever e levar a “escrita” na cabeça, criaram um calendário próprio e “sui generis” para a cronologia dos trabalhos na administração de seus interesses.

Assim, para firmar data, não só para si, mas também para seus empregados, para que “fixassem” essas atividades, os serviços da estância eram determinados por datas históricas e não sacras e nesse sistema adotavam:

- 20 de setembro, assinalação de cordeiros, em homenagem à revolução Farroupilha;

- 3 de outubro, entourar, homenagem à revolução de 30;

- Após 2 de novembro, início da esquila, em homenagem aos mortos;

- 1º de maio, retirada dos touros do gado de cria, em homenagem ao trabalhador (Dia do Trabalho);

- 3 dias depois do carnaval, largada dos carneiros (somente Corriedale) do rebanho de cria, em homenagem aos foliões;

- 1º de abril; retirada dos carneiros do rebanho de cria, em homenagem aos bobos.

Este cronograma encontramos em uma estância da fronteira, de propriedade de um advogado formado em São Paulo, com larga experiência campeira. É uma maneira sábia e filosófica de firmar na memória uma rotina fixa, definida, numa exploração em tempos passados, com pouca ou nenhuma escolaridade, em que a maioria dos patrões e empregados eram analfabetos, e os raros que não eram se guiavam pelos calendários conhecidos como “folhinhas”, distribuídas pelos bolichos de campanha.

A época de entourar no Rio Grande é na primavera e geralmente a partir de 1º de outubro. A de encarneirar varia um pouco de acordo com a raça e inicia em dezembro com as raças de lã fina e em fevereiro/março com as raças de cruza média e grossa. A esquila, ainda de acordo com a região, inicia em meados de outubro e vai até janeiro.

(Raul Annes di Primio. Vento Sul: costumes campeiros. Porto Alegre: Edigal, 2000.)

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Rodovias Gaúchas com alteração de Fluxo - CRBM, DAER e PRF

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