terça-feira, 15 de março de 2022

Campo (Diário de Cecília, 1916/1926)

 

Terça-feira, 24 de outubro de 1916


Demos umas voltas a pé, de tarde, e as minhas companheiras tentam convencer-me que São Paulo ou Paris são melhores que o Ibirapuitã. Quando for a esses lugares saberei ao certo, mas por enquanto agarro-me ao meu ideal: a vida no campo.


Sou assim, e agora?


Tenho plena confiança de que meu amor ao campo nunca cessará de crescer.


Segunda-feira, 25 de dezembro de 1916


Li até às 3 horas da manhã, largando o livro só quando cheguei na última página.


Ora, em vez de me acordar às 6 horas, dormi sem interrupção até as 9. Levantei-me às pressas, não encontrando nem sombra de café. Comi dois ovos mexidos.


Seu Januário foi embora.


Cada dia gostava mais dele, senti que tivesse partido.


As crianças passaram o dia com os brinquedos novos. O Boy deu-me um filhote de chimango para criar. É horrível de feio.


Mamãe anda cuidando de uma das vacas novas, que está morrendo de magreza e tristeza. Batizou-a com o nome de Pérola.


De tarde fui com o Papai e Francisco ver o pôr-do-sol. Vimos lá 42 joões-grandes, era bonito vê-los pousar.


O céu estava todo pintado com lindas cores e reflexos.


De noite pedi que Mamãe nos deixasse um dia cozinhar. Ela me deu licença para fazer o almoço amanhã. Papai disse que dará um dote à filha que souber ser uma cozinheira de verdade.


Não quero o tal dote, quero mostrar que sirvo para alguma coisa. Serviço é o que não falta!


Todos deviam nascer com o firme propósito de embelezar e tornar perfeito o canto do mundo em que vivem; por menor que seja, o esforço sempre há de aparecer.


Tenho verdadeira pena de quem nunca comeu sequer uma batata plantada pelas suas próprias mãos, bem como dos que não conhecem os encantos que há na criação de um guacho, que nunca souberam como é bom colher flores no jardim onde se tenha acompanhado o desenvolvimento da planta, desde o primeiro broto saído da terra negra até alcançar os rios do sol, até o abrir das pétalas em flor.


Quarta-feira, 3 de janeiro de 1917


Colhemos muitos pêssegos chineses, várias espécies de ameixas esplêndidas, peras d’água deliciosas e ginjas grandes e escuras.


A Mamãe deu-me um chapéu de palha. Enfeitei-o com um pedaço de tule, em volta da copa, e uma grande rosa encarnada do lado.


Pela primeira vez fiz um penteado de senhora, mas desmanchei-o logo. Pena que vou ter de mudar de cara em breve.


Despimos a árvore de Natal.


Esperamos, tomando mate, a hora de dizer adeus ao Papai. Ele foi pelo noturno para Ibirapuitã, dizendo que volta daqui a uma semana.


Quinta-feira, 4 de janeiro


Dia de rara beleza!


Passei quase toda a manhã às voltas com os meus queijos. Estão com muito boa aparência.


A Maninha descobriu um lagarto saindo dos galinheiros. Raimundo e eu tentamos pegá-lo, mas foi em vão. Nunca vi bicho mais ligeiro!


Estive lendo receitas de queijos, resolvi fazer um Brie, em breve.


Domingo, 7 de janeiro


Nunca vi domingo mais lindo!


Foi pena que num dia tão perfeito houvesse acontecimentos desagradáveis. A potranca anglo-russa, Iolanda, apareceu com enorme rombo no lado esquerdo, pouco acima do garrão. Não foi possível descobrir a maneira pela qual o animal se feriu. A ferida parece ter sido produzida por um balaço ou por um guampaço.


Estou lendo o Days Work, de Kipling.


A notícia mais sensacional da Estação, hoje, foi a venda de uma tropa de terneiros e terneiras do Leleu, por 6 mil réis.


Quando eu estava recolhendo ovos vi um furão no monte de vigas, sentado como um gato. Nunca pensei que fosse tão bonito. Chamei-o com a mão e com os olhos e ele chegou a dois metros de distância de onde eu estava, sempre me olhando com uns olhinhos negros, sem medo nenhum. Ficou de pé, espichou o pescoço, olhou para os lados, lambendo os beiços. Depois abaixou-se e saiu correndo. Passou com muita agilidade pela tela da cerca e entrou num dos parques das galinhas. A cara, a testa, as mãos, pernas e a barriga não podiam ser mais pretas. Parece que ele andou nadando em azeviche. A parte de cima é cinzenta, um tordilho muito bonito. Fiquei encantada com o furão. Espero revê-lo brevemente.


Segunda-feira, 8 de janeiro


Muito vento, céu azul.


Li uma receita de Gruyère e estou tentando o resultado.


Depois fui aos galinheiros, ver se tinham água.


Encontrei-me com o Antônio (Chimango, por sobrenome), que estava às voltas com o Rafael (louco de fome). Fui buscar carne e dei-lhe de comer, perto de mim, para ir se amansando. É curioso como esse pássaro não sai de perto de casa.


A Bá escreveu-me e diz que é impossível vender os Petit Suisses, em Bagé. Começa por não haver gelo nas casas de negócio e acaba por não ter freguesia.


Divisei da torre três vultos no açude pequeno, que me pareceram patos-arminho. Para me certificar fui lá, e vi que eram quatro, lindos. Depois do chá toda a família foi vê-los e, naturalmente, a criançada espantou-os. Foram-se embora, voando, e pousaram no açude grande.


Fui lá, desta vez só, ao pôr-do-sol.


O que mais me encanta nessa hora é a profusão de cores e tons, alguns vivos, outros suaves.


Então vi a chegada de pássaros em bandos, ou um a um, para passar a noite no açude grande.


Além dos quatro patos-arminho foram chegando um casal de tahãs, dois joões-grandes, uma garça e carões, marrecas, galinholas, maçaricos.


O ente que menos apreciasse cenas do campo teria se extasiado ali hoje.


Domingo, 7 de fevereiro de 1926


Creio que o campo que deus fez é mais lindo e melhor que a cidade feita pelo homem”.


(Palavras de E. Oswwod Groover, aos meninos do Corn Club, de omaha, USA).


Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 12/24/2532/33/34/99.




Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.

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