Na sua passagem por São Gabriel, Maurício de Lacerda deixou esta página, no álbum de uma menina:
“São Gabriel
Quando penetrei os teus umbrais, pisei como num templo, a alma toda recolhida, contrita e murmurante.
De todos os teus cantos, não como sombras, mas como deuses lares, erguiam-se as saudades da meninice que não passei nos teus muros, mesmo por entre eles vivido pela imaginação apenas.
Sim, pela imaginação que se erguia no meu cérebro de criança, sobre uns joelhos amigos cavalgando, fitando, olhos magnetizados nuns grandes olhos paternos de um velho, que era teu filho, São Gabriel...
E revi hoje, entre o rumor da chegada e o trotear dos teus piquetes vermelhos, oh! Cidade Gaúcha, aquelas horas em que tu foste para mim como uma Bagdá longínqua dos contos de Sherazade.
E esse passado levou-me os passos, num misterioso impulso, para um dos jardins da tua garrida paisagem, e, neste, um casual encontro me trouxe a informação, há tanto buscada, do meu perdido tronco rio-grandense.
Três gerações apenas e já a obra dos séculos nos apaga os nomes, os vestígios mesmos dos antepassados, que em vão se busca, daqui e dali, num amargo cheio de uma vaga doçura.
O acaso – chamêmo-lo assim – dá-me a informação.
Basta erguer os olhos.
É ali mesmo defronte da velha casa do meu velho tronco. Ergo-me e busco vê-la, revivê-la, reconstruí-la com os mortos que devem viver lá dentro como vivos continuam cá dentro, bem dentro desse meu coração tão curtido pelas lufadas e temporais da vida pública.
No interior do velho ninho, um velho relógio, de há cem anos, que, ao me acercar, parece-me saudar, uma saudação que abençoa o neto do velho dono.
O ponteiro andou.
Foi a sua boa vinda, a boa vinda do século que foi ao século que chegou, com passos ardentes, pisando o seu Rio Grande. À mesma hora, com o mesmo jeito, com os seus velhos ponteiros mostraram as horas de 35, marcando a linha do dever e da guerra ao farrapo meu duplo avô, ali caminha o pêndulo que oscila, manso e seguro da marcha destes dias, que valem séculos, como no verso de Longfellow: “Sempre... nunca... nunca... sempre....”
Deixei-me ali, bem junto do velho avô, avô do meu e do tempo dos meus antepassados, e ali vivi um século para trás, como viveu para a frente, em busca de um pássaro revolto, o frade Manoel Bernardes, que ousara duvidar da eternidade dos minutos de Deus, que marcam as horas da vida dos povos. E a custo me afasto de junto do velho relógio, que ainda uma vez bate manso o pêndulo e manso adianta um minuto ainda no velho quadro das horas...
Bate, velho relógio, o compasso do teu pêndulo, oscilando entre os dois séculos que nos separam na vida nacional, entre o passado que viu partir o avô e o presente que vê chegar o neto farrapo.
Bate essas horas históricas, no compasso de um século, bem espaçado, bem sereno, bem firme, como se fosse a própria voz silenciosa e eterna de Deus, marcando as horas duma redenção que já tarda, para um povo que ainda espera a liberdade da sua alma, graça que o céu lhe deu e a terra profana lhe tem roubado...
Bate, relógio profético, a tua hora que avança, pelo seio do século, bate com o teu pêndulo a oscilar, bem largo, a hora da minha redenção e da redenção do meu País.
Maurício de Lacerda
São Gabriel, 9 de março de 1928.”
N.E: Além desta página, Maurício de Lacerda espalhou pelo Rio Grande muitas frases eloquentes, como esta: “O lenço vermelho do gaúcho é o tope da revolução nacional.”
Fonte: Assis Brasil, Cecília. Diário de Cecília Assis Brasil, org. por Carlos Reverbel. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 184/185.
Capa: L&PM Editores sobre foto do Castelo de Pedras Altas, Rio Grande do Sul.
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